Diretor cultural da Fundação Memorial da América Latina

Feridos – Contos da Pandemia - Helena

07/03/2025

“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”
(Clarice Lispector) 

 

CAPÍTULO I – A ROTINA

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6:00h
“mais um dia…”
Não sei se dou conta.

Porque é tão difícil?

Não tou falando do trabalho… O trabalho eu faço, dou conta. Até gosto, na verdade… são só planilhas…
Não entendo terem tanta dificuldade com isso…
Sorte minha.

O difícil é abrir os olhos e pensar: “mais um dia”.
Isso, não sei se dou conta… que luta!

Banho tomado.
Maquiagem… básica é claro.
Café requentado.

O pão de ontem ainda tava bom… e tem muito…
Será que guardo pra amanhã? Guardo! Fica bom na airfryer… azeite e tomate… hmm
Devia ter feito assim hoje.

Engordei… mas tava magra. Tanto faz….

Ponho roupa além da que gosto de usar. Decote, nem pensar.
Queria matar aqueles tarados todos do ônibus.
Que nojo dessas pessoas…

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– Quer que eu segure sua bolsa, moça?

“Não, obrigada!”

O que esse cara tá querendo com minha bolsa? Todo dia isso.
Podia era me dar o lugar dele. Tou velha já.

O próximo que passar roçando vai ouvir…
(Nunca falo nada… queria ter energia pra isso)

Ai, minha perna… cansaço…

8:30h
Elevadores… são só outro tipo de coletivo … Menor e na vertical… muito menor…

Não gosto de elevadores, metem medo.
E se parar, vou ter que ficar presa com essas pessoas?
Aff! São só 5 minutos.
Por que o tempo demora tanto pra passar?
Por que tem que parar em todos os andares?

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– Qual o seu andar, moça?
“…23”.
(como se ele não soubesse. E por que está me encarando? O que é isso saindo da orelha dele?)

– Oi, bom dia! Tudo bem? Você é a menina que trabalha no 23º, né? Sempre te vejo quando passo por lá. Tudo bem?
Sou o Jardel, da correspondência…

“ … bom dia”.

(Fones de ouvido. Amanhã não posso esquecer)

Por que esse povo insiste em cumprimentar a gente? Não me conhecem, não quero que me conheçam e não quero conhecer ninguém… é muita informação sem necessidade!

Saudades do Nico, minha melhor companhia sempre.
Os gatos deviam mesmo ter sete vidas… ou nove…
Merecem mais do que essa gente que não significa nada.
Nem sei porque nasce tanta gente no mundo.

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Meu Nico…

Din-don! (o som da salvação!)
– 23! Alguém desce?
Filho da mãe! Ficou parado na porta só pra se esfregar…
(Preciso do emprego, preciso do emprego).

Tento chegar na minha mesa sem chamar atenção, e os olhares dos colegas ficam me cobrando um “bom dia” que não vou dar.
(Hoje não, malditos!)

Só quero sentar na minha mesa e me esconder no meio de tanto papel inútil.
(Pobres árvores…)

“Não obrigada, já tomei café”.

Por que acham que vou comer coxinha de manhã? É a

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morte empanada. Morte de um bichinho e a minha também, chegando embalada em farinha de trigo e com muita gordura. Me deu vontade de comer, mas não vou… mais em respeito ao cadáver desfiado do que por mim mesma… mas tá com a cara tão boa… Fome!

12:00h
“Não vou, não. Tenho muito trabalho”.
(Não, não quero almoçar com eles. Que sofrido!)

Tou com enjoo.
Labirintite aos 30 anos é triste. Vou ter que diminuir o refrigerante… ou o energético… talvez parar de fumar…
Não sei o que ainda faço nessa vida.
Tudo o que eu queria era um pouco de paz…

Quem deixou esse chocolate pra mim? Que grande! É o terceiro esta semana…
Será que é por isso que tou engordando?

14:00
– quer um cafezinho, Helena?
“…”
Quantas vezes mais vou ter que responder com meus silêncios?
Que cansaço…

“Não, não tenho filhos e nem quero ter! Não é porque você tem 3 que é a dona da verdade do mundo. Não vou ser mais feliz ou realizada porque tenho filhos ou me casando… aff!”

Essa Juliana não se enxerga. Quer cuidar da vida de todo mundo. Não sabe nada da minha vida e quer ditar regras.

O bom é que com ela posso explodir de vez em quando e dizer o que penso.
(Nem tudo, é claro, senão era demitida na hora).

“Não, cara! Não preciso de sua ajuda, desencosta! ”

Não sei mais o que fazer. Ainda passo pela puta que não sabe dar limites. Um dia ainda mostro pra todo mundo os prints das escrotices que esse babaca me manda.
(Pra quê, né? Ninguém dá bola pra isso mesmo)

– Homem é assim mesmo. Ele só tá brincando.
(Bando de homem sem noção e mulher que ainda dá razão).

(Quero ir pra casa!!!)

Enquanto isso, o tempo passa lento, e as pessoas passam, só passam… não deixam nada… E se deixassem, também não ia querer… não preciso…

18:00
Elevador, ônibus… agora, todos com aquele olhar cansado, distante… pelo menos tão mais quietos…
O que que esse cara tá olhando?
Nojo…

CAPÍTULO II – A NOTÍCIA

20:00
Será que passo na padaria, antes de subir? O pão tá velho…
De onde vem esse miado?

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“Pss pss pss… pss pss pss…. vem cá, gatinho!!!”
“Oh, meu Deus! Tão pequeninho e magrelo!”
“Vem com a mamãe, meu filho… vem!”

Não sei que mundo é esse que não protege essas criaturinhas.
Todo lascadinho, tadinho. Não mais!
“Vem que vou te cuidar!”

Ainda tem comida do Nico em casa. Hoje, menos uma criatura largada nas ruas… O Nico ia gostar de saber… Meu Nico…

Minha mãe vai é me dar uma bronca. Mal sobra dinheiro pra eu comprar os remédios dela e lá vamos nós com despesa de veterinário, antipulga, ração…
Que seja… ninguém é por ele. Eu sou….
“Carlitos!!! Agora você é o meu Carlitos!”

Que idiota deixa um bichinho assim nas ruas?

21:00
Que saco!!! Não tenho paz nem em casa?
O que é pra eu ver na TV a essa hora?
Devia ter deixado o celular no silencioso… Pandemia? Que pandemia?

