
“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”
(Clarice Lispector)
CAPÍTULO I – A ROTINA

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6:00h
“mais um dia…”
Não sei se dou conta.
Porque é tão difícil?
Não tou falando do trabalho… O trabalho eu faço, dou conta. Até gosto, na verdade… são só planilhas…
Não entendo terem tanta dificuldade com isso…
Sorte minha.
O difícil é abrir os olhos e pensar: “mais um dia”.
Isso, não sei se dou conta… que luta!
Banho tomado.
Maquiagem… básica é claro.
Café requentado.
O pão de ontem ainda tava bom… e tem muito…
Será que guardo pra amanhã? Guardo! Fica bom na airfryer… azeite e tomate… hmm
Devia ter feito assim hoje.
Engordei… mas tava magra. Tanto faz….
Ponho roupa além da que gosto de usar. Decote, nem pensar.
Queria matar aqueles tarados todos do ônibus.
Que nojo dessas pessoas…

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– Quer que eu segure sua bolsa, moça?
“Não, obrigada!”
O que esse cara tá querendo com minha bolsa? Todo dia isso.
Podia era me dar o lugar dele. Tou velha já.
O próximo que passar roçando vai ouvir…
(Nunca falo nada… queria ter energia pra isso)
Ai, minha perna… cansaço…
8:30h
Elevadores… são só outro tipo de coletivo … Menor e na vertical… muito menor…

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Não gosto de elevadores, metem medo.
E se parar, vou ter que ficar presa com essas pessoas?
Aff! São só 5 minutos.
Por que o tempo demora tanto pra passar?
Por que tem que parar em todos os andares?
– Qual o seu andar, moça?
“…23”.
(como se ele não soubesse. E por que está me encarando? O que é isso saindo da orelha dele?)
– Oi, bom dia! Tudo bem? Você é a menina que trabalha no 23º, né? Sempre te vejo quando passo por lá. Tudo bem?
Sou o Jardel, da correspondência…
“ … bom dia”.
(Fones de ouvido. Amanhã não posso esquecer)
Por que esse povo insiste em cumprimentar a gente? Não me conhecem, não quero que me conheçam e não quero conhecer ninguém… é muita informação sem necessidade!

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Saudades do Nico, minha melhor companhia sempre.
Os gatos deviam mesmo ter sete vidas… ou nove…
Merecem mais do que essa gente que não significa nada.
Nem sei porque nasce tanta gente no mundo.
Meu Nico…
Din-don! (o som da salvação!)
– 23! Alguém desce?
Filho da mãe! Ficou parado na porta só pra se esfregar…
(Preciso do emprego, preciso do emprego).
Tento chegar na minha mesa sem chamar atenção, e os olhares dos colegas ficam me cobrando um “bom dia” que não vou dar.
(Hoje não, malditos!)
Só quero sentar na minha mesa e me esconder no meio de tanto papel inútil.
(Pobres árvores…)
“Não obrigada, já tomei café”.
Por que acham que vou comer coxinha de manhã? É a

