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Gravar, riscar, cavar, forçar na superfície rígida uma marca, que posteriormente seus descendentes irão utilizar; seja como um mapa, seja como mensagem de uma vida que passou, são gestos de profundo amor.
Quando lemos sobre a história dos povos primitivos e a relação que o corte, feito primeiramente em “coisas vivas” exerceram nos homens nas gerações de culturas hoje extintas, podemos observar nos restos; ossos, cascos de tartarugas, marfim, chifres, madeira, couro, algo para ser apreciado, lido, pendurado, trabalhado ou enterrado, com algum significado.
O corte é uma experiência que podemos visualizar.
O primeiro contato com a natureza por inteiro, mediante o corte (o gesto de violar tecidos e estruturas) na superfície rugosa, sanguínea, oleosa, gordurosa, lenhosa e poeirenta, situa-se onde permanece o caos e os músculos.
Partindo de um corpo ou qualquer outra carga de energia o homem, para entender a natureza, desenhou, cortou e inventou símbolos, linhas, procurou nas formas naturais o relevo que suportava o sol, a chuva, o calor e o frio alcançado nas pedras e depois, na madeira (perecível) em uma dualidade magnífica transportada para a matriz – estampa. Um duplo sofisticado.
Da simplicidade do corte direto a escrita, toda a tradição de culturas em torno da comunicação processaram-se lentamente em uma conquista das mãos aplicadas no trabalho de talha em um suporte rígido, que resistia a força motriz.
A madeira, sempre esteve presente. Ela abrigou e cunhou ferramentas, transportando ao mar gerações de marinheiros e artistas.
Na xilogravura, a madeira exerce a alma de um corte sobre o “monólito” negro um pouco tosco que, mesmo antes da estampa, era filha natural do entalhe e da escultura na forma de colares, arcos, flechas e outros objetos de beleza e de ação. Nas fibras (espessura e dureza) existe “tempo” compactado na forma de tábuas, onde os anéis de crescimento da árvore podem ser utilizados como imagens primordiais.
Trabalhando na madeira, devemos estar cientes da dimensão mística do corpo e da carne, na força da elaboração sobre um tecido, no caso de compensados, uma pele, algo que já viveu e consumiu um ciclo de energia. Foi processada, mastigada, colada de tal forma que mal nos damos conta da matéria, “retalhada” mais uma vez, pela ação das ferramentas e outros processos geradores.
Na simplicidade de se fazer buracos e de imprimir e observar os brancos existe à vontade de entender o espaço e as forças, pelas passagens do vazio deixado nos sulcos, como veias abertas para o estímulo a diferentes interpretações. Rios de imagens em formas ocultas são despertadas pela impressão das matrizes e um vale absolutamente trabalhado pela erosão na força das ferramentas é mostrado.
Para outras técnicas de impressão e desenho a imagem gravada na matriz requer o auxílio de uma prensa para ver o que foi gravado, como é o caso da gravura em metal e litografia.
Mas a xilogravura, pelo caráter direto, rude, oriunda dos ofícios na marcenaria, onde os procedimentos de serrar, travar, encaixar e aplainar tudo na força de “punção” geométrica, mostra-se simples no processo de impressão por frotagem, com uma colher de pau. Além do mais, cristo, era marceneiro e entre as companhias de entalhadores profissionais que se formavam principalmente na Alemanha e nos países baixos como a Holanda, gravar imagens religiosas ou imprimir a bíblia a partir de tábuas preparadas na marcenaria, tinham um significado transcendental, como um cálice simples de madeira em que é bebido um bom vinho após a eucaristia.
No oriente, onde antes do século XV já existia o conhecimento da fabricação do papel, os artistas utilizavam um disco feito de palha de milho enrijecido por pequenas cordas engenhosamente trabalhadas no formato da palma da mão (barim). Eles pressionavam rapidamente sobre a folha o disco (a tinta era à base de água – nanquim) e também por frotagem, manualmente faziam a tiragem, utilizando a cor, na forma de guaches aplicadas na superfície.
Através deste processo, eliminando o elemento de peso que é possuir uma prensa, pode-se fazer xilogravuras de tamanhos muito variados, valendo-se do esforço físico empregado na hora de obter a imagem.
Na gravura em metal, a alma dos cortes em placas de cobre (seu tamanho inclusive) está vinculada à prensa ou tórculos calcográficos, por que sem prensa, não existe calcografia de estampa.
Esta arte teve origem nas oficinas de ourives do século XV.
Eram requintados, metódicos, uma arte para ser vista de perto, como jóias polidas onde a luz no prisma denota o seu valor.
Gravar placas de prata, ouro e cobre, requer a habilidade de quem está acostumado a observar formigas caminhando sobre o caule de uma planta, cuidando de pulgões.
É preciso ter olho para os detalhes luminosos extraídos dos instrumentos de corte, particularmente afiados e de menores escalas (diferentes da xilogravura, que são instrumentos voltados para a força muscular dos braços e dos ombros), enquanto que no metal, a sua força concentra-se na inteligência dos dedos e na firmeza das falanges.