“Carlitos!!!”
Onde se enfiou esse menino?
“Vem com a mamãe, filho” … pequenino e bagunceiro. Aqui pode, a casa é sua.

– Alô, Helena? É o Jardel, da Correspondência… lembra de mim? Falei contigo no elevador outro dia… Agora tou trabalhando direto com o chefe. Não precisa vir amanhã, não. O Dr. Figueiredo disse que é pra todo mundo ficar em casa esta semana. É, tem uma tal de pandemia que tá matando todo mundo. Ele vai explicar amanhã. Você tem aplicativo de teleconferência? Também não sei o que é isso, mas ele vai explicar… Você está bem?

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22:00
Ligo a TV…
– A morte que vem pelo contato, barreira sanitária, taxa de transmissão, confinamento, estado de calamidade, teletrabalho, use máscara, lockdown, vacina, protocolo, sequelas, auto isolamento, resiliência, distanciamento social…. Fique em casa!”

Acendo um cigarro, abro a janela e contemplo a noite.
Me preparo para dormir com um sorriso no rosto.
“Bons sonhos, Heleninha!”, me permito dizer…
Dou um beijo no Carlitos… “boa noite, filho!”

E o sono vem fácil…

CAPÍTULO III – LIBERTAÇÃO

08:00h
Perdi a hora? Não… que coisa boa!
É disso que se trata a felicidade, Carlitos?
“Já comeu, meu filho? Bom dia!!!”
(tá lindão, meu filhinho!)

Receber esse carinho, sem julgamentos, sem outra intenção além do amor verdadeiro… Ah, como eu amo essas criaturas!!!

Acho que eles são outro estágio da evolução. Sabem tudo, sentem tudo, não pedem nada….

– Oi, Helena, bom dia! É o Jardel da Correspondência… lembra de mim? O Dr. Figueiredo pediu que a senhora cuidasse dos relatórios de vendas.
A senhora pode ligar a câmera do seu monitor? Não? Tá bom, é que fica estranho essas reuniões sem a gente ver quem está do outro lado.
Quebrou, é? Se precisar, tenho um técnico bom pra indicar… é o primo de um amigo meu…
Não precisa? Ok…

Um mês dessa tal pandemia. Estou no paraíso? E o que eu vou fazer bom hoje?

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Chegaram as telas! Vamos de aquarela!
Sempre quis tentar um quadro…
Melancias? Não, hoje vou fazer um cogumelo…

Nunca pensei que pudesse viver assim… faço o que quero, na hora que quero, da maneira que quero. Cumpro meus compromissos de trabalho, com mais capricho do que eu fazia antes. Não tem ninguém me assediando, ou cagando regras, ou curiando minha vida…

Faz tanto tempo que eu não me pegava assim, emocionada com a vida, com a minha vida, com as coisas da minha casa, meus bibelôs, minhas plantinhas, meus filmes…

– Oi, Helena, boa noite! O Dr. Figueiredo disse que deu tudo certo com os relatórios. A turma está querendo fazer uma festa virtual e pediu pra eu ver contigo se quer participar. Não? Catapora? Entendo.
Vou falar com eles. Fica pra outra vez, né? Você está bem?
Não consertou a sua câmera ainda? Vou mandar de novo o contato de um técnico que eu conheço.
É primo de um amigo meu…
Helena? você tá aí?

CAPÍTULO IV – ADAPTAÇÃO

Faz três meses que não saio de casa.
Será que mando um cartão de cumprimentos pra quem inventou o delivery?
Nada… deve estar rico! Eu podia ter pensado nisso…

Esse menino entrega até que é legal…
Só deixa a comida, confere de longe que peguei tudo, dá um tchauzinho e um sorriso… Que discreto…

Sacanagem pagarem só R$ 2,00 pra ele por entrega.
Ficou 3 horas numa fila de supermercado pra fazer minhas compras. Isso é exploração demais…
(Todo mundo tem um Dr. Figueiredo na vida. O dele é um pouco pior que o meu)
Não custa dar uma gorjeta melhor pro menino, né Carlitos?

(Nossa! Nem sou de ligar pra isso, mas o menino ficou numa alegria só, tadinho. Chorou!)

Calma Carlitos, é só você que eu amo!
Saudades do Nico…

Faço o meu trabalho e ganho elogios que não ganhava quando ia praquele martírio.
Acho que faço as coisas com mais alegria agora.

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Cozinho minhas comidinhas, me visto como quero sem ter que ouvir abusos, curto o meu Carlitos, meu bom amiguinho… meu filho.

Tenho plantas! E eles estão tão lindas!
Como é que eu vivia antes sem isso?
(Vivia?)

Comida caseira faz bem… aprendi umas coisinhas bem legais.
Acho que perdi uns quilos. Ou ganhei… tanto faz….

E viva o Youtube!
Gostei do programa de yoga.

O que vou assistir hoje?
Até os shows estão dentro de casa…

“Olha, Carlitos! Vamos assistir as estrelas!”
“O Nico tá lá olhando pra gente! … Meu Nico…”

Isso tem que durar pra sempre!

Enfim, a paz!

CAPÍTULO V – O FIM DO MUNDO… Do meu Mundo… 

– Helena! Tudo bem?
Você viu as notícias? Acabou!!!
O Dr. Figueiredo mandou avisar que podemos voltar ao trabalho!
Que alegria!!!
Helena? Lembra de mim… Jardel!
Te vi lá no 23º… conversamos no elevador… Helena?

Você gosta de chocolate?
Helena?

CAPÍTULO VI

6:00h
Porque é tão difícil abrir os olhos e pensar:
“mais um dia”.
Não sei se dou conta.

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João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

Torto Arado: um convite à reflexão

14/02/2025

Livro Torto Arado (Foto: Reprodução)

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, é uma obra que se destaca em muitos aspectos, cativando desde a leitura de suas primeiras páginas por sua linguagem visceral e envolvente, e que nos faz render o merecido reconhecimento pelas múltiplas camadas da ambientação da trama, impactante e necessária à reflexão e à compreensão das complexidades sociais e históricas do Brasil.

A profundidade com que trata a luta pela terra, o racismo estrutural, a exploração do trabalho e a busca por liberdade e dignidade, com uma narrativa poética e, ao mesmo tempo, realista, oferece uma visão única a partir da ótica de um grupo invisibilizado pela sociedade, dando-lhes cor, forma, cheiro e até mesmo sabor, por vezes amargo, mas sempre com um doce a ser buscado e revirado no fundo do copo, conferindo à obra o papel de representatividade e vetor de resistência.