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morte empanada. Morte de um bichinho e a minha também, chegando embalada em farinha de trigo e com muita gordura. Me deu vontade de comer, mas não vou… mais em respeito ao cadáver desfiado do que por mim mesma… mas tá com a cara tão boa… Fome!
12:00h
“Não vou, não. Tenho muito trabalho”.
(Não, não quero almoçar com eles. Que sofrido!)
Tou com enjoo.
Labirintite aos 30 anos é triste. Vou ter que diminuir o refrigerante… ou o energético… talvez parar de fumar…
Não sei o que ainda faço nessa vida.
Tudo o que eu queria era um pouco de paz…
Quem deixou esse chocolate pra mim? Que grande! É o terceiro esta semana…
Será que é por isso que tou engordando?
14:00
– quer um cafezinho, Helena?
“…”
Quantas vezes mais vou ter que responder com meus silêncios?
Que cansaço…
“Não, não tenho filhos e nem quero ter! Não é porque você tem 3 que é a dona da verdade do mundo. Não vou ser mais feliz ou realizada porque tenho filhos ou me casando… aff!”
Essa Juliana não se enxerga. Quer cuidar da vida de todo mundo. Não sabe nada da minha vida e quer ditar regras.
O bom é que com ela posso explodir de vez em quando e dizer o que penso.
(Nem tudo, é claro, senão era demitida na hora).
“Não, cara! Não preciso de sua ajuda, desencosta! ”
Não sei mais o que fazer. Ainda passo pela puta que não sabe dar limites. Um dia ainda mostro pra todo mundo os prints das escrotices que esse babaca me manda.
(Pra quê, né? Ninguém dá bola pra isso mesmo)
– Homem é assim mesmo. Ele só tá brincando.
(Bando de homem sem noção e mulher que ainda dá razão).
(Quero ir pra casa!!!)
Enquanto isso, o tempo passa lento, e as pessoas passam, só passam… não deixam nada… E se deixassem, também não ia querer… não preciso…
18:00
Elevador, ônibus… agora, todos com aquele olhar cansado, distante… pelo menos tão mais quietos…
O que que esse cara tá olhando?
Nojo…
CAPÍTULO II – A NOTÍCIA
20:00
Será que passo na padaria, antes de subir? O pão tá velho…
De onde vem esse miado?

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“Pss pss pss… pss pss pss…. vem cá, gatinho!!!”
“Oh, meu Deus! Tão pequeninho e magrelo!”
“Vem com a mamãe, meu filho… vem!”
Não sei que mundo é esse que não protege essas criaturinhas.
Todo lascadinho, tadinho. Não mais!
“Vem que vou te cuidar!”
Ainda tem comida do Nico em casa. Hoje, menos uma criatura largada nas ruas… O Nico ia gostar de saber… Meu Nico…
Minha mãe vai é me dar uma bronca. Mal sobra dinheiro pra eu comprar os remédios dela e lá vamos nós com despesa de veterinário, antipulga, ração…
Que seja… ninguém é por ele. Eu sou….
“Carlitos!!! Agora você é o meu Carlitos!”
Que idiota deixa um bichinho assim nas ruas?
21:00
Que saco!!! Não tenho paz nem em casa?
O que é pra eu ver na TV a essa hora?
Devia ter deixado o celular no silencioso… Pandemia? Que pandemia?
“Carlitos!!!”
Onde se enfiou esse menino?
“Vem com a mamãe, filho” … pequenino e bagunceiro. Aqui pode, a casa é sua.
– Alô, Helena? É o Jardel, da Correspondência… lembra de mim? Falei contigo no elevador outro dia… Agora tou trabalhando direto com o chefe. Não precisa vir amanhã, não. O Dr. Figueiredo disse que é pra todo mundo ficar em casa esta semana. É, tem uma tal de pandemia que tá matando todo mundo. Ele vai explicar amanhã. Você tem aplicativo de teleconferência? Também não sei o que é isso, mas ele vai explicar… Você está bem?

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22:00
Ligo a TV…
– A morte que vem pelo contato, barreira sanitária, taxa de transmissão, confinamento, estado de calamidade, teletrabalho, use máscara, lockdown, vacina, protocolo, sequelas, auto isolamento, resiliência, distanciamento social…. Fique em casa!”
Acendo um cigarro, abro a janela e contemplo a noite.
Me preparo para dormir com um sorriso no rosto.
“Bons sonhos, Heleninha!”, me permito dizer…
Dou um beijo no Carlitos… “boa noite, filho!”
E o sono vem fácil…
CAPÍTULO III – LIBERTAÇÃO
08:00h
Perdi a hora? Não… que coisa boa!
É disso que se trata a felicidade, Carlitos?
“Já comeu, meu filho? Bom dia!!!”
(tá lindão, meu filhinho!)
Receber esse carinho, sem julgamentos, sem outra intenção além do amor verdadeiro… Ah, como eu amo essas criaturas!!!
Acho que eles são outro estágio da evolução. Sabem tudo, sentem tudo, não pedem nada….
– Oi, Helena, bom dia! É o Jardel da Correspondência… lembra de mim? O Dr. Figueiredo pediu que a senhora cuidasse dos relatórios de vendas.
A senhora pode ligar a câmera do seu monitor? Não? Tá bom, é que fica estranho essas reuniões sem a gente ver quem está do outro lado.
Quebrou, é? Se precisar, tenho um técnico bom pra indicar… é o primo de um amigo meu…
Não precisa? Ok…
Um mês dessa tal pandemia. Estou no paraíso? E o que eu vou fazer bom hoje?