Acostumados ao ornamento, os armeiros medievais do começo do século XV usaram o buril e outros processos até então nascentes como a água forte e desenvolveram os métodos de talho doce, renovando a linguagem do desenho em direção a interpretação da pintura, por que a gravura em metal tinha algo que a xilogravura não possuía.
Os cinzas.
A escala do nascer do sol.
Pela gravura em metal, os artistas interpretavam a natureza com os olhos minerais do pintor e do escultor, levando-se em conta as sombras e a descrição dos volumes, espalhadas pela massa de tinta, que conduzia os corpos na tela.
Mas a xilogravura ligou-se de imediato na fabricação e impressão de livros em larga escala. Houve uma revolução silenciosa em torno de um “objeto” que guardava todo um conhecimento “perigoso”, que além da imagem, proporcionava ao leitor o pensamento e a reflexão escrita no debate de sua época, relâmpagos despejados nas oficinas.
Eram gravados, no início, inteiramente em tábuas de madeira. Experiência que os chineses já haviam usado séculos atrás.
A leitura é uma impressão direta, assim como a imagem negra da xilogravura.
Entre o preto e o branco, a leitura das letras assim como a imagem é feita nos vazios entre os abismos da composição nas linhas. Verdadeiras raízes expostas, pretas na superfície.
O preto fragmentado nesses espaços, povoam as folhas como exércitos em marcha numa planície ou uma procissão religiosa (nesta época, a maioria dos textos eram de cunhos católicos) dando muita importância a impressão das primeiras bíblias em tipos móveis).
As iluminuras, que antes eram pintadas cuidadosamente pelos monges nos mosteiros foram substituídas pelo impacto maciço da madeira.
O desenho, pensado na resistência e na força dos tímpanos era organizado de modo que seguisse as margens da impressão no papel.
Salvo raras exceções, como algumas estampas de “metro” feitas nas oficinas do pintor Ticiano (A travessia do mar Vermelho de 1549, de 120 x 220 cm) e a série do Apocalipse de Albert Durer, maiores do que o padrão corrente usado pela companhia de “entalhadores profissionais”, as xilogravuras deste período eram feitas geralmente em pequenos formatos, acompanhando o corpo do livro.
Cortes detalhados, buscando na maneira de desenhar firme com o bico de pena e o pincel, toda a inteligência gráfica de espaços e figuras que foram extraídas, sonhadas, encantadas pelas iluminuras.
No corpo do entalhe, o quadrado e o retângulo são formas abertas para a luz, como uma janela em um mosteiro, observando a “paisagem interna” absoluta, cheia de formas despertadas pela consciente ação de “abrir” as matrizes, numa incisão.
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O quadrado e o retângulo na estampa de xilogravura são as medidas perfeitas de aposentos encontrados, quando estamos perdidos.
Xilogravura (breve história)
A xilogravura mais antiga (pelo menos na Europa) é uma imagem de S. Cristóvão datada de 1423.
Já muito tempo antes, na china e no Japão, imprimiam-se livros tabulares, conhecendo-se o fragmento de uma obra chinesa do ano de 932 d.c, indicando um estado adiantado na técnica de impressão em papéis finos, delicados, geralmente a base de água.
Não é certo, todavia, de que haja qualquer ligação entre a xilogravura praticada no Oriente e a que começou a se desenvolver no Ocidente a partir do século XV, com a fabricação de cartas de jogar e imagens sacras impressas em panos na chamada “igreja dos pobres”.
A arte “maior e de melhor” valor era a pintura, de manufatura cara, os afrescos requintados demoravam a secar, daí a xilogravura como recurso simples, fácil e rápido para ornamentar o altar. “Untava-se o relevo obtido pelo desbaste da tábua (a xilogravura antigamente era chamada de impressão tabular) aplicada sobre o pano cuidadosamente estendido, sobre o qual se exercia pressão com uma bola de crina embrulhada em trapo. O resultado consistia na transposição do desenho, originalmente lavrado na madeira para o pano”1 em um processo que se sofisticou com a ajuda de tórculos, Minervas e outros processos de estampilhas em prensas desenvolvidas em ferro, após a revolução industrial.
A esta atividade primitiva seguiu-se a gravura de textos, com que imprimiram os primeiros “livros tabulares’ totalmente gravados (palavra e imagem) em um único“taco” antes dos famosos “tipos móveis”.
A xilogravura não perdeu importância com a invenção de tipos, letras em madeira, depois cunhadas em chumbo, separadas para compor melhor os textos.
Na sua importância como meio de ilustração, tornou-se auxílio precioso da tipografia.
1- Introdução à Gravura e História da Xilografia, Antonio Costella.
Conceito
A xilogravura consiste basicamente em “um buraco” feito por instrumentos de corte oriundos da arte da marcenaria como goivas, facas, punções de aço de vários calibres aplicados na superfície do lenho preparado.
“Buracos coordenados” determinam a fluidez do desenho. Sombras formam-se onde as áreas não foram maculadas pela ação das ferramentas.
A imagem no início está mergulhada em um negro perpétuo.
Porém a luz surge justamente na ação continua de desbaste (entalhe grosso) onde os rios luminosos, percorrem a matriz como veias.
A palavra xilogra(fia), do grego xylon – madeira e graphein – escrever mais o sufixo ia é feita em madeiras de lei (umburana, jacarandá, cedro, jequitibá rosa, cumaru, ipê etc) ou cópias (compensados e MDF) derivados de sobras (pó de serrarias), com espessura de 6mm a 15mm, dependendo do grau de profundidade do desbaste.
Divide-se em gravuras de fio (sentido vertical ao crescimento do tronco) e de topo (sentido horizontal).
Glossário de termos técnicos
Madeira; parte lenhosa das plantas.
Goivas; espécie de formão ou cinzel, com a extremidade cortante e forma de meia lua ou de ângulo, usado na xilogravura, além das facas e punções de ferro (ponta secas – riscadores) responsáveis por desenhar na madeira.
Ponta Seca – barra de aço, por vezes temperado, com uma ponta que sulca o metal, similar a um lápis.
Tinta; geralmente de densidade pastosa, líquida como mel, típica de países de clima frio. Feita em pigmento, gordura, negro de fumo, geralmente de cor preta, possui uma secagem demorada na madeira, no metal e nos tipos metálicos usados por Gutemberg nos primórdios da imprensa.
São misturadas por uma espécie de verniz ou veículo da tinta, geralmente constituído por óleo de linhaça.
Tampão de Couro; almofada feita de couro com um pequeno cabo de madeira, que é usado para entintar as matrizes de impressão e tipos gráficos usados na composição dos livros.
Prensa; Até o século XIX, feitas inteiramente de madeira, depois em ferro. Possui vários tipos e modelos, adaptadas de acordo com as necessidades de cada época. É dividida em modelos de roscas verticais (prelos para espremer uva usadas de início para imprimir xilogravuras) e manivelas ou “estrelas” horizontais (para amassar argila ou massas de pão). Para o talho doce, usa-se a prensa horizontal guarnecida de dois cilindros maciços de ferro, quatro pés e uma mesa também de ferro ou berço, que é colocada no meio para “correr”. Devido a enorme pressão, a matriz é “esmagada” junto com o papel, protegido por um pano que denominamos feltro.
Buril; lâmina de aço curvo com um cabo de madeira arredondado, típico para talhas profundas e limpas.
Água Forte; nome dado ao ácido forte (percloreto de ferro ou ácido nítrico) para corroer as chapas de cobre. É a técnica que possibilita desenhos limpos com o auxílio de um verniz que aplicamos diretamente sobre a placa de cobre.
Mordente Holandês; nome genérico ao ácido empregado por Rembrandt, de corrosão suave e extremamente lenta, que proporciona uma linha limpa, cinza, parecida com o bico de pena.
Cobre; metal indicado para as técnicas de gravura em talho doce (buril, ponta eca, maneira negra, água forte e água tinta). Divide-se em duas categorias;
Cobre mole ou vermelho.
Cobre duro, de cor ocre avermelhado, claro, que geralmente, dependendo de como é armazenado, apresenta muitas oxidações.
Prova; chama-se prova, os testes de impressão feitos pelo gravador antes da conclusão final da gravação da imagem. Testes de cor, pressão e papel, em diferentes gramaturas, a gravura é impressa até o acerto do desenho. Tradicionalmente pode receber o auxilio de um impressor. São numeradas como P.A (prova do artista) ou B.P.I (bom para imprimir) e outros nomes, de acordo com o procedimento e uso de cada ateliê.
Contra Prova; Depois que a gravura é impressa, retira-se o papel da placa. Coloca-se em seguida um outro papel, por cima da prova cheia de tinta, passando novamente na prensa. “Contra Prova” é a gravura impressa neste outro papel, sem matriz, apenas com a estampa carregada de tinta. Ela é feita de modo que podemos ver o desenho gravado na placa sem espelhamento.
Talho Doce; nome dado ao corte do buril, a primeira ferramenta utilizada para a gravura em metal, feita em placas de cobre. O corte é direto e de fácil “condução”.
Tipografia; a arte de compor e imprimir com tipos.
Papel; na xilogravura, pode-se imprimir em qualquer papel, desde que tenha certa aderência a tinta tipográfica e que não sejam muito grossos (isto não é uma regra) pois a grande gramatura dificulta a frotagem na colher de pau.
Bibliografia
Costella, Antonio – Introdução à Gravura e História da Xilografia. Ed. Mantiqueira, Campos do Jordão 1984.
Camargo, Iberê – A Gravura. Ed. Sagra-DCLuzzatto, Porto Alegre 1992.
Doctors, Márcio – A Cultura do Papel. Ed. Fundação Eva Klabin Rapaport e Casa da Palavra, 1999.
Hashimoto, Madalena – Pintura e Escrita do Mundo Flutuante: Hshikawa Moronobu e Ukiyo-e Ihara Saikaku e Ukiyo-zôshi. Ed. Hedra 2002.
Ferreira, Orlando da Costa – Imagem e Letra. Ed. EDUSP, São Paulo 1976.