Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina; pós-doutor em antropologia social

A Ciência da Memória: meu pós-doutorado sobre Santos Dumont e o legado como patrimônio cultural

21/03/2025

Concluir uma pesquisa de pós-doutorado é sempre um marco na trajetória acadêmica. Mas, quando o objeto desse estudo é uma figura tão emblemática quanto Alberto Santos Dumont, esse marco transcende o campo individual e adquire uma dimensão coletiva, voltada à memória nacional. É com imensa alegria que compartilho com o público a conclusão do meu pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), resultado de um intenso trabalho de investigação sobre o legado documental e material deixado por Santos Dumont — um dos maiores nomes da história da ciência, da aviação e da cultura brasileira.

Essa pesquisa nasceu de uma inquietação intelectual surgida da minha experiência anterior na elaboração de catálogos raisonné — registros científicos completos da produção de artistas plásticos. Tive o privilégio de coordenar dois dos cinco catálogos raisonné existentes no Brasil: o de Alfredo Volpi, pelo Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, e o de Leonilson, do qual fui diretor de projeto e membro da comissão catalogadora. A vivência com essas metodologias me levou a uma pergunta: seria possível aplicar os mesmos critérios rigorosos de catalogação a outros tipos de personagens históricos? Foi assim que nasceu a proposta de aplicar essa metodologia ao legado de Santos Dumont, cujo acervo encontra-se disperso em diversas instituições nacionais e internacionais.

O resultado desse trabalho superou todas as expectativas: foram identificados 7.280 bens culturais associados a Santos Dumont, entre documentos, projetos, desenhos, plantas, maquetes, fotografias, correspondências e registros de voo. Esses materiais estão hoje distribuídos por 23 acervos distintos — públicos e privados — e, pela primeira vez, encontram-se sistematizados em um banco de dados com linguagem técnica padronizada e acessível ao público por meio de QR Code disponível no livro que agora lançamos.

A metodologia da pesquisa seguiu quatro etapas fundamentais. Primeiro, o levantamento bibliográfico extensivo, com aquisição de toda a literatura disponível sobre Santos Dumont e mapeamento dos itens citados em obras já publicadas. Em seguida, o contato com instituições que detinham parte desse acervo, identificando o que estava digitalizado e o que exigiria visitas presenciais. A terceira etapa foi a organização desse material em um banco de dados técnico, com fichas catalográficas individualizadas e imagens de alta resolução. Por fim, a etapa presencial completou o levantamento, garantindo a completude do mapeamento documental.

Durante esse percurso, encontrei desafios marcantes. O primeiro, infelizmente, foi o despreparo de muitas instituições brasileiras para acolher pesquisadores com estrutura e agilidade — um contraste evidente em relação às instituições estrangeiras, que contam com plataformas digitais avançadas e protocolos organizados. Também me impressionou o quanto ainda conhecemos pouco da dimensão ética e humana de Santos Dumont: um homem generoso, que nunca patenteou suas invenções por acreditar no valor do conhecimento compartilhado, e que doou integralmente os prêmios que recebeu a causas sociais.

A pesquisa também foi um mergulho emocional. Compreender a trajetória brilhante de Dumont e acompanhar, em paralelo, os sinais de sua fragilidade nos anos finais de vida foi um exercício de empatia e sensibilidade. Um dos momentos mais simbólicos dessa jornada foi o contato direto com seu coração preservado no Museu Aeroespacial — uma experiência carregada de significado, que transcende a ciência e adentra o campo da memória.

Entre as descobertas mais curiosas, destaco duas que merecem ser conhecidas por todos. Em Paris, Dumont é considerado o precursor do serviço de delivery, por encomendar refeições sofisticadas do restaurante Maxim’s para levar a bordo de seus balões. E, de forma ainda mais relevante, foi ele o idealizador do Parque Nacional do Iguaçu: ao visitar as Cataratas e perceber que estavam sob domínio privado, percorreu pessoalmente o caminho até o governo provincial para pleitear sua desapropriação e transformação em área pública. Foi pioneiro, também, na percepção do turismo sustentável, ao chamá-lo de “indústria sem chaminés” — expressão precursora de conceitos ambientais contemporâneos.