Itamar Júnior ambientou sua trama na fictícia Água Negra, uma fazenda no árido sertão da Bahia, no final do século XX, dando vida às histórias de um povo que tem nas irmãs Bibiana e Belonísia personagens centrais, como símbolo da luta de uma comunidade quilombola pelos seus direitos enquanto trabalhadores rurais.  As protagonistas enfrentam desafios diários em um ambiente hostil, marcado pela seca, pela pobreza e pela violência.

As duas personagens compartilham um forte vínculo, consolidado após um acidente na infância, que muda completamente suas vidas, deixando Belonísia sem poder falar para sempre, o que não a impede de ser exemplo de poder de comunicação e conexão com o mundo a seu redor, por vezes valendo-se da voz de sua irmã para isso.  Bibiana, por sua vez, é levada a uma posição de liderança natural na resistência cultural e na busca por identidade, tudo isso permeado na trama por uma atmosfera de realismo mítico.

Um dos pontos altos do livro é a construção das personagens. Itamar Junior dá vida a figuras complexas, que evoluem ao longo da narrativa e cativam pela sua humanidade e resiliência. As protagonistas, em especial, são o coração pulsante da história, e sua jornada de autodescoberta e de resistência é comovente e inspiradora.

O romance é estruturado em capítulos que nos remetem ao tempo presente e ao passado, revelando aos poucos a trajetória das personagens e os fatos que marcam suas vidas. Essa construção permite ao leitor uma visão mais clara das motivações e dos traumas que norteiam as ações e as escolhas das protagonistas, além de proporcionar uma deliciosa viagem de descoberta e reflexão.

Além das protagonistas, a obra apresenta outros personagens que nos dão um retrato rico e complexo do sertão baiano. São figuras fortes que representam diferentes aspectos da realidade local, desde os trabalhadores explorados até os detentores do poder e da terra. A morte de um desses personagens é um divisor de águas na trama, dando rumo e consolidando o papel das protagonistas junto à comunidade.

A trama é estruturada com maestria, com reviravoltas surpreendentes que nos mantêm engajados até a última página.  Também se destaca pela sua dimensão histórica e social, trazendo reflexões sobre a formação da identidade brasileira e as cicatrizes deixadas pela escravidão. Itamar Júnior aborda essas questões com sensibilidade e profundidade, sem cair em simplificações, comuns em abordagens temáticas menos preocupadas ou comprometidas com o contexto e realidade sociais.

Tal qual um instrumento defeituoso de arar a terra, que para ter serventia é necessária uma carga extra de esforço, aquelas vidas têm que se seguir seu rumo com as dificuldades e mazelas que lhe são injustamente impostas.

O desfecho de Torto Arado é impactante e reflexivo, levantando questões sobre as cicatrizes históricas e sociais do Brasil e a importância da resistência e da esperança diante da opressão. O livro se consolida como uma obra necessária e transformadora, que convida o leitor a olhar para as raízes do país e a lutar por um futuro mais justo a todos os brasileiros.

Sem dúvida, é uma leitura essencial para quem busca compreender melhor o Brasil profundo e se deixar tocar por uma história de resistência, amor e esperanças, se destacando pela sua relevância temática, pela rica construção dos personagens e pela linguagem poética e envolvente. Uma obra que já nasce como um clássico da literatura brasileira contemporânea e que merece ser amplamente lido e discutido.  O livro tem o poder de nos fazer refletir sobre nossa própria trajetória e a de nosso país.

Em suma, Torto Arado é um romance poderoso e comovente, que mergulha na realidade do sertão baiano para contar uma história de amor e resiliência, através da imagem de mulheres que expressam a memória da comunidade, com ênfase nas desigualdades raciais, sociais e de gênero, e da luta e resistência ancestral do povo quilombola.

Com personagens marcantes, temas relevantes e linguagem cativante, a obra de Itamar Vieira Junior firma-se como o ‘novo’ na literatura brasileira, vertendo-se em parâmetro para muitos dos atuais e dos futuros escritores e romancistas.

(Foto: Giovanni Marrozzini, que inspirou a ilustração da capa de Torto Arado, de Linoca Souza)

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

Memorial da América Latina: Um Legado de Diversidade e Criatividade

17/01/2025

Ao completar 35 anos, o Memorial da América Latina reafirma sua relevância como centro de integração e difusão cultural na cidade de São Paulo. Este marco histórico, idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro e materializado pelo gênio arquitetônico de Oscar Niemeyer, não apenas se destaca por sua estrutura monumental, mas também por sua missão contínua de celebrar e promover a diversidade cultural dos povos latino-americanos. Como Diretor de Atividades Culturais, pude contribuir nos últimos 2 anos para essa evolução, testemunhando a transformação do Memorial em um catalisador de inovação e criatividade cultural.

Fundado em 18 de março de 1989, o Memorial ocupa uma área de mais de 84 mil m², com 12 mil m² de área verde. Este espaço abriga nove edificações que são verdadeiros ícones culturais, como o Pavilhão da Criatividade Darcy Ribeiro, a Galeria Marta Traba e a Biblioteca Latino-Americana Victor Civita. Cada um desses espaços desempenha um papel vital na preservação e promoção da cultura latino-americana, oferecendo um palco vibrante para uma ampla gama de expressões artísticas e intelectuais.

Nos últimos anos, nossa equipe tem se dedicado a resgatar a missão original do Memorial, que é valorizar a cultura popular como elo de identidade entre os povos latino-americanos. Esse compromisso se manifesta em uma série de iniciativas que celebram a riqueza de nossa ancestralidade, promovendo discussões públicas que não apenas destacam nossa diversidade cultural, mas também combatem ativamente discriminações raciais, religiosas e outras formas de preconceito que ainda persistem em nossas sociedades. O Memorial, hoje, se apresenta não apenas um espaço de exposição e eventos, mas também um ponto de encontro e diálogo entre culturas.

A

A aproximação estratégica com os consulados latino-americanos em São Paulo tem sido um aspecto crucial de nossa atuação recente. Essas parcerias resultaram em ações culturais vibrantes que vão além da mera exibição de tradições. Elas criam um ambiente acolhedor para imigrantes, turistas e refugiados, ajudando a mitigar choques culturais e promovendo uma integração mais harmoniosa. Através dessas colaborações, o Memorial se transforma em um espaço de acolhimento e celebração, onde todos podem se sentir parte de uma rica tapeçaria cultural.