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Chegaram as telas! Vamos de aquarela!
Sempre quis tentar um quadro…
Melancias? Não, hoje vou fazer um cogumelo…
Nunca pensei que pudesse viver assim… faço o que quero, na hora que quero, da maneira que quero. Cumpro meus compromissos de trabalho, com mais capricho do que eu fazia antes. Não tem ninguém me assediando, ou cagando regras, ou curiando minha vida…
Faz tanto tento que eu não me pegava assim, emocionada com a vida, com a minha vida, com as coisas da minha casa, meus bibelôs, minhas plantinhas, meus filmes…
– Oi, Helena, boa noite! O Dr. Figueiredo disse que deu tudo certo com os relatórios. A turma está querendo fazer uma festa virtual e pediu pra eu ver contigo se quer participar. Não? Catapora? Entendo.
Vou falar com eles. Fica pra outra vez, né? Você está bem?
Não consertou a sua câmera ainda? Vou mandar de novo o contato de um técnico que eu conheço.
É primo de um amigo meu…
Helena? você tá aí?
CAPÍTULO IV – ADAPTAÇÃO
Faz três meses que não saio de casa.
Será que mando um cartão de cumprimentos pra quem inventou o delivery?
Nada… deve estar rico! Eu podia ter pensado nisso…
Esse menino entrega até que é legal…
Só deixa a comida, confere de longe que peguei tudo, dá um tchauzinho e um sorriso… Que discreto…
Sacanagem pagarem só R$ 2,00 pra ele por entrega.
Ficou 3 horas numa fila de supermercado pra fazer minhas compras. Isso é exploração demais…
(Todo mundo tem um Dr. Figueiredo na vida. O dele é um pouco pior que o meu)
Não custa dar uma gorjeta melhor pro menino, né Carlitos?
(Nossa! Nem sou de ligar pra isso, mas o menino ficou numa alegria só, tadinho. Chorou!)
Calma Carlitos, é só você que eu amo!
Saudades do Nico…
Faço o meu trabalho e ganho elogios que não ganhava quando ia praquele martírio.
Acho que faço as coisas com mais alegria agora.

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Cozinho minhas comidinhas, me visto como quero sem ter que ouvir abusos, curto o meu Carlitos, meu bom amiguinho… meu filho.
Tenho plantas! E eles estão tão lindas!
Como é que eu vivia antes sem isso?
(Vivia?)
Comida caseira faz bem… aprendi umas coisinhas bem legais.
Acho que perdi uns quilos. Ou ganhei… tanto faz….
E viva o Youtube!
Gostei do programa de yoga.
O que vou assistir hoje?
Até os shows estão dentro de casa…
“Olha, Carlitos! Vamos assistir as estrelas!”
“O Nico tá lá olhando pra gente! … Meu Nico…”
Isso tem que durar pra sempre!
Enfim, a paz!
CAPÍTULO V – O FIM DO MUNDO… Do meu Mundo…
– Helena! Tudo bem?
Você viu as notícias? Acabou!!!
O Dr. Figueiredo mandou avisar que podemos voltar ao trabalho!
Que alegria!!!
Helena? Lembra de mim… Jardel!
Te vi lá no 23º… conversamos no elevador… Helena?
…
Você gosta de chocolate?
Helena?
CAPÍTULO VI
6:00h
Porque é tão difícil abrir os olhos e pensar:
“mais um dia”.
Não sei se dou conta.

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