Marcelo Piñeyro, diretor argentino e um dos homenageados no 5º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, concedeu ao Memorial da América Latina e à organização do Festlatino uma entrevista repleta de entusiasmo, senso crítico e curiosidade. Em mais de uma hora de bate-papo, o que mais chamou atenção em Piñeyro foi sua sintonia com o objetivo do Festival: promover aproximação entre o artista, o público e os jovens realizadores. Apesar de não querer assumir a postura de um “conferencista“, animou-se com a ideia de que em uma Aula Magna – a qual acontecerá no dia 17 de julho, último dia do Festival – é possível promover o debate crítico sobre seu próprio cinema a partir da intervenção do público, que ele está ansioso por conhecer.
Ao saber do sucesso que seu filme O que você faria? (El Método, 2005) teve em nosso país, estima que o público gostará de As viúvas das quintas-feiras (Las Viudas de los Jueves, 2009 – foto abaixo), pois ambos dialogam: apostando em uma mesma tipologia de personagem, os dois filmes investem na abordagem do retrato do “fim de uma era” em que a indiferença e a distância daqueles que vivem fechados em um mundo criado pela cultura neo-liberal contrasta com a possibilidade de uma outra realidade. Se o primeiro enfocava as elites que comandam as grandes corporações tendo como pano de fundo manifestos de grupos anti-globalização, este último revela a alienação produzida pela vida nos condomínios fechados em contraste com a realidade mais cruel da última crise vivida pela Argentina. Segundo Piñeyro, seu interesse é mostrar que há alternativas para o “presente” neo-liberal. Nesse sentido, os “comentários” visuais e sonoros conduzem o espectador a andar na contramão da narrativa principal.
Esse interesse pelo “presente” aparece em toda sua filmografia, mesmo naquelas obras consideradas mais “históricas“, tal como Música Feroz (Tango Feroz: la Leyenda del Tanguito, 1993) em que o cineasta retrata a passagem dos anos 60 para os 70, enfatizando a mudança de paradigmas de toda uma geração e tendo como pano de fundo o nascimento do rock argentino ou Kamchatka (2002), em que o tema da ditadura militar aparece, inaugurando o que muitos críticos consideram a revisão de um período histórico, fenômeno que também acontece com filmes de diretores brasileiros e chilenos do mesmo período. Segundo Piñeyro, “meus filmes sempre tratam sobre o presente; esse é meu maior interesse. Tento relacionar momentos históricos, mas meu interesse é abordar o presente. O que mais me interessa é abordar o fenômeno da resistência como uma possibilidade de articulação do relato“.
O diretor comenta que em Kamchatka (foto abaixo) o foco não estava na reconstrução do que foi o período da Ditadura, mas na abordagem do tema da resistência. Nesse sentido, este filme também dialoga com os mais recentes, pois chama a atenção do espectador para a possibilidade de “outros pontos de vista“. A história contada pela ótica do menino, protagonista do filme, dava lugar a um personagem “inexplicável“, pois ao mesmo tempo em que oferecia uma discussão sobre a situação, enfatizando o problema das “vítimas“, não tocava em questões político-partidárias. Com este filme, Piñeyro confessou querer criar a possibilidade de promover uma discussão sobre a ditadura a partir das famílias, apostando na reconstrução de pontes de comunicação completamente destruídas, uma vez que o diálogo entre as gerações foi interrompido por um momento histórico.
O tema das vítimas da ditadura também esteve presente no premiado A História Oficial (1983) de Luiz Puenzo, produzido por Piñeyro. Ao comentar sobre o Oscar de melhor filme estrangeiro, admite que apesar de se sentir lisonjeado, esse tipo de premiação não o entusiasma. O importante, segundo o diretor, é que pôde naquele momento acompanhar a repercussão do filme em diferentes países, o que possibilitou apreciar a reação que provocava nas pessoas que o assistiam. Concluiu que a comoção que gerava, independente do país e do público, era genuína, pois o tema tratado em A História Oficial ultrapassava o contexto geográfico e histórico, era universal.
Piñeyro compara sua obra ao cinema de Lucrécia Martel. Em sua opinião, é na atualidade um cinema que – apesar de todas as diferenças estilísticas – faz a mesma coisa, uma vez que a análise da decadência da burguesia em seus filmes comunica a um espectador universal. Aliás, Piñeyro revelou-se um grande admirador de Martel, que segundo ele, é a herdeira mais fiel de um cinema marginal que existiu no cinema novo argentino.
Quanto à retrospectiva de suas obras programada pelo Festival, Piñeyro brinca, dizendo se sentir ao mesmo tempo orgulhoso, honrado e “viejo“. Com apenas 57 anos, dirigiu entre 1993 e 2009 filmes de grande sucesso, conquistando tanto o público argentino quanto o estrangeiro, sendo premiado duas vezes com o Goya (Cinzas do Paraíso de 1997 e Plata Quemada de 2000 – foto abaixo). A carreira de diretor, iniciada em 1993 com Música Feroz é decorrente de seus estudos em Mar del Plata nos anos 70 quando freqüentava o curso de cinema na Universidade de Bellas Artes. No final da mesma década, teve uma passagem pelo Rio de Janeiro, momento em que interrompeu seu trabalho final de conclusão de curso devido ao contexto imposto pela ditadura; aqui o diretor passou um ano de “tristeza infinita“, tendo ido à praia apenas duas vezes.
Na volta, em 1978, começa a buscar trabalho em cinema e funda uma produtora de filmes publicitários, a Cinemania, em 1980 junto a outros importantes cineastas argentinos. Segundo Piñeyro, foram tempos em que viveu apenas da publicidade e em que canalizava sua energia criativa escrevendo roteiros que jamais seriam filmados. Como a possibilidade de se fazer cinema era precária, escrever roteiros era uma maneira de manter vivo aquilo que realmente gostava. Para ele, A História Oficial marcou um ponto de inflexão não apenas em sua carreira, mas na história do cinema argentino, pois se abriu novamente a possibilidade de produzir um cinema nacional de qualidade.
Com uma filmografia que, segundo ele, não pretende ser comercial, mas dialogar com o público, Piñeyro não se coloca questões acerca do debate sucesso de bilheteira versus alcance estético. Sobre o 5º. Festival Latino-americano de Cinema de São Paulo, afirma ter como principal expectativa saciar sua curiosidade sobre quem é seu público brasileiro. Aqui, conclui, pretende entrar nas salas de projeções para compartilhar da reação do público e que está completamente aberto a ser “julgado“.
Por Adriano Capelo e Elen Doppenschmitt