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Acompanhe tudo o que está acontecendo na maior mostra de cinema latino-americano que já aconteceu em São Paulo em todos os tempos
Fernando Birri foi um dos primeiros a chegar ao 1º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, vindo diretamente do Festival de Cinema do Ceará, acompanhado de sua mulher, Carmen. Durante o dia, ele conheceu o acervo de arte popular do Pavilhão da Criatividade. No dia 14, às 10h30, proferirá aula magna inédita.
O cineasta argentino terá seu mais novo filme, “Za 2005, Lo viejo y lo nuevo”, projetado hoje à noite (10.7.2006), na sala principal do Auditório Simón Bolívar, coroando a solenidade de abertura do festival, do qual participará o governador Cláudio Lembo, outras autoridades, dirigentes institucionais, produtores cinematográficos internacionais e nacionais, cineastas, artistas, profissionais do mundo do cinema e convidados em geral.
Fundador do Instituto de Cinematografia de la Universidad Nacional del Litoral, em Santa Fé, Argentina, em 1956, Fernando Birri é um “cineasta pedagogo” que, desde o início de sua carreira, procura interferir na realidade, por meio de sua arte e militância, no sentido de criar um novo mundo. Em 1959 filmou “Tire dié”, em companhia de seus alunos, considerada a “primeira pesquisa social filmada na América Latina”.
Em 1982, criou o “Laboratório Ambulante de Poéticas”, interessante experiência de escola móvel de cinema que percorre países como a Itália, Espanha, México, Brasil, Colômbia, Nicarágua e Argentina. Quatro anos depois, com o apoio de Fidel Castro, fundou a Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antoñio de Los Baños, a 30 quilômetros de Havana, em Cuba. Mítica entre os cineastas, os 20 anos dessa instituição será homenageada pelo Festival.
Com suas longas barbas brancas que lembram a imagem consagrada de León Tostói, pode-se dizer que Fernando Birri é um desses velhos militantes incorrigíveis que renova e ajuda a viver as gerações que vão se sucedendo. Incorrigível por insistir em sonhar em tempos pragmáticos, incorrigível por preocupar-se antes de tudo em ensinar sua arte ao mais jovens, incorrigível por ser um homem de reflexão e ação que acredita na força transformadora do cinema.
Falando mansamente e próximo ao ouvido, com seu jeito cálido de expor suas idéias, Fernando Birri concedeu a seguinte entrevista exclusiva ao “De Olho no Festival”:
Como o senhor vê a criação deste Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, depois de tantos anos de militância no meio cinematográfico?
Vejo com os meus 2 olhos e com o terceiro olho, o olho secreto (faz um gesto apontando o meio da testa), pois é mais uma vez a confirmação do que ensino há mais de meio século e que está longe de se esgotar – ao contrário, nosso cinema segue produzindo novas possibilidades, novos brotos, novas obras, novos frutos…
O que eu me perguntaria é como, apesar de todos esses anos, com acontecimentos positivos e negativos atravessando a América Latina, um evento como este segue sendo possível, em primeiro lugar; e, em segundo lugar, como eles se multiplicam… para além da aparência de desesperança, que muitos cultivam nesse momento.
A Europa, por exemplo, é um grande monumento à decepção. Pouco se cria lá atualmente.. Mas nós não apenas seguimos fazendo, como criamos mais. Creio que este festival não deixa as minhas serem apenas com palavras vazias.
Cuba tem um festival latino-americano muito importante. Agora, teremos outro de igual valor em São Paulo. O senhor vê possibilidade de diálogo entre eles?
Não sei qual será o diálogo em nível institucional. Isso é algo que me escapa, pois não represento institucionalmente mais nada. Mas com a mínima lógica, o mínimo de bom sentido, os 2 festivais podem estabelecer um diálogo em distância, como 2 grandes espelhos parabólicos, que se alimentem reciprocamente.
Mas creio que a coisa não passa atualmente tanto pela instituição. Os olhares, as idéias, as criações latino-americanas se manifestam espontaneamente, não tanto via uma instituição. Se dá um fenômeno assimétrico e anárquico. Anarquia, aliás, é uma característica do nosso cine. Penso que esse festival é um grande pulmão onde outros menores podem também ir respirando em toda a América Latina. Talvez com menos força institucional, ou não, mas certamente como resposta a necessidades de grupos, de correntes, de movimentos.