Como um equipamento público tombado pelo CONDEPHAAT e pelo CONPRESP, enfrentamos o desafio constante de equilibrar a preservação de nosso patrimônio histórico com a necessidade de inovação e adaptação às demandas contemporâneas. Todas as atividades realizadas em nosso espaço são cuidadosamente supervisionadas por nossas equipes de produção, garantindo que mantenhamos o padrão de excelência pelo qual somos reconhecidos, enquanto buscamos formas criativas e responsáveis de utilizar nossos espaços.

A sustentabilidade econômica é um aspecto que não podemos ignorar, e a cessão onerosa de nossos espaços desempenha um papel importante nesse sentido. No entanto, mantemos um compromisso inabalável de garantir que essa dimensão econômica nunca se sobreponha às dimensões simbólica e cidadã de nossa missão. Cada evento realizado no Memorial deve estar alinhado com nossos princípios e valores, contribuindo para o enriquecimento cultural de nossa comunidade.

O reconhecimento recente do Guia Folha de São Paulo, com uma menção honrosa, destaca nossa contribuição significativa para a economia criativa e o cenário cultural da cidade. Nossa capacidade de realizar eventos de grande porte, incluindo shows para mais de 15 mil pessoas, não apenas movimenta a economia local, impactando positivamente o turismo, a rede hoteleira e o setor gastronômico, mas também reafirma nosso papel como um polo cultural de relevância nacional e internacional.

Além disso, a criação da Revista Memorial Cultural, sob nossa direção, e o fortalecimento da já estabelecida Revista Nossa América são iniciativas que ampliam significativamente nosso alcance. Esses veículos não apenas divulgam nossas atividades, mas também servem como plataformas para estimular reflexões culturais importantes, contribuindo para o debate intelectual sobre a identidade e o futuro da América Latina.

Minha formação em jornalismo cultural e de entretenimento pela Belas Artes (SP), complementada pela especialização em gestão cultural e indústria criativa pela PUC-RJ, tem sido instrumental na implementação de estratégias inovadoras em nossa diretoria. Uma dessas iniciativas foi a criação de uma gerência específica para elaboração de projetos, que nos permite alinhar nossas ações de forma mais efetiva com as políticas públicas estaduais, reforçando nosso papel como agente de mudança e inclusão social através da cultura.

O Memorial abriga um acervo impressionante que inclui mais de 50 mil livros e documentos, além de cerca de 3.600 obras de arte popular latino-americana. Esta coleção, que vai dos poemas de Pablo Neruda ao Painel Tiradentes de Portinari, e dos alebrijes mexicanos às noivas de Izabel Mendes da Cunha, é um testemunho vivo da infinita riqueza cultural de nossa região. Nosso compromisso é não apenas preservar este acervo, mas torná-lo cada vez mais acessível e relevante para as novas gerações.

Olhando para o futuro, nossa meta é continuar expandindo o legado do Memorial da América Latina. Queremos ser reconhecidos não apenas por nossa história gloriosa, mas pela nossa capacidade de nos reinventarmos constantemente, permanecendo relevantes e vibrantes no cenário cultural contemporâneo. Nos próximos anos, planejamos intensificar nossas iniciativas de inclusão digital, expandir nossas parcerias internacionais e desenvolver programas educacionais inovadores que conectem jovens de toda a América Latina.

O Memorial da América Latina é mais que um conjunto arquitetônico impressionante; é um universo cultural em constante evolução, onde a diversidade e a criatividade latino-americana são celebradas e reinventadas todos os dias. Convido todos os leitores a explorarem este espaço único, onde cada visita é uma jornada fascinante pela rica tapeçaria cultural de nossa América Latina. Aqui, o passado, o presente e o futuro de nossa identidade cultural se encontram, criando experiências inesquecíveis e inspirando novas gerações a abraçar e celebrar nossa herança comum.

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

Política e Sustentabilidade Ambiental na Moda

03/01/2025

A moda, muito além de sua vocação mercadológica e de seu posicionamento frequentemente tido como superficial, é, de fato, um importante termômetro social e reflexo da sociedade em que vivemos. Através do vestuário, desfiles e campanhas, a indústria da moda tem demonstrado sua capacidade de discutir e refletir temas cruciais de nosso tempo, funcionando como um espelho das mudanças sociais, políticas e culturais.

Historicamente, a moda tem sido um veículo de expressão de ideias e valores. Desde os movimentos de contracultura dos anos 1960 até os dias atuais, o vestuário tem sido utilizado como forma de protesto e manifestação de ideologias. Um exemplo claro disso é o uso de roupas como símbolos de movimentos sociais, como o “pussy hat” nas manifestações feministas contra o presidente Donald Trump em 2017, ou a adoção de vestimentas tradicionais por grupos indígenas e quilombolas como forma de afirmação cultural e resistência.

No contexto da indústria da moda, vemos cada vez mais designers e marcas abordando questões sociais relevantes em suas coleções e campanhas. A Vogue Itália, por exemplo, dedicou uma edição inteira em 2008 a modelos negras, destacando a importância da representatividade na moda. Mais recentemente, marcas como Gucci e Balenciaga têm usado suas plataformas para discutir temas como sustentabilidade, diversidade e inclusão.

A questão ambiental, um dos temas mais urgentes de nossa época, tem sido amplamente abordada pela indústria da moda. O conceito de slow fashion surgiu como uma resposta direta aos problemas causados pelo fast fashion, promovendo uma abordagem mais sustentável e ética para a produção de roupas. Al Gore, em seu livro “Uma Verdade Inconveniente: O que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global”, alerta que “o aquecimento global causado pelo homem não só existe realmente, como está se tornando cada vez mais perigoso. Ele avança a um ritmo tal que já se tornou uma verdadeira emergência planetária” (1).

A gravidade da situação é reforçada por dados alarmantes sobre o consumo e o impacto da indústria da moda. Peter Stallybrass, em seu livro “O Casaco de Marx: roupas, memória, dor”, destaca a complexa relação entre roupas, identidade e memória, observando que “As roupas recebem a marca humana” (2). As roupas não são apenas objetos de consumo. Carregam significados culturais e emocionais profundos, o que torna ainda mais urgente a necessidade de abordar os problemas de sustentabilidade na indústria da moda.

Iniciativas como o uso de materiais reciclados, a redução do desperdício e a adoção de práticas de produção mais sustentáveis são cada vez mais comuns entre as marcas de moda. O uso de materiais alternativos como seda selvagem, algodão orgânico, linho, cânhamo e liocel surge como opções mais sustentáveis. Além disso, práticas como a compra de roupas de segunda mão e o aluguel de peças são apresentadas como soluções potenciais para mitigar o impacto ambiental da indústria.

A moda também tem sido um campo fértil para discussões sobre identidade de gênero e diversidade corporal. Desfiles e campanhas que desafiam os padrões tradicionais de beleza e gênero têm se tornado mais frequentes, refletindo mudanças sociais mais amplas em relação a esses temas. A inclusão de modelos plus size, transgêneros e com deficiências em campanhas e desfiles de moda é um reflexo direto das demandas sociais por maior representatividade e inclusão.

Um aspecto crucial é a questão do racismo ambiental. Comunidades marginalizadas, especialmente populações negras e indígenas, são desproporcionalmente afetadas pelos impactos negativos da indústria da moda e das mudanças climáticas. Isso ressalta a importância de considerar não apenas os aspectos ambientais, mas também as implicações sociais e éticas das práticas da indústria.

A moda também tem sido um meio de expressão política. Designers como Vivienne Westwood e Katharine Hamnett têm usado suas coleções e desfiles como plataformas para expressar opiniões políticas e chamar a atenção para questões sociais. A camiseta com a frase “We should all be feminists” da Dior, inspirada no ensaio de Chimamanda Ngozi Adichie, é um bom exemplo de como a moda pode amplificar mensagens políticas e sociais importantes.

É importante reconhecer que a indústria da moda ainda enfrenta desafios significativos em termos de práticas éticas e sustentáveis. O fast fashion continua sendo uma grande preocupação, com seu impacto negativo no meio ambiente e nas condições de trabalho. Problemas como o trabalho forçado e infantil em vários países produtores, em que a busca por uma produção rápida muitas vezes se sobrepõe ao bem-estar dos trabalhadores, persistem.

A apropriação cultural e a falta de diversidade em posições de liderança na indústria são questões que ainda precisam ser abordadas de forma mais efetiva. Além disso, os impactos específicos da indústria em três áreas principais – água, microplásticos e energia – demandam atenção urgente. O alto consumo hídrico na produção de roupas, a poluição por microplásticos provenientes de fibras sintéticas e o uso intensivo de energia nos processos produtivos são preocupações centrais.

Apesar desses desafios, é inegável que a moda tem se tornado cada vez mais engajada em discussões sociais relevantes. A indústria tem demonstrado uma capacidade crescente de refletir e influenciar mudanças sociais, indo além de sua função puramente estética ou comercial. Há uma crescente conscientização sobre a necessidade de harmonizar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental no setor da moda.

A moda tem se mostrado capaz de capturar, refletir e, por vezes, influenciar as mudanças sociais, culturais e políticas de nosso tempo, embora ainda haja muito a ser feito em termos de práticas éticas e sustentáveis, a indústria da moda tem demonstrado um potencial significativo como plataforma para discussão e ação em temas cruciais de nossa época.

A transformação da indústria em um setor mais sustentável e ético é um desafio complexo, mas necessário. É essencial que haja ações coletivas, incluindo maior envolvimento dos governos, mudanças nas práticas de consumo e um compromisso genuíno das empresas com a sustentabilidade.

A moda segue reafirmando seu papel como um importante fenômeno social e cultural, muito além de sua vocação mercadológica. Ela não apenas reflete as preocupações e valores de nossa sociedade, mas também tem o potencial de ser um catalisador para mudanças positivas, promovendo consciência ambiental, justiça social e expressão individual. À medida que a indústria continua a evoluir, é crucial que mantenha esse diálogo com as questões prementes de nosso tempo, buscando constantemente maneiras de contribuir para um futuro mais sustentável e equitativo.

Referências:
(1) GORE, Al. Uma Verdade Inconveniente: O que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global. Tradução: Isa Mara Lando. Barueri – São Paulo: Manole, 2006.
(2) STALLYBRASS, Peter. O Casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

UNIVERSO DA CULTURA POP

A Piada Mortal: A Sublime Batalha Entre Sanidade e Caos no Universo do Batman

20/12/2024

Há mais de três décadas, “A Piada Mortal” de Alan Moore e Brian Bolland continua a cativar leitores e desafiar as convenções das histórias em quadrinhos. Lançada em 1988, esta obra não apenas redefiniu a relação entre o Batman e seu arqui-inimigo, o Coringa, mas também elevou o potencial narrativo dos quadrinhos a novos patamares.

A trama gira em torno do ataque brutal orquestrado pelo Coringa contra a família do Comissário Gordon, em uma tentativa de provar que “um dia ruim” pode levar qualquer um à loucura. Esta narrativa não apenas revela a crueldade e genialidade perversa do Coringa, mas também desafia a integridade moral de Gordon, que é forçado a confrontar seu pior pesadelo ao ver sua filha, Barbara Gordon, brutalmente atacada. Esta situação extrema coloca Gordon à beira da loucura, mas é o Batman que emerge como o pilar de força e sanidade, garantindo que o comissário mantenha sua humanidade em meio ao caos.

O que torna “A Piada Mortal” tão marcante é sua capacidade de envolver completamente o leitor, criando o que a teórica de mídia Janet Murray chama de “experiência imersiva”. Como Murray observa, “quanto melhor resolvido o ambiente de imersão, mais ativos desejamos estar dentro dele”. Brian Bolland, inspirado pelo cinema noir, cria uma Gotham City sombria e opressiva que praticamente salta das páginas. Cada quadro é meticulosamente elaborado para intensificar as emoções da história, fazendo com que o leitor se sinta verdadeiramente presente neste mundo distorcido.

A verdadeira força da obra está na profundidade psicológica de seus personagens. Moore não se contenta em apresentar o Batman e o Coringa como simples arquétipos de herói e vilão. Em vez disso, ele explora as nuances de suas personalidades, convidando o leitor a questionar junto com eles os limites da moralidade e da sanidade. Esta conexão emocional com os personagens é o que torna a experiência de leitura tão intensa e memorável.

O papel do Batman nesta história é crucial. Ele não é apenas um vigilante combatendo o crime, mas um símbolo de resiliência e esperança. Sua relação com Gordon transcende a parceria tradicional, representando um laço de confiança e respeito mútuo. Frank Miller, autor de “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, descreveu “A Piada Mortal” como “uma obra-prima de horror psicológico”, destacando como a narrativa captura a essência do conflito entre sanidade e loucura.

A estrutura narrativa de “A Piada Mortal” também merece destaque. Através de flashbacks habilmente inseridos, Moore nos leva a uma jornada pelo passado enigmático do Coringa. Esta exploração não apenas adiciona camadas de complexidade ao personagem, mas também permite que o leitor viaje mentalmente entre diferentes momentos e perspectivas, enriquecendo a experiência narrativa.

Embora seja uma história linear, “A Piada Mortal” oferece uma experiência única para cada leitor. A complexidade moral da trama e suas múltiplas camadas de significado permitem diversas interpretações, fazendo com que cada leitura possa revelar novos aspectos da história. Esta característica se alinha com o conceito de “agência” descrito por Murray, onde o leitor tem um papel ativo na construção do significado da narrativa.

A influência desta obra transcende o universo dos quadrinhos. Sua adaptação para animação em 2016, com Mark Hamill reprisando seu papel icônico como a voz do Coringa, reacendeu debates importantes sobre a representação da violência nos quadrinhos. A polêmica sobre a violência contra Barbara Gordon gerou discussões sobre a cultura do estupro nos quadrinhos, com críticos como Will Brooker pedindo boicote à adaptação animada. Essas controvérsias destacam o impacto duradouro e por vezes polêmico da obra original.

“A Piada Mortal” também se destaca por oferecer aos leitores a oportunidade de explorar, de forma segura, temas profundos e perturbadores. Através das experiências do Batman, do Coringa e do Comissário Gordon, o leitor pode refletir sobre diferentes aspectos da natureza humana e os efeitos devastadores que eventos traumáticos podem ter sobre a psique.

Para entender plenamente o impacto de “A Piada Mortal”, é essencial traçar um paralelo com os primórdios do Batman. Criado por Bill Finger e Bob Kane em 1939, o Batman surgiu em um período em que os super-heróis estavam começando a ganhar popularidade. Desde o início, o personagem foi concebido como um vigilante sombrio, sem poderes sobrenaturais, mas com uma mente afiada e um forte senso de justiça. Esse conceito inicial já trazia elementos de drama psicológico, uma característica que se aprofundou ao longo dos anos e encontrou sua expressão mais intensa em “A Piada Mortal”.

Ao revisitar essa obra clássica, podemos apreciar como ela não apenas conta uma história, mas cria um universo completo que desafia e envolve o leitor de maneiras profundas. “A Piada Mortal” demonstra o poder dos quadrinhos como meio narrativo, provando que uma história bem construída pode criar uma experiência tão imersiva e transformadora quanto qualquer outro meio.

Em última análise, “A Piada Mortal” permanece como um marco na história dos quadrinhos. Ela não apenas redefiniu o que as histórias de super-heróis podem alcançar, mas também antecipou muitas das discussões atuais sobre narrativa e o poder da mídia em moldar nossa percepção da realidade. Trinta e cinco anos após sua publicação, esta obra continua a ser uma leitura essencial para fãs de quadrinhos e um testemunho do potencial artístico e narrativo do meio.

(Bárbara assumiu a identidade de Oráculo e passa a atuar como uma corretora de informações, as reunindo e disseminando para agências da lei e para a comunidade dos super-heróis.)

A sublime batalha entre sanidade e caos retratada em “A Piada Mortal” não se limita apenas aos personagens dentro da história. Ela se estende ao próprio leitor, desafiando-o a questionar suas próprias concepções de moralidade e realidade. Como Janet Murray sugere em seus estudos sobre narrativas interativas, histórias poderosas como esta têm o potencial de nos transformar, permitindo que experimentemos “narrativas aterrorizantes ou comoventes, que não vivenciamos em nossa realidade”. Neste sentido, “A Piada Mortal” não é apenas uma história em quadrinhos, mas uma experiência imersiva que continua a ressoar com leitores, desafiando-os a mergulhar nas profundezas da psique humana e emergir com novas perspectivas sobre o eterno conflito entre ordem e caos.

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

A Mão de Niemeyer: Símbolo de Resistência e União Latino-Americana no Memorial da América Latina

Uma Perspectiva da Diretoria Cultural do Memorial da América Latina

29/11/2024

A Mão de Niemeyer: Símbolo de Resistência e União Latino-Americana no Memorial da América Latina – Uma Perspectiva da Diretoria Cultural do Memorial da América Latina
Como diretor cultural da Fundação Memorial da América Latina, tenho o privilégio de conviver diariamente com a icônica escultura “A Mão”, obra-prima de Oscar Niemeyer. Esta proximidade oferece uma perspectiva única sobre seu significado e impacto, bem como sobre os desafios e oportunidades que ela representa para nossa instituição.
“A Mão”, situada na Praça Cívica do Memorial, transcende seu papel de mera obra de arte para se tornar um símbolo poderoso, não apenas do nosso complexo cultural, mas de toda São Paulo. Diariamente, observo como esta escultura monumental captura a atenção e a imaginação dos visitantes, servindo como ponto focal para discussões sobre identidade latino-americana e história colonial.
A representação estilizada de Niemeyer – uma mão esquerda espalmada com o mapa da América Latina em baixo-relevo e uma linha vermelha simbolizando sangue – é uma síntese magistral da história e das aspirações do continente. A inscrição “Suor, sangue e pobreza marcaram a história dessa América Latina tão desarticulada e oprimida” ressoa profundamente com nossa missão institucional de promover a integração e o desenvolvimento cultural latino-americano.
“A Mão” é um recurso educacional inestimável. Sua rica simbologia – desde a escolha da mão esquerda até a cartografia artística – oferece inúmeras oportunidades para programas educativos e discussões sobre história, política e identidade cultural. No entanto, reconheço que nem sempre conseguimos explorar plenamente este potencial.
Um dos maiores desafios enfrentados pela Fundação é o de equilibrar a necessidade de gerar receita através da locação de espaços para eventos com a preservação da integridade simbólica e educacional de obras como “A Mão”. Muitas vezes, observo com preocupação como o significado profundo da escultura pode ser relegado a segundo plano durante eventos comerciais.
Para abordar esta questão, minha equipe no Memorial tem trabalhado no desenvolvimento de estratégias que integrem “A Mão” mais efetivamente em nossa programação regular. As discussões têm se concentrado em formas de ampliar a compreensão e o alcance da obra, não apenas para o público geral, pesquisadores e artistas, mas também para os consulados latino-americanos sediados em São Paulo. Estes consulados frequentemente utilizam nossos espaços para a divulgação da cultura de seus países, o que enriquece significativamente nossa programação e reforça nossa missão de integração cultural.
Estamos explorando possibilidades que vão desde a criação de material educativo mais abrangente até a incorporação da escultura em nossas exposições temporárias. Uma das ideias mais promissoras envolve o estabelecimento de diálogos entre a obra de Niemeyer e artistas contemporâneos, bem como a organização de debates que usem a escultura como ponto de partida para discussões sobre temas latino-americanos atuais. Estas iniciativas, ainda em fase de elaboração, visam não apenas enriquecer a experiência dos visitantes, mas também reafirmar o papel central de “A Mão” na missão educativa e cultural do Memorial.
Além disso, está sendo proposta uma revisão das políticas de locação de espaço para garantir que todos os eventos realizados no Memorial respeitem e, idealmente, incorporem o significado de “A Mão” e outros elementos simbólicos do complexo.
É fascinante observar como a escultura conseguiu penetrar no tecido cultural da cidade a ponto de influenciar até mesmo a linguagem de sinais. O sinal em Libras para o bairro da Barra Funda, onde o Memorial está localizado, incorpora elementos visuais da escultura, demonstrando seu impacto duradouro na comunicação e identidade locais. Esse fenômeno me anima e destaca a percepção de que a arte pública tem um papel crucial na formação da identidade urbana e regional.
“A Mão” não é apenas um testemunho do passado, mas um catalisador para o futuro. A visão é que esta obra continue a inspirar novas gerações de latino-americanos, promovendo um senso de unidade e propósito comum.
Em um mundo globalizado, em que as identidades culturais estão em constante evolução, o papel de instituições como o Memorial da América Latina, e de obras como “A Mão”, é mais importante do que nunca. O desafio é manter vivo o diálogo entre passado e presente, entre arte e sociedade, assegurando que estes símbolos continuem a ressoar e a inspirar.
Olhando para o futuro, “A Mão” de Niemeyer é vista não apenas como um símbolo estático, mas como um convite contínuo à reflexão, à ação e à união entre os povos latino-americanos. Meu compromisso, no exercício do meu cargo, é garantir que esta mensagem continue a ser ouvida, compreendida e vivida por todos que visitam o Memorial da América Latina, sejam eles cidadãos locais, turistas internacionais ou representantes diplomáticos dos países latino-americanos.

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

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Minhas percepções sobre "Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho"

01/11/2024

“Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” é um documentário que transcende a mera biografia para se tornar uma celebração da vida e obra de uma das maiores intérpretes da música popular brasileira. Dirigido por Pedro Bronz, o filme é uma viagem emocional que nos aproxima da figura carismática e talentosa de Beth Carvalho, revelando facetas pouco conhecidas de sua trajetória. O título do longa faz menção à música “Andança”, de Danilo Caymmi, Paulinho Tapajós e Edmundo Souto, que foi o primeiro grande sucesso gravado por Beth e deu nome ao primeiro LP da cantora, conquistando o 3º lugar no Festival Internacional da Canção, em 1968.

Desde o início, o documentário já nos impacta ao mostrar Beth Carvalho comandando o cameraman, na verdade seu motorista, para capturar um encontro mágico com o grande Mario Lago. Essa cena inicial estabelece o tom íntimo e pessoal que permeia todo o filme. Beth surge na tela como uma amiga que todos gostaríamos de ter conhecido, irradiando um carisma imenso que nos envolve e nos faz querer saber mais sobre sua história. A baixa qualidade técnica das imagens nos conduz da estranheza ao intimismo, pela maestria do trabalho do diretor.

A narrativa do documentário é construída com uma leveza que contrasta com a profundidade dos temas abordados. A transição de Beth Carvalho do universo elitista da Bossa Nova para a busca de inspiração nos morros é tratada com delicadeza, através de registros gravados por ela e sua equipe. A emoção de ouvir “Folhas Secas” em sua versão original com Nelson Cavaquinho é um dos muitos momentos impactantes do filme, que apresenta Beth como uma verdadeira pescadora de talentos. Ela foi responsável por trazer à tona grandes nomes da música brasileira, que, até então, eram relegados à margem social.

Um dos recursos estilísticos que muito chama a atenção no documentário é o uso de legendas em fundo preto, que nos permite imergir nas músicas em suas versões originais. Esse recurso é utilizado com maestria, especialmente quando acompanhadas de registro fotográfico, criando uma atmosfera de intimidade e nostalgia. A simplicidade na busca de músicas na fonte, com os compositores do morro e nos botecos das esquinas, é outro aspecto que enriquece a narrativa, como no lindo momento capturado em vídeo com os mestres Monarco e Manacéa gravando novas composições a céu aberto no morro.

A relação de Beth com Cartola é outro ponto alto do documentário. A sabedoria e simplicidade de Cartola, que orienta Beth a gravar “As Rosas Não Falam” em vez de “O Mundo é um Moinho”, revela a profundidade da conexão entre eles. Beth se tornou uma espécie de filha adotiva de Cartola e Dona Zica, e essa relação é retratada com carinho e respeito.

O documentário também destaca a faceta agregadora de Beth, que somava e multiplicava amizades, parcerias e sua própria arte. A relação com Dinho Sete Cordas e outros grandes parceiros é pontuada com leveza, assim como sua maternidade cantada e encantada, que, ao tempo em que pontua sua intimidade, também nos conduz a um momento histórico de divisão de águas para o samba no Brasil.

Em uma entrevista documentada, Beth responde com elegância à pergunta sobre o futuro do samba do morro e do fundo de quintal no Brasil, e se isso seria aceito na zona sul do Rio de Janeiro, afirmando que “não existe zona norte, zona sul ou subúrbio quando o assunto é samba. Existe quem gosta e quem não gosta de samba.” Essa frase sintetiza a visão inclusiva e universal de Beth sobre a música. A faceta de filha do samba sai de cena e a madrinha do samba surge ao lado dos hoje consagrados Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, dentre tantos outros a quem ela abriu as portas dos estúdios de gravação.

O documentário ganha um viés político ao apresentar uma Beth que assume sua negritude e pontua questões importantes relativas às desigualdades de tratamento no meio musical. “Tem que ter um discurso político, senão não sou eu”, afirma Beth, destacando a necessidade de união entre os artistas brasileiros.

O momento de sua carreira de maior emoção, segundo a própria Beth, é quando sua vida e sua história se tornam samba enredo de uma escola campeã no grupo de acesso. No último ato do documentário, é impossível não se emocionar ao ver Beth, já debilitada fisicamente, mas com a alma gigante, cantando e encantando seu público, deitada e acompanhada por um coral de fãs apaixonados.

O recorte temporal para finalizar o documentário, com uma memória de Beth no Cacique de Ramos ao som de “O Show Tem Que Continuar”, é uma lição de como Beth Carvalho trouxe o samba do fundo de quintal para a sala de estar de todos os brasileiros. “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho”, é mais do que um documentário, é uma celebração da vida, da música e do legado de uma das maiores artistas do Brasil.

 

Ficha Técnica

  • Título Original: Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho
  • Ano de Realização: 2022
  • Direção: Pedro Bronz
  • Roteiro: Pedro Bronz
  • Direção de Fotografia: Pedro Bronz
  • Produção: Pedro Bronz, Felipe Bronz, e Mariana Marinho
  • Edição-Montagem: Pedro Bronz
  • País de Produção: Brasil
  • Meios de Distribuição: Cinema, TV, plataformas digitais (como Globoplay e Claro TV)

 

Sobre o Diretor: Pedro Bronz

Pedro Bronz é um cineasta brasileiro com uma carreira multifacetada, atuando como diretor, fotógrafo e montador. Formado em jornalismo pela PUC-Rio, Bronz trabalha com cinema desde 1993 e é um dos criadores da mostra O Incinerasta (2000) e da Mostra do Filme Livre (2002). Seu primeiro trabalho de destaque na montagem foi o documentário “Língua – Vidas em Português” (2002), de Victor Lopes. Ele estreou na direção com “Herbert de Perto” (2009), ao lado de Roberto Berliner, e dirigiu outros documentários notáveis como “A Farra do Circo” (2014) e “O Astronauta Tupy” (2017).

Em “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho”, Pedro Bronz utiliza sua habilidade narrativa para criar uma obra íntima e abrangente, capturando a essência de Beth Carvalho e seu impacto na música brasileira. O diretor tinha uma relação próxima com Beth, quase como se fosse parte da família, o que lhe permitiu um acesso único ao material produzido pela própria artista. Quando a saúde de Beth começou a se deteriorar, Bronz teve a sensibilidade de reunir esse material e emprestar seu olhar para criar um documentário que é tanto um tributo quanto uma celebração de sua vida e legado.

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina

Exposição "El Gran Camino Inca" Comemora Bicentenário da Libertação do Peru no Memorial da América Latina

11/10/2024

Em uma celebração que une história, cultura e diplomacia, destacando os 200 anos de consolidação da libertação do Peru e a importância das relações institucionais entre os países latino-americanos, a Fundação Memorial da América Latina, ao lado do Consulado Geral do Peru em São Paulo, inaugurou a exposição “El Gran Camino Inca”, que centra-se no Qhapaq Ñan, a monumental rede viária Inca que interligou vastas regiões do império Tahuantinsuyo desde o século XV – e que é usada até hoje.

Composta por 35 fotografias, a exposição oferece ao público uma visão detalhada do Qhapaq Ñan, permitindo apreciar sua complexidade e beleza. Esse sistema de caminhos não apenas conectou diferentes povos, mas também gerou uma dinâmica interativa de valores sociais, econômicos e culturais. O Ministério das Relações Exteriores do Peru, em colaboração com o Projeto Qhapaq Ñan – Sede Nacional, trabalha para preservar e divulgar essa história internacionalmente.

Importante destacar a sintonia que tenho com o pensamento do Dr. Pedro Machado Mastrobuono, presidente da Fundação Memorial da América Latina, que destacou, em sua declaração sobre a exposição, a missão do Memorial em integrar o continente, comparando o Qhapaq Ñan ao Peabiru, a rede de trilhas guarani. Nas palavras dele, “Agradecemos ao Ministério das Relações Exteriores do Peru a oportunidade de apresentar aos brasileiros o Grande Caminho Inca”, reforçando a importância da exposição para o fortalecimento das relações culturais entre os países.

Pude dar as boas-vindas a representantes do governo estadual, cônsules e autoridades culturais de São Paulo. O cônsul-geral do Peru em São Paulo, Sr. Luis Armando Monteagudo Pacheco, discursou sobre a relevância histórica e cultural desta obra de engenharia. “O Qhapaq Ñan é uma obra eterna pela sua dimensão, desenho de construção e tecnologia, facilitando a comunicação na América pré-colombiana”, afirmou. Também ressaltou que, em 2014, o caminho foi declarado Patrimônio Cultural Mundial pela UNESCO. Após o discurso, o Sr. Monteagudo propôs um brinde, rompendo protocolos de forma amistosa, e declarou a exposição oficialmente aberta. O evento foi abrilhantado por uma apresentação da Tunantada, dança que encantou os convidados.

A exposição “El Gran Camino Inca” está aberta ao público de 4 de outubro a 3 de novembro, das 10h às 17h, de terça a sábado, no Salão Gabo da Fundação Memorial da América Latina. Esta é uma oportunidade única para os visitantes explorarem a rica herança cultural do Peru e compreenderem a importância histórica do Qhapaq Ñan. Acredito que a exposição não celebra apenas um marco significativo na história do Peru, mas também reforça os laços culturais e históricos que unem os países da América Latina, promovendo um intercâmbio cultural que enriquece a todos.

SERVIÇO:
Data: 04 de outubro a 03 de novembro – terça a domingo
Horário: das 10h às 17h
Entrada: gratuita
Local: Memorial da América Latina
Endereço: Av. Mário de Andrade, 664 – Barra Funda – São Paulo (SP)
Acesso: Próximo ao Metrô Barra Funda
Estacionamento: Portões 4, 8 e 15
Bicicletário: Ao lado do portão 9

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da
Fundação Memorial da América Latina