Com a discussão acerca do impacto dos novos meios na crítica audiovisual, começou ontem, 13 de julho, o ciclo de debates do 5° Festlatino. Mediada por Maria Dora Mourão, vice-diretora da ECA-USP e presidente da Associação dos Amigos da Cinemateca, a mesa contou com a presença dos críticos Cléber Eduardo, Cássio Starling Carlos e José Carlos Avellar, além de Rogério da Costa, professor e filósofo da PUC-SP.
Maria Dora deu início aos trabalhos ressaltando o caráter especial do encontro: a reflexão sobre a crítica; pouco discutida, sobretudo no Brasil. Ainda que a crítica seja fundamental, especialmente hoje – com o desenvolvimento de novos suportes e interações com o público – os focos continuam sobre temas mais práticos. Para Dora, uma questão importante – e conflituosa – é o papel de condução assumida pela crítica; escolhe-se um filme pelo que falam ou deixam de falar dele.
O jornalista, crítico e consultor de festivais de cinema José Carlos Avellar traçou um panorama da história da crítica ao longo do século. Segundo ele, a crítica nasce antes mesmo da concepção de uma teoria cinematográfica e, neste momento, se constroi pelo enfrentamento de obra a obra; característica que a difere de críticas a outras expressões artísticas. O entusiasmo causado pelas primeiras projeções é tanto, que se começa a fazer crítica acerca de uma forma de expressão inacabada. A paixão pelo cinema é o motor da atividade crítica.
Avellar exemplifica com as primeiras notas sobre as projeções dos irmãos Lumiére, publicadas dois dias após o evento. O encantamento dos jornalistas é tanto que a simples descrição do acontecimento ultrapassa a realidade factual; fala-se de “cores e tamanhos reais” para um filme em preto e branco, projetado numa tela de 1 metro de altura. O episódio é retomado para questionar: como traduzir verbalmente a novidade audiovisual?
A partir de certo momento, a crítica passa a normalizar o cinema, indicando como um filme deve ser e o que é certo ou errado na produção, enfim. Ainda que o enfrentamento filme a filme continue, ele se constroi agora sobre o gosto pessoal do crítico, desvinculado de esboços teóricos. Era a diversidade (nos anos 60 chegou-se a produzir mais de 600 filmes por ano) que dava o material que o crítico necessitava. Avellar ressalta o papel de jornais e revistas no período dos anos 20 aos 80 como o principal interlocutor do espectador de cinema.
Só a partir do anos 60, com o nascimento de novas formas de expressão (como o neo-realismo italiano, por exemplo) que nasce uma tentativa de entendimento do “como pensamos cinema” no lugar do tradicional “como fazer cinema”. O surgimento destas cinematografias jovens, de outras e originais formas de produzir e, claro, pensar o cinema, incute no crítico a questão de como explicar o cinema neste novo contexto. Avellar relembra uma clássica anedota de François Truffaut, ele dizia que ninguém, aos 12 anos, fala para seu pai que, quando crescer, quer ser crítico de cinema; para indagar sobre a real atividade do crítico. Para Avellar, a própria atitude crítica caracteriza o crítico de cinema. O crítico é aquele que passou da cinefilia à tentativa de explicação daquilo que o emocionou; ou seja, é preciso passar do encantamento à organização normativa desta emoção.
Dos anos 80 em diante, com o advento do VHS, do DVD e de outras formas de reprodução e difusão, criou-se uma nova relação com o cinema e, conseqüentemente, nasceu um novo receptor. Se antes o crítico escrevia para alguém do seu círculo de cinéfilos; hoje seu leitor é alguém completamente diferente. Avellar não cria um juízo de valor aqui, mas pontua uma diferença que é característica fundamental para a concepção do interlocutor atual de cinema. O espectador de hoje não vê o filme com a mesma dedicação do cinéfilo de antigamente; a relação agora é quantitativa (vemos isso na multiplicação dos canais exclusivos de filmes nas TVs a cabo, por exemplo). Disto, pergunta Avellar, como se dedicar com exclusividade? Para quem o crítico escreve hoje?
Mais uma vez surge a questão com o qual Avellar começou e encerrará seu discurso, como reduzir a expressão audiovisual a palavras? E mais, onde encontrar um equivalente para diferentes espectadores? Seria o caso de se fazer crítica com os mesmos recursos do cinema? Esta aberta a possibilidade para uma nova concepção do texto crítico, talvez a transformação da crítica ensaística numa nova forma de expressão, também ela audiovisual?
O crítico Cássio Starling Carlos dá continuidade às palavras de Avellar, a crítica está em evidente processo de mutação, por isto a pertinência do atual debate. Retomando o episódio dos irmãos Lumiére, Cássio pensa o nascimento da crítica sob uma ótica jornalística: as notas publicadas após a projeção são descrições de uma experiência. De onde, então, vem a autoridade do crítico de cinema?
Cássio contextualiza a questão. Com a atual saturação de imagens, temos um cardápio indigesto em mãos, bem diverso da satisfação apaixonada de antes. Neste contexto, é preciso pensar o papel do crítico na filtragem deste excesso, é função do crítico limpar este acúmulo. Extremamente cético em relação à que chama de falácia da democratização total proporcionada pela Internet, Cássio pergunta qual o verdadeiro impacto deste novo cenário. Ora, demissões em massa de jornalistas foram verificadas em centros como EUA e Canadá por causa da ascensão de blogues de cinema. Na visão do editor, por que pagar por uma opinião, se hoje todos a possuem e divulgam gratuitamente?
É preciso repensar o que é ser crítico e o porquê dele possuir este poder de superioridade do gosto. Só assim, afirma Cássio, não cairemos na armadilha de levantarmos questões como: pra que serve a crítica? Ou quem precisa de críticos? Por estas razões, ele enxerga nesta pseudo-democratização dois aspectos negativos para o exercício crítico. Primeiro, o volume, há uma verdadeira tribuna pública, onde um emaranhado de enunciados anônimos navegam sem rumo e sem diálogo. Segundo, a saturação da opinião, não há mais balizas norteadoras no vale-tudo virtual. Cássio encerra sua exposição apontando estes fenômenos, que para ele, são as questões que traçam os rumos da crítica de hoje. A partir daqui, como o crítico deve se relacionar com seu leitor? E qual o impacto do consumo desta crítica no contexto da internet?
Cléber Eduardo começa sua fala brincando com Avellar e a anedota de Truffaut. Sim, ele foi um (o único?) que aos 12 anos avisou o pai que queria ser crítico de cinema quando crescesse… não só não pagaria para ir ao cinema como receberia para tal. Cléber é um caso significativo para a mesa em questão, sua carreira passou por jornal, revista e Internet, e hoje é editor do site www.revistacinetica.com.br. Para ele, há uma quantidade imensa de informação sobre cinema para quem está conectado e o acesso é cada dia mais rápido e amplo. Ao mesmo tempo, a indústria assume estes mesmos recursos para o lançamento massivo de marketing promocional. Neste contexto, em que a informação não está mais centrada na mão do crítico, mas acessível a qualquer um, e mais, em que o cinéfilo não é apenas leitor, mas produtor de crítica; Cléber indaga, por que a crítica não se torna exclusivamente ensaística?
Ao ressaltar a liberdade e a informalidade dos blogues, Cléber indica nestas novas formas de expressão uma maneira de arejar o discurso sobre cinema. Mas então por que o blog só tem legitimidade crítica se seu autor antes passar pelas formas midiáticas tradicionais? Talvez esta seja uma questão fundamental a se considerar a respeito da nova crítica de cinema, quem de fato a está fazendo? Cléber não nega que os novos meios e recursos afetam a crítica e que é preciso avaliar de que forma isto acontece, mas lembra, com a facilidade de acesso aos filmes, por exemplo, o crítico aumenta o rigor de sua atividade. Hoje ele pode ver, rever, parar, assistir quando e onde quiser a obra que escolher.
Cléber fecha sua exposição indagando o papel do crítico de cinema neste mar de imagens pós-moderno. Num mundo totalmente dominado pela imagem, não seria um erro se encastelar no cinema? O desafio para o crítico atual é descobrir qual espaço do cinema no estatuto imagético atual. A crítica assim se formaria sob o signo da resistência; enquanto isso não ocorrer e a crítica continuar aceitando passivamente a enxurrada de imagens que a sufoca, o crítico continuará perdido. Enfim, é papel do crítico se posicionar diante de fenômenos midiáticos instantâneos e sem o mínimo valor estético, mas que, no limite, são os verdadeiros definidores do comportamento social de seus leitores. Em outras palavras, o crítico deve sujar as mãos se quiser lidar com a proliferação da imagem.
Coube ao filósofo Rogério da Costa concluir o debate. Pinçando elementos das falas dos demais debatedores, Rogério construiu sua argumentação sob a ótica da produção capitalista. Para ele, o cinema se tornou, ao longo do tempo, vítima daquilo mesmo que engendrou nas pessoas: o desejo pela imagem. Hoje, qualquer um produz imagem, talvez até mais do que textos. É cabal, portanto, pensar o que justifica o movimento avassalador da indústria; qual o percurso do filme, da sua concepção ao consumo.
A Internet é responsável por este fenômeno, por ela que a relação com o produto consumido se modifica. Como pensar este desejo de produção e divulgação de suas próprias imagens? E mais, como lidar com a escolha destes novos produtos? Ora, este é um problema que passará por mecanismos de sugestão que, no fundo, cairão no mesmo e velho problema de sempre, o mercado. O que vende mais, quais os critérios para definir uma arte?
Como todo bom debate, vimos que mais importante que responder é fazer as perguntas certas. Quem esteve no Anexo dos Congressistas no Memorial da América Latina nesta noite saiu, de fato, com uma série delas para construir seu próprio arcabouço de idéias acerca do impacto dos novos meios na crítica audiovisual.
por Adriano Capelo
fotos Marcos Finotti