Com esse trabalho, espero não apenas contribuir para a valorização do legado de Santos Dumont, mas também demonstrar o quanto a metodologia de catalogação raisonnée pode ser ampliada para outros campos da história e da cultura. O banco de dados criado, acessível a todos por meio de QR Code, não apresenta juízo de valor nem seleção curatorial. É uma ferramenta científica neutra, destinada a servir como fonte segura para futuros pesquisadores, historiadores, biógrafos, cientistas e interessados na memória brasileira.

Acredito que conhecimento só tem valor real quando compartilhado. E é com esse espírito — de ciência a serviço da memória — que ofereço ao público esse trabalho, que me honra como pesquisador, como cidadão e como presidente da Fundação Memorial da América Latina, instituição que tem como missão preservar e difundir os grandes valores da nossa cultura.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Refugiados: desmistificando conceitos e reconhecendo realidades

28/02/2025

No imaginário coletivo de grande parte da população brasileira, o refugiado é frequentemente visto como um migrante pobre, alguém que atravessa fronteiras em busca de melhores condições de vida, muitas vezes confundido com uma pessoa destituída de qualquer recurso. No entanto, essa concepção está longe da realidade. O refugiado não é um simples migrante econômico. Ele é, antes de tudo, um deslocado forçado, alguém cuja vida foi abruptamente interrompida em seu país de origem devido a guerras, perseguições políticas, conflitos religiosos ou violações sistemáticas dos direitos humanos.

A distinção entre migrante e refugiado não é meramente semântica e tem implicações concretas na forma como essas populações são acolhidas, amparadas e integradas nos países que as recebem. O migrante pode escolher partir em busca de novas oportunidades, enquanto o refugiado é forçado a deixar para trás sua casa, sua cultura, sua rede de apoio e, muitas vezes, sua própria identidade social e profissional.

Entre o recomeço e a perda de identidade
Na condição de pós-doutor em Antropologia Social, considero essencial abordar o fenômeno do refúgio sob uma perspectiva antropológica, compreendendo os desafios que essa população enfrenta no plano material e também no campo simbólico e identitário.

O deslocamento forçado de um refugiado vai muito além da travessia de fronteiras, pois significa a perda de um status construído ao longo de anos, por vezes décadas, de dedicação a uma profissão, a uma comunidade, a um projeto de vida. Muitas vezes, entre os refugiados há médicos, engenheiros, professores, cientistas e outros profissionais altamente qualificados que, ao chegarem a um novo país, se deparam com barreiras culturais, burocráticas e linguísticas que os impedem de exercer suas funções e os relegam a trabalhos subalternos ou à informalidade.

Claude Lévi-Strauss, em Raça e História (1952), nos lembra que “todas as culturas se encontram em permanente contato umas com as outras, se influenciam mutuamente e se transformam”. No entanto, para o refugiado, essa transformação não ocorre de maneira orgânica. Seu contato com uma nova cultura não é um processo voluntário de troca, mas uma imposição da realidade que o obriga a se reconstruir em um ambiente que, por vezes, não o reconhece plenamente como indivíduo.

Se olharmos para o Brasil, podemos perceber a dimensão desse fenômeno. O país tem sido um dos principais destinos de fluxos migratórios nos últimos anos, em especial de refugiados vindos do Haiti e da Venezuela. Em São Paulo, há cerca de 40 mil haitianos, que chegaram em grande parte após o terremoto devastador de 2010. No caso dos venezuelanos, a situação se agrava continuamente: no início da minha gestão no Memorial da América Latina, cerca de 300 venezuelanos cruzavam diariamente a fronteira com o Brasil por Roraima. Hoje, esse número já supera 450 pessoas por dia. Além disso, o Brasil tem recebido um fluxo migratório de segunda ordem, composto por venezuelanos que inicialmente buscaram refúgio no Chile e no Peru, mas, por dificuldades de adaptação, agora tentam reconstruir suas vidas em território brasileiro.

