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Santería afro-cubana abre caminhos em terras caipiras
Sacerdote venezuelano radicado no interior paulista planta os fundamentos de culto afro-cubano em territórios marcados pela umbanda e pelo candomblé
Por Fernanda Horvath Réus e Sttéfani Peres
Fotos por Frank Hernandez Sarrassen
Chegando em Piracicaba, no interior de São Paulo, é comum, tal qual na maioria das cidades brasileiras, encontrar terreiros de umbanda e candomblé. Contudo, em uma casa discreta, aninhada em um bairro escondido na cidade, acontecem cultos afro-cubanos, práticas que, para muitos brasileiros, ainda são desconhecidas. Ali, Nicolas Romero, um sacerdote venezuelano, compartilha os saberes da santería e do palo mayombe, oferecendo uma nova perspectiva espiritual em terras tradicionalmente influenciadas por religiões afro-brasileiras.
A Santería, oficialmente conhecida como La Regla de Osha, é um culto que remete às tradições dos povos lucumí, trazidos para Cuba durante o período da escravidão. O termo “Lucumí” era a designação dada em Cuba aos yorubás e a outros grupos étnicos da África Ocidental, originários de um reino ou território chamado Ulcami/Ulcumi/Lucami, localizado perto do Golfo da Guiné. Esse termo antecede “yorubá” e foi amplamente utilizado pelos próprios africanos escravizados para se referirem a si mesmos, abrangendo diversos subgrupos que falavam a mesma língua.
Sua história é essencialmente ligada ao matriarcado. Como destaca Nicolas, “é um culto que sempre foi de mulheres, onde elas faziam tudo, e no início, algumas eram descendentes diretas de escravos. Na África elas eram princesas, rainhas de tribos. O culto tem início em Matanzas e depois é levado, por elas, para Havana”. Essa característica ressalta a importância do protagonismo feminino