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São Paulo, 3 de novembro de 2008.
Não se passa por São Paulo impunemente. De seu apartamento na Riverside Drive, Edmundo Desnoes acaba de publicar suas impressões sobre a cidade, na edição de outubro da revista mensal brasileira Piauí. Demonstrando impressionante coerência com sua obra, o artigo trata de comparar a Paulicéia a Nova York. O tom é o mesmo de “Memórias do Subdesenvolvimento”, seu principal livro (Ediciones Unión, La Habana, 1965), lançado em português em julho deste ano, com tradução de Elen Doppenschmitt, pelo Memorial, durante o III Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo, com a presença do autor. Na matéria, assim como no livro, o escritor cubano lança um olhar desencantado, ao mesmo tempo triste e amoroso, sobre dois mundos, mas sempre arguto e provocador. “Sinto, e de cara devo admitir, admiração e respeito por NY, e solidariedade, desorientação e amor de cidade grande
em SP. Sou parte e juiz do conflito das duas civilizações”, escreve na Piauí.
A Revolução Cubana pegou Desnoes aos 29 anos. Era então um escritor de esquerda que se preocupava em escrever uma espécie de painel literário sobre a sociedade cubana
em mutação. Procurava criar personagens-tipos, que representassem a realidade, como o burguês, o operário, o revolucionário etc. Ele acredita que essa parte de sua obra não tem tanta importância. Até que Desnoes acha o ponto de vista e o tom que faria sucesso mundial imediato e tornaria sua literatura interessante até para a juventude cubana atual. O livro “Memórias do Subdesenvolvimento” é narrado em primeira pessoa (“influência de “Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis”, adianta. Na Bienal, Desnoes fez questão de parar numa estande que vendia camisetas com frases e silhuetas de escritores e comprar uma na cor preta de Machado de Assis com a frase “Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, que encerra o “Brás Cubas”) por um pequeno-burguês com inquietações intelectuais que assiste passivamente à transformação de seu mundo. “Ele podia entender, mas não participava dos acontecimentos. Este era o argumento usado por mim nas conversas com os velhos comunistas, que não gostavam do livro à época de seu lançamento: é a história de um homem que reconhece, mas não consegue atuar sobre a História se desenrolando na frente de seus olhos”.
Após se desiludir com os rumos da Revolução e criticar a interferência do governo na vida cultural de Cuba, Desnoes se radicou nos EUA em 1980, onde leciona na universidade. Mas nunca rompeu totalmente com o regime, tanto é que pode voltar ao seu país livremente. “Memórias do Subdesenvolvimento” foi filmado por Tomás Gutierrez Alea, um amigo de Desnoes, em 1968. A película tornou-se uma das mais importantes da história do cinema cubano e um clássico mundial. Após participar do III Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo, em 2008, Desnoes voltou à cidade
em agosto de 2008 durante a Bienal de Livros, onde participou do Salão de Idéias e de uma noite de autógrafos. Em conversa na estande do Memorial, ele explicou um pouco seu pensamento: “Na vida nada é branco ou preto, vivemos na ambigüidade. Onde me coloco? o que faço? essas são questões que aparecem em situações limites. A crise é um momento criador“, resume. “Sérgio, o personagem de “Memórias do Subdesenvolvimento”, na verdade tem atitude crítica. O livro é crítico num momento de euforia social, porque cada sociedade tem que criar seus mitos e questioná-los ao mesmo tempo”.
“Fidel Castro é um humanista”, diz Desnoes. “Cuba é um país quixotesco que sonhou com o impossível”. Ele não condena a Revolução Cubana, “que fez durante 20 anos a pequena ilha se sentir uma potência mundial” -, mas defende a liberação da cultura e da economia, uma saída à chinesa: “não acho que deva mudar o sistema, mas melhorá-lo e reconhecer que o sistema de mercado funciona. Dar oportunidade à diversidade”.
Em uma de suas visitas à Bienal, Desnoes e sua companheira foram à lanchonete do pavilhão acompanhados do pessoal do Memorial. Olhando no cardápio, ele tentou entender os lanches oferecidos. Escolheu o de peixe. “Tienes sanduíche de atum?”, perguntou ao garçom. “Não“, ouviu em resposta. “Tienes sanduíche de queijo branco?“, falou novamente. “Não“, disseram secamente. Depois de um longo período de ausência do garçom, tentou pela terceira vez: “Tienes sanduíche de presunto e queijo?”, para ouvir o terceiro não. “Pero eso aqui se parece a Cuba!”, exclamou brincando, quase feliz por encontrar semelhança com seu país natal. Para Desnoes, Brasil e Cuba são muito semelhantes: “Antes da Revolução, falavam que os cubanos não gostavam de trabalhar, só queriam se divertir no carnaval. Mas quando veio a oportunidade – a Revolução – tomaram as coisas a sério”.
Após mudar-se para os EUA, Desnoes escreveu a continuação de sua obra, que chamou de “Memórias do Desenvolvimento”. O mesmo narrador agora fala da sua sensação de estranhamento diante do que vê nos países ricos. A mesma melancolia. O escritor criou uma forma interessante de estruturar o novo livro. Sérgio agora é um homem que, ao receber uma herança, passa pela vida sem preocupações financeiras. Vive isolado nas montanhas. Sua tranqüilidade é interrompida quando fica sabendo que tem uma filha de 18 anos, fruto de um relacionamento ocasional. Ela lhe entrega um diário, no qual a figura do pai ausente é central. Como em “Memórias do Subdesenvolvimento”, Desnoes publica no final um conto “escrito pela filha”, que faz as vezes de último capítulo do livro. Chama-se “Te sigo“. O conto funciona bem independentemente do livro e será publicado pelo Memorial em 2009 com o nome “Agora é minha vez“. Essa história dentro da história será adaptada para o cinema. O roteiro também será publicado pelo Memorial. A tradução dos dois textos mais uma vez é de Elen Doppenschmitt. A edição de novembro da revista Nossa América, também publicada pelo Memorial, traz o pensamento vivo de Edmondo Desnoes, colhido durante a visita do escritor cubano ao Memorial e à Bienal de São Paulo.
Seja em seu principal romance “Memórias do Subdesenvolvimento“, seja no livro mais recente, “Memórias do Desenvolvimento”, seja no artigo para a revista Piauí, Edmundo Desnoes não abandona o mesmo ponto de vista, na fronteira entre dois mundos, e o tom melancólico. Ele não precisou se esforçar para fazer isso, pois sua própria vida é cortada pelos giros da História. Quem ler “Memórias do Subdesenvolvimento” vai encontrar no início a mulher do personagem principal, chamada Laura, se despedindo no aeroporto. Sérgio pensa: “Eu acho que Laura estava meio arrependida de ter me deixado. Lá no Norte terá de trabalhar, sim, até que algum idiota decida casar-se com ela – ainda é bonita e gostosona – e mantê-la como eu a mantinha. Acho, também, que ela me amava. Do jeito dela. Não podia dar mais do que deu. Vai lembrar-se de mim, com certeza, enquanto estiver procurando trabalho. Assim que os problemas se resolverem – e não tem muitos – ela se esquecerá de mim. Isso é tudo.”
Não era. Esse trecho é inspirado em uma passagem real da sua vida. A “Laura” chamava-se Felícia e realmente o deixou, abandonou Cuba, como outros milhares, nos primeiros anos da Revolução. Mas, cerca de 20 anos depois, quando chega a vez de Desnoes abandonar a ilha, quem é que ele reencontra nos EUA trabalhando com literatura? Hoje os dois – Edmundo e Laura/Felícia – formam um casal sofisticado, cuja troca de olhares evidencia identidade profunda e cumplicidade. Edmundo Desnoes visitou São Paulo acompanhado de Felícia. “Quando o vi, era como se nunca o tivesse deixado”, contou sorridente Felícia.
Por Eduardo Rascov
Fotos de Desnoes: Fábio Pagan