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A grande tela tríplice – mais conhecida por “painel Tiradentes” é uma das criações mais importantes do vasto catálogo de Candido Portinari, muitas delas espalhadas pelo mundo. O painel Tiradentes foi concluído pelo pintor maior em 1949, encomendado por uma tradicional família mineira para decorar o saguão do Colégio Cataguazes, na cidade do mesmo nome, em Minas Gerais. Em 1975 a obra foi adquirida pelo Governo do Estado de São Paulo e ficou exposta no grande saguão do Palácio dos Bandeirantes. Ela foi transferida ao Salão de Atos do Memorial da América Latina já na sua inauguração, em março de 1989. Visitar o Salão de Atos é uma oportunidade rara de se fluir a arte de Portinari, uma vez que a maioria de suas pinturas faz parte de coleções particulares. Em São Paulo, há apenas seis quadros do pintor expostos em três museus da cidade.
Ao longo das décadas, o Painel Tiradentes foi submetido a algumas intervenções de restauro. Em 2011, a obra passou por meticulosa revisão geral, missão para a qual foi incumbido o restaurador e perito judicial de artes Cezar Roberto Olandim. Há 35 anos na estrada, Olandim, por exemplo, restaurou o acervo do Governo Estadual, em um projeto coordenado pela curadora Radha Abramo.
Os trabalhos de restauração do Painel Tiradentes duraram seis meses. Foi necessário dedicação integral para cumprir todo o ritual que uma obra dessa grandeza exige. “É sempre gratificante quando se chega ao fim de uma intervenção como essa, que, espero, tenha longa vida”, concluiu Olandim no final do processo. Os detalhes desse trabalho de fôlego podem ser conferidos na seguinte entrevista:
– Qual a primeira avaliação que você fez sobre as condições em que encontrou a obra?
Olandim: É preciso dizer, primeiro, que uma obra sexagenária como o Painel Tiradentes, feita com material 100% orgânico sofre degradação com o tempo. Portinari trabalhou com uma tela de linho que tem movimentos de dilatação, contração, captação e dispersão de umidade. A junção desses vários compostos acaba se transformando com o tempo, há sobreposição de camadas de tinta e tudo isso acaba desenvolvendo o processo de craquelamento.
– Quais as consequências desse craquelamento?
Olandim: Essas pequenas linhas e trincas se desenvolvem de forma radial, às vezes divergente e, em algum momento, um ponto começa a se expandir. Também pode se observar formação de cadeias de fungos oriundos da atmosfera, depósitos de impurezas em suspensão no ar.
– Foi possível, então, identificar rapidamente o grau de avariação da obra?
Olandim: Infelizmente o painel passou por intervenções amadoras que deixaram camadas de verniz mal aplicadas, pintura sobre o original, óleo sobre têmpera, tudo para tentar reaglutinar a tinta que está desprendida. Essas intervenções equivocadas vão causando tal dano à obra que fica impossível removê-las. O restaurador não reforma a obra, não repinta, não refaz o que está gasto. Ele apenas estabiliza o que está em processo de degradação e reintegra com critério técnico o que foi destruído.
– A partir desse diagnóstico como o trabalho se desenvolveu?
Olandim: O processo de restauração passa por pelo menos oito itens. Dois deles – mapeamento da obra e a identificação dos danos – já comentamos. Então, passamos para a documentação fotográfica, limpeza frente e verso, estabilização da pintura, reintegração de pequenas lacunas e furos para, daí sim, fazer o tratamento do chassi com cera própria, de forma a evitar insetos, principalmente os xilófagos, que são comedores de madeira e têxteis.
– Nas regiões que precisavam ser prenchidas com tinta como é que você procedeu? Isso exigiu alguma técnica especial?
Olandim: A tinta é a mesma, guache têmpera. As técnicas de restauração são internacionais. Eu usei a técnica do tratégio. É importante lembrar que não se mexeu em nenhuma parte onde havia pintura, apenas nas regiões que não tinham mais tinta. Essa técnica permite a reintegração usando cores análogas às do entorno por meio de linhas paralelas ou assoriadas. Com isso, um observador, analista ou crítico poderá identificar, no futuro, onde houve a intervenção pictórica.
– Com uma carreira já longeva você diria que essa é uma profissão prazerosa? Qual é o prêmio maior ao final de um trabalho como esse do Painel Tiradentes?
Olandim: De fato, nem tenho idéia de quantos quadros já restaurei. Mas, frequentemente reencontro várias obras em que trabalhei. E posso garantir que é muito gratificante constatar que uma restauração feita há 20, 30 anos, se mantém, estável.
– O grau de dificuldade varia de obra e do tipo dela, pintura, escultura etc. Lembra-se qual foi o seu maior desafio nesses anos todos?
Olandim: Lembro bem. Foi uma cabeça cubista de Picasso. O dono herdou a obra mas jamais a tinha contemplado porque ela veio enrolada dentro de um tubo de latão. Nenhum restaurador aceitara o trabalho por que a tinta da tela havia colado nas paredes do tubo e ninguém conseguia removê-la.
– Qual foi o truque, então?
Olandim: O tubo era rosqueado. Aqueci-o com vapor e quando abri a tela saiu sem nenhuma dificuldade. Com o mesmo processo, pude planificar a obra e reintegrá-la em um chassi novo. Como não tinha sofrido ação de raios ultravioleta e infravermelho, de poeira e ataques de insetos, a obra ficou perfeita.
– Que conselhos e dicas você daria a quem queira entender um pouco como é o trabalho de restauração?
Olandim: Costumo comparar as intervenções em obras de arte com as cirurgias em seres vivos: quanto mais profundo for o corte, maior é o risco. Para durar centenas de anos, a obra de arte requer medidas permanentes de conservação e monitoramento, não só dela, mas do meio em que se encontra em relação à umidade, às diferenças térmicas, sujidade e vandalismo.
Por Eduardo Rascov