Aqui mesmo no Brasil. Veja, acabo de vir do festival do Ceará. É uma mostra que nesse momento está tomando uma importância e uma força enorme. Creio e lhe digo honestamente, posso estar errado, que festivais como esses de São Paulo e do Ceará têm um outro tipo de cultura, diferente da italiana ou da francesa. Os festivais desses países são competitivos, cada qual quer defender apenas a sua parte, a sua película. Aqui não. Em Ceará e São Paulo são festivais que, de alguma maneira, querem contribuir com sua própria força para um reforçar o outro. Essa é a minha idéia. Não sei se é demasiada utópica, que não corresponda à realidade, mas é o meu modo de pensar. Creio que mais que trabalhar competitivamente, temos que trabalhar colaborativamente…
Aglutinar forças… O senhor criou 2 escolas de cinema. Qual o papel de uma escola de cinema como a que o senhor dirigiu neste movimento de expansão?
Mas que nunca, vou dizer algo que vai contra a corrente. O que diz a corrente? Que há escolas de cinema em demasia na América Latina, que são fábricas de desempregados, porque há mais oferta do que demanda. É o mesmo que diziam da escola de Cuba quando a criamos. Estamos criando uma escola de luxo, de desempregados de luxo…
É sobre o que brincava Gabo… “os desempregados mais caros do mundo”…
Ele falou isso como um misto de brincadeira, provocação e advertência, no ato da fundação da escola. Mas, até por culpa dele que lá tanto trabalhou, o que se deu foi exatamente o contrário: os alunos estão empregados, quer dizer, filmando, e não custam tão caro… De modo que me parece que esse florescimento do cinema na América Latina é algo extremamente positivo.
Começamos a primeira escola de cinema, da universidade del litoral, em Santa Fé, na Argentina.
Era uma escola de documentários?
Sim, era uma escola especificamente de documentaristas, porque eu tentava fazer um outro tipo de cinema, quando voltei do aprendizado na Itália (no Centro Esperimentale di Cinematografia di Roma, em 1952) e não encontrei um ambiente propício para fazer o cinema que eu queria, não havia abertura para isso. Então, superamos o primeiro trauma, vamos dizer assim, da seguinte forma: vamos formar pessoas que tornem possível esse tipo de cinema, que definíamos como cinema nacional, realista e popular.
Esse cine demandava a formação, a preparação de gente. Então resolvemos esse problema de uma maneira mais ou menos natural. Começamos pelo documentário, que seria uma forma de enfrentar a barreira que encontramos. E assim foi, criamos essa escola teórico-prática, ligada à universidade.
Houve muita resistência interna na universidade, a área mais acadêmica, o setor mais retórico, os bustos de mármore nos claustros universitários.
Mas já existia esse tipo de escola nas universidades?
Fomos pioneiros. Propusemos uma escola de cinema no âmbito universitário que era, até certo ponto, uma heresia. Mas essa iniciativa foi uma conseqüência da histórica reforma universitária, que começou na América Latina na universidade de Córdoba e fez com que a universidade abandonasse seu modelo aristotélico/tomista.
Era natural que uma universidade assumisse uma nova tecnologia, uma nova linguagem, como o cinema, para se colocar a serviço de um novo conhecimento. Bem, com a ditadura militar ela foi fechada, mas já havia plantado sementes em todo país.
Que depois também floresceu em Cuba?
Sim, na forma de organização não governamental, mas que só existia graças à inteligência da sociedade cubana em apoiá-la. Era um projeto não só cubano, mas também latino-americano, africano e asiático.
Por isso que se chama Escola de los Tres Mundos…
Esse era para ser o nome original, mas preferiram um nome mais geral – Escola Internacional de Cinema e de Tv. Eu disse, tá bem, o nome é esse, mas o sobrenome vai ser “Escola dos Três Mundos” – América Latina e Caribe, Africa e Ásia.
Que é uma idéia muito melhor do que a de “terceiro mundo”…
O conceito de terceiro mundo é idiota. Parte de uma mentalidade hierarquizante que se permite chamar a outro. Recentemente, em uma discussão, eu perguntava se alguém em seu perfeito juízo pode dizer que seu interlocutor é de terceira categoria? Essa é uma concessão hierarquizante, elitista e estúpida. Quem nos chama de terceiro mundo, quem nos nomeou “terceiro mundo”? Certamente é quem se acha o primeiro… Não vamos cair nessa armadilha.
Texto: Eduardo Rascov
Fotos: Adriano Capelo