O desafio da integração e a responsabilidade da sociedade
A reconstrução da vida em um novo país é o principal desafio. Além das barreiras linguísticas e burocráticas, há o choque cultural e a necessidade de adaptação a novas normas e valores. No entanto, a maior barreira talvez seja a resistência social à sua presença, alimentada por estereótipos e desinformação.

O Brasil tem uma longa tradição de acolhimento, porém, esta prática não pode ser apenas formal e burocrático. Precisa ser humano, empático e eficaz. A inserção de refugiados na sociedade exige políticas públicas bem estruturadas, programas de capacitação profissional e mecanismos que facilitem o reconhecimento de diplomas estrangeiros e a reintegração desses indivíduos ao mercado de trabalho de acordo com suas competências.

No Memorial da América Latina, temos desenvolvido iniciativas voltadas a esse público, buscando contribuir para sua inclusão cultural e social. No entanto, este artigo não se destina a divulgar essas ações, mas sim a provocar uma reflexão mais profunda sobre a condição do refugiado na sociedade contemporânea. O objetivo aqui não é apresentar soluções pontuais, mas ampliar o debate sobre um tema que exige não apenas atenção governamental, mas sobretudo um compromisso ético e humanitário de toda a sociedade.

O refugiado não é um pedinte. Ele é um sobrevivente. Ele é alguém que foi arrancado de sua terra natal, de sua cultura, de seus vínculos afetivos e profissionais, e que, mesmo diante das adversidades, busca um recomeço digno. Cabe a nós, como sociedade, decidir se queremos ser apenas espectadores passivos desse drama humano ou se estamos dispostos a exercer um papel ativo na construção de um futuro mais justo e inclusivo.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Todo gestor cultural é um ambientalista

Cultura não é apenas o que herdamos, é também o que escolhemos preservar

31/01/2025

A cultura é a espinha dorsal da identidade de um povo. Ela define modos de vida, costumes, crenças e valores que atravessam gerações, moldando o sentimento de pertencimento a uma nação. No caso do Brasil e da América Latina, essa identidade se constrói a partir de uma riquíssima diversidade, em que tradições indígenas, africanas, europeias e asiáticas se entrelaçam, criando um mosaico cultural único.

Mas há um aspecto muitas vezes negligenciado: a cultura não está isolada. Assim como a fauna e a flora definem um território, a produção artística, literária e simbólica de um povo também integra um ecossistema próprio – o meio ambiente cultural. Esse conceito, reconhecido no ordenamento jurídico brasileiro, equipara a preservação da cultura à proteção do meio ambiente natural. Não por acaso, a legislação ambiental trata crimes contra o patrimônio cultural da mesma forma que trata crimes contra a natureza (Lei nº 9.605/1998).

O Brasil é um dos poucos países que reconhecem essa interdependência em sua Constituição. O patrimônio cultural – que inclui desde monumentos históricos até expressões imateriais, como festas populares e saberes tradicionais – é protegido pelo Estado, cabendo ao poder público e à sociedade garantir sua salvaguarda (art. 216 da Constituição Federal). Na prática, isso significa que a destruição de um bem cultural, como uma igreja barroca, uma aldeia indígena ou até mesmo um acervo documental, pode ser considerada um crime ambiental.

Essa abordagem nos leva a uma reflexão interessante: todo gestor cultural, de certa forma, é também um ambientalista. Assim como os defensores da natureza lutam pela preservação de florestas, rios e espécies ameaçadas, quem trabalha com cultura tem a missão de proteger, valorizar e difundir o patrimônio histórico e artístico de um povo. A preservação do meio ambiente cultural é tão fundamental quanto a proteção do meio ambiente natural, pois ambos estão intimamente ligados à identidade de uma sociedade.

O poema “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, de Gonçalves Dias, ilustra bem essa conexão. A identidade brasileira se reconhece tanto na palmeira, árvore que compõe nossa paisagem, quanto no canto do sabiá, pássaro que habita nossas matas. Mas se reconhece, também, na própria poesia. O sentimento de brasilidade evocado pelo poema não existiria sem a cultura que o transformou em um símbolo nacional.

Essa interdependência entre cultura e natureza é especialmente relevante para a América Latina, onde os diversos ambientes – naturais e culturais – exercem influência direta sobre a produção artística e intelectual da região. O sertão de Guimarães Rosa, a floresta de Euclides da Cunha, as paisagens andinas de García Márquez e os pampas de Jorge Luis Borges são exemplos de como a geografia e a cultura caminham lado a lado, nutrindo-se mutuamente.

Diante desse cenário, fortalecer a cultura latino-americana passa necessariamente por uma visão integrada de seus diferentes ambientes. Não se trata apenas de preservar igrejas, festas populares ou documentos históricos, mas de compreender que a cultura e a natureza coexistem em um equilíbrio delicado. Um gestor cultural, assim como um ambientalista, deve estar atento a essa complexidade, garantindo que as futuras gerações possam não apenas contemplar a riqueza do passado, mas também produzir novas expressões que darão continuidade à identidade de nossos povos.

Afinal, cultura não é apenas o que herdamos. É também o que escolhemos preservar.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Cultura como Alicerce para a Integração Regional

10/01/2025

A integração latino-americana não é apenas um ideal geopolítico; ela é uma realidade possível que se fortalece pela cultura, pela cooperação e pela capacidade de cada país da região em enfrentar, juntos, os desafios que o mundo contemporâneo nos apresenta. Durante esses dois anos de gestão à frente da Fundação Memorial da América Latina, nosso trabalho esteve centrado em devolver à instituição sua vocação original como ponte cultural e social entre os povos do continente.

Nos últimos dois anos, promovemos uma série de ações inéditas que resgataram a relevância e a sustentabilidade do Memorial, reforçando sua posição como um espaço de referência na integração latino-americana. Pela primeira vez em sua história, a Fundação Memorial da América Latina apresentou e teve aprovado um plano bianual de captação de recursos, com autorização de arrecadação de R$ 31.8 milhões via mecanismos de renúncia fiscal. Essa iniciativa, inédita na trajetória da Fundação, estabelece um marco para a sustentabilidade institucional, garantindo a continuidade e a expansão de projetos alinhados à missão do Memorial.

Uma das fragilidades históricas da Fundação, a ausência de regularização do terreno onde está situada, finalmente começou a ser resolvida em tratativas avançadas com a CPTM. Este avanço documental assegura à administração pública maior segurança jurídica quanto à destinação e utilização dos imóveis e espaços, representando um ganho significativo para a governança da instituição.

Estabelecemos também uma parceria inédita com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) para a criação de um núcleo de museologia e o cadastramento de todas as peças que compõem o acervo permanente do Memorial. Esse acervo, com mais de 4 mil obras de arte popular latino-americana, idealizado por Darcy Ribeiro, reflete a diversidade cultural da região, com peças originárias de países como México e Peru. O projeto visa preservar e valorizar esse legado inestimável, integrando-o de forma mais eficiente às iniciativas culturais do Memorial.

Celebramos ainda um acordo inédito com a Casa da Venezuela, que tem permitido um atendimento mais estruturado e humanizado à população venezuelana no Brasil. Esse acordo se destaca em um contexto de fluxos migratórios secundários, onde venezuelanos que haviam se estabelecido em outros países latino-americanos, como Peru e Chile, estão buscando refúgio no Brasil devido à qualidade da acolhida. Além disso, promovemos aproximações com corpos consulares de outras nações, como o Haiti, reforçando nosso papel como ponto de apoio à integração social e cultural de imigrantes e refugiados.

Em todas essas iniciativas, nosso foco foi devolver o Memorial da América Latina ao seu papel central como espaço de promoção do diálogo e da cooperação regional. Projetos culturais, parcerias internacionais e uma gestão inovadora têm reafirmado o Memorial como uma referência no cenário latino-americano.

Com base nesses avanços, nossa visão para 2025 está fundamentada na ampliação e consolidação das ações de integração regional. Sob o título Cultura como Alicerce para a Integração Regional, nossos esforços estarão direcionados à promoção de intercâmbios culturais e exposições itinerantes que conectem os países latino-americanos, ao fortalecimento de parcerias internacionais para projetos conjuntos de preservação ambiental e sustentabilidade, e à expansão de acordos voltados ao apoio de populações migrantes, promovendo serviços mais inclusivos e integrados para essas comunidades.

Que possamos continuar fortalecendo a missão do Memorial da América Latina como um espaço de diálogo, esperança e ação. Com a cultura como base, temos a oportunidade de superar barreiras e nos consolidar como o ponto de encontro que celebra as identidades e fortalece os laços que nos unem enquanto região. Que o Memorial volte a ocupar plenamente o local de referência na integração latino-americana que sempre foi sonhado, cumprindo seu papel com vigor renovado.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Dois Anos de Parceria Fecunda em Prol da Cultura Brasileira

06/12/2024

Ao longo dos últimos dois anos, a Fundação Memorial da América Latina consolidou uma parceria singular e extraordinariamente fecunda com o gabinete da deputada Lecy Brandão, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Essa colaboração transcende qualquer polarização política ou ideológica, demonstrando que a cultura é, antes de tudo, uma questão de Estado, acima das divisões partidárias ou governamentais. Essa aliança, pautada pelo respeito mútuo e pela valorização da diversidade cultural, tem sido um exemplo vibrante de como diferentes visões podem convergir em torno de um objetivo comum: fortalecer e celebrar a riqueza cultural do Brasil.

A sinergia entre a Fundação Memorial e o gabinete da deputada Lecy Brandão possibilitou a realização de diversas ações conjuntas que se tornaram referência em inclusão, respeito e valorização das manifestações culturais populares. Entre elas, destaco a celebração do Dia de Ogum, que reforçou a importância das religiões de matriz africana, e os colóquios e encontros dedicados à proteção e divulgação do samba, do hip-hop e de outras expressões culturais que representam a alma do povo brasileiro.

Recentemente, tive a honra de ser homenageado pela deputada Lecy Brandão em um encontro com associações sociais negras de todo o Estado de São Paulo. Esse evento, que reuniu representantes de diversas regiões, foi precedido por uma grande celebração na noite anterior, no Teatro Simón Bolívar, dedicada a homenagear o mundo do samba. A ocasião contou com a presença de diversas lideranças de escolas de samba, representantes de associações de mestres-sala e porta-bandeiras, além de embaixadores e embaixatrizes do samba, cuja participação muito nos honrou no Memorial da América Latina.

Contudo, mais importante que a homenagem material foram as palavras da deputada Lecy Brandão, que, com delicadeza e doçura, segurando minha mão, afirmou: “você é um homem que não faz distinção e respeita todos os seres humanos, independente da cor de pele, da religião ou do viés ideológico. Coloca o amor à cultura popular brasileira acima de tudo.”

Essas palavras representam não apenas um reconhecimento pessoal, mas também um ideal que busco imprimir na gestão da Fundação Memorial da América Latina: a máquina pública não deve ser um palco para embates ideológicos. A arena adequada para o debate de ideias e visões políticas é o poder legislativo, em que o contraditório e a pluralidade de opiniões têm sua legítima expressão.

A Fundação Memorial da América Latina, por outro lado, é um aparelho cultural cuja missão é celebrar a identidade, promover a diversidade e fomentar a união entre os brasileiros. Nosso papel é cultivar a alegria de sermos um só povo, apesar das diferenças que nos enriquecem como nação.

Essa parceria, construída em meio a um momento de intensa polarização na sociedade brasileira, demonstra que é possível superar o embate desgastante e trabalhar juntos em prol de um bem maior. Sob a gestão de um governo de viés conservador, abraçamos, de forma sincera e entusiástica, a colaboração com o PCdoB e o gabinete da deputada Lecy Brandão, mostrando que, quando o amor à cultura e ao povo brasileiro guia nossas ações, as diferenças políticas perdem relevância diante do objetivo comum.

A celebração desses dois anos de parceria é, antes de tudo, um exemplo de como a cultura pode ser uma ponte, e não uma barreira. É o testemunho de que, juntos, podemos construir um Brasil mais unido, diverso e pleno de orgulho de sua riqueza cultural. Que essa união continue a inspirar novas ações e a fortalecer o que temos de mais precioso: a nossa cultura e o nosso povo.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Revitalização dos Centros Expositivos:
Um Desafio Contemporâneo para a Gestão Cultural

08/11/2024

Ao longo das décadas, o papel dos museus e a forma como o público interage com seus acervos sofreram transformações significativas. No passado, a visita ao museu era uma experiência contemplativa, quase cerimonial, em que o silêncio e a observância eram mandatórios. Recordo-me, na minha infância, das visitas organizadas pelas escolas, em que as crianças caminhavam em fila, segurando uma corda, com regras rígidas que muitas vezes transformavam o museu em um espaço restrito e pouco acolhedor para o público infantil. O visitante, então, tornava-se um espectador distante, passivo.

Hoje, o cenário é diferente. A cultura museológica se tornou interativa, buscando um diálogo direto com o público, incluindo as novas gerações. As experiências de visitação se adaptaram à naturalidade das crianças e dos jovens, permitindo que eles interajam e se sintam parte do acervo. O próprio mobiliário dos museus foi repensado: se antes a disposição dos bancos incentivava a contemplação silenciosa, hoje é comum ver visitantes sentados de costas para as obras, tirando selfies e compartilhando nas redes sociais, engajando-se com o acervo de uma forma nova e dinâmica.

Essas mudanças exigem que os museus se reinventem para atender às novas demandas, sem perder de vista a preservação e o registro meticuloso de seus acervos. A gestão de uma instituição cultural, como o Memorial da América Latina, enfrenta o desafio constante de atualizar sua linguagem expositiva para dialogar com o público contemporâneo. A adaptação dos espaços e o uso da tecnologia são essenciais para a criação de mostras que se conectem com visitantes de todas as idades, garantindo um ambiente acolhedor e educativo, que inspire a descoberta e a apreciação da cultura.

Para que essa interação se mantenha em equilíbrio, o Memorial da América Latina, assim como outras instituições culturais, necessita de um acervo devidamente catalogado, com uma reserva técnica bem estruturada e um banco de dados eficiente. Essa organização facilita o intercâmbio de peças e o empréstimo de obras, possibilitando exposições temporárias que enriquecem a experiência dos visitantes e ampliam o alcance do diálogo cultural. Além disso, o registro detalhado da procedência das obras – o provenance – é um elemento fundamental, preservando a trajetória histórica de cada peça e o contexto de sua aquisição.

A Fundação Memorial da América Latina, projetada pelo antropólogo Darcy Ribeiro para celebrar a identidade latino-americana, possui uma coleção robusta, com mais de quatro mil obras de arte popular de países como México e Peru. É um patrimônio inestimável que requer uma atualização constante, tanto em sua gestão quanto em sua exposição ao público. Este é um trabalho que exige atenção e uma visão ampla da responsabilidade que carregamos.

O Pavilhão da Criatividade é um dos espaços mais importantes do Memorial, onde muitas crianças, ao visitarem o acervo, se percebem como parte de uma cultura latino-americana. Esse despertar de identidade é algo poderoso e que reflete o valor de nosso trabalho. É minha intenção, ao fim da gestão, entregar um centro expositivo que seja moderno e alinhado com as linguagens e os avanços culturais mundiais, proporcionando uma experiência envolvente e educativa para todos os públicos, especialmente para as novas gerações.

Reitero a importância de uma abordagem inovadora e de uma atualização contínua nos museus. O que buscamos é um equilíbrio, uma experiência que permita a interação sem comprometer a integridade e a memória histórica das obras. É um caminho de desafios, mas é também uma jornada gratificante para quem, como eu, vê no Memorial da América Latina um espaço vibrante de celebração cultural e identidade.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Arte e Proteção ao Patrimônio Cultural – minha trajetória pessoal até a presidência da Fundação Memorial da América Latina

18/11/2024

Com 56 anos de idade, ao olhar para trás em minha trajetória, reconheço o quanto fui privilegiado por ter nascido em um ambiente imerso no colecionismo de arte. Meu pai, um importante colecionador de arte moderna, semeou em mim o interesse e a paixão pelas belas artes desde muito cedo. Nossa casa, repleta de obras de arte, não era apenas um local de moradia, mas também um espaço de convívio com alguns dos maiores expoentes da cultura brasileira, durante toda minha infância e adolescência.

A convivência com figuras como Alfredo Volpi, Aldo Bonadei, Francisco Rebolo, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Bruno Giorgi, Rubem Valentim, Tomie Ohtake, Manabu Mabe, Sérgio Camargo e José Antônio da Silva, entre outros tantos, foi fundamental para a formação do meu olhar artístico e do meu entendimento sobre o papel das artes visuais na construção de uma identidade cultural. Crescer entre esses artistas me permitiu não apenas testemunhar a criação de obras que hoje ocupam um lugar de destaque na história da arte brasileira, mas também entender o processo criativo e a dedicação necessária para transformar ideias em arte. Mas não só nas artes visuais, levado pelas mãos por meu pai, convivi com o poeta imortal Lêdo Ivo, conheci Jorge Amado e Zélia Gattai, participei de almoços memoráveis com Oscar Niemeyer no antigo hotel Ca’d’Oro.

Essa exposição precoce ao mundo das artes não só impactou minha sensibilidade artística, mas também moldou a minha vida profissional. Desde cedo, entendi que a administração de uma coleção importante envolvia responsabilidades que iam muito além do simples ato de adquirir obras. Assim, formei-me advogado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especializando-me em direitos autorais, um campo essencial para a proteção e gestão do patrimônio artístico e cultural. Cultivei formação pessoal multidisciplinar e hoje sou Pós Doutor em Antropologia Social.

Minha trajetória profissional acabou sendo direcionada para o campo da museologia e da gestão cultural, e, ao longo dos anos, tive a honra de presidir diversas instituições culturais que desempenham um papel crucial na fruição e preservação da arte. Entre essas, destaco o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), então ligado à Universidade de São Paulo (USP), que conta com um acervo de 17 mil documentos relacionados à vida e obra de alguns dos mais importantes artistas modernistas brasileiros, como o escultor Sérgio Camargo, a artista plástica Mira Schendel, Willys de Castro e Hércules Barsotti. O IAC desempenha um papel central na pesquisa acadêmica e na preservação de documentos que são essenciais para a compreensão do modernismo no Brasil.

Além do IAC, presidi a Associação dos Amigos do Museu de Arte Contemporânea da USP (AAMAC), uma instituição dedicada à promoção e apoio ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Essa experiência foi fundamental para aprofundar meu entendimento sobre a gestão museológica e a importância de garantir que as coleções e suas histórias sejam preservadas e tornadas acessíveis ao público. Participei intensamente do processo de humanização do antigo prédio do Detran de SP, convertido em nova sede do MAC/USP, sendo certo que, de todos os esforços dispendidos, orgulho-me da implementação do restaurante Vista na cobertura do museu, hoje bastante festejado e incorporado na vida da cidade. Pudemos restabelecer o acesso com o Parque do Ibirapuera, revitalizado a passarela Ciccillo Matarazzo em conjunto com uma aprazível cafeteria, atraindo assim, de modo espontâneo, os usuários do parque para dentro do museu. Um salto na visitação daquele que era um museu universitário.

Outro capítulo importante da minha carreira foi a atuação como vice-presidente da Comissão de Direito às Artes da OAB de São Paulo, em que pude contribuir para a discussão e formulação de políticas voltadas à proteção das artes no campo jurídico. Atuei como Assessor Técnico Procurador do Estado, por sete anos, junto ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), principal órgão de fiscalização e controle de diversos entes estatais. Paralelamente, minha experiência me levou a atuar em diversos conselhos de museus de renome, como o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Museu Lazar Segall. Também fui um dos implementadores e conselheiro do Museu Judaico de São Paulo, uma instituição que preserva e valoriza a cultura judaica no Brasil. Meu compromisso com a proteção do patrimônio cultural me levou ainda a atuar como diretor jurídico e conselheiro do Projeto Leonilson, dedicado à memória do renomado artista visual José Leonilson.

Entre os projetos mais significativos que tive a honra de liderar, destaco minha atuação como sócio fundador e ex-presidente do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna. Durante minha gestão, organizamos a primeira grande retrospectiva do artista na Europa, realizada no Museu Nacional de Mônaco. A abertura do evento pela princesa Caroline foi um dos momentos mais marcantes da minha carreira, e a repercussão internacional foi significativa. A crítica especializada na Itália comparou Volpi ao pintor Giorgio Morandi, destacando a relevância de sua obra no cenário artístico global. O sucesso da exposição em Mônaco também resultou na criação de uma sala especial dedicada a Volpi na Fundação Cartier, em Paris, consolidando ainda mais o legado do artista no circuito internacional de arte. Em ato contínuo, realizamos exposições também no USA. Não é demasiado lembrar que trabalhei diretamente na implementação e desenvolvimento dos catálogos Raisonné de Volpi e de Leonilson, atuando inclusive nas respectivas comissões catalogadoras, ambos instrumentos bastante respeitados no Brasil e exterior.

Minha trajetória no campo da museologia e gestão cultural tem sido amplamente reconhecida e premiada. Entre as honrarias que recebi, destaco a maior comenda concedida pelo Senado Federal da República, a Comenda Câmara Cascudo, em reconhecimento à minha contribuição para a preservação e divulgação da cultura brasileira. Também fui agraciado com o título de doutor honoris causa em proteção ao patrimônio cultural brasileiro pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Além disso, fui indicado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA) ao Prêmio Ciccillo Matarazzo, como a personalidade mais atuante na divulgação e preservação da cultura brasileira. Sou membro efetivo do ICOM – International Council of Museums, braço da UNESCO para a museologia.

Minha trajetória me levou a ser indicado para a presidência do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), uma autarquia federal responsável pela formulação de políticas públicas para o campo da museologia nacional, onde permaneci por três anos, sendo o segundo presidente mais longevo da história da instituição. Na minha gestão, dentre outras realizações, firmamos inédito acordo de cooperação com o BNDS para a modelagem e formatação do Fundo Patrimonial – Endowments para o setor da museológico nacional; regularizamos a proteção ao patrimônio já musealizado com obras civis e obtenção de alvarás do corpo de bombeiros para diversos museus federais; criamos um circuito para museus militares e atuamos diretamente na implementação do novo museu naval no RJ. No Governo Federal, também atuei no Conselho do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em que participei das câmaras de proteção à propriedade material e imaterial. Fui membro efetivo do Comitê Gestor do Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça, convertido em grande agente de fomento de atividades culturais, entre outras atividades voltadas à preservação e promoção do patrimônio cultural brasileiro.

Foi em Brasília, durante minha atuação no IBRAM, que conheci o então ministro Tarcísio de Freitas. Nossa relação profissional se consolidou quando fui convidado para integrar a equipe de transição após sua nomeação como governador de São Paulo. Após o trabalho na transição, recebi o convite para presidir a Fundação Memorial da América Latina, por um mandato de quatro anos.

A presidência da Fundação Memorial da América Latina é um desafio especialmente estimulante, pois a instituição, idealizada por Darcy Ribeiro e projetada por Oscar Niemeyer, possui características multidisciplinares. Aqui, além de um museu com mais de sete mil obras de arte popular dos povos latino-americanos no centro expositivo titulado Pavilhão da Criatividade, também somos uma cátedra da UNESCO voltada à educação e mantemos uma importante interlocução com 18 corpos consulares de países da América Latina. A combinação dessas múltiplas frentes de atuação torna a missão da Fundação única e exige uma visão estratégica que combine cultura, educação e diplomacia cultural.

Toda essa trajetória, construída sobre uma base sólida de amor e dedicação à cultura, me traz hoje à liderança do Memorial da América Latina, uma instituição que simboliza a unidade e a riqueza cultural da América Latina, e me desafia a continuar trabalhando para a preservação e promoção das artes e da cultura no Brasil e além.

Pedro Machado Mastrobuono
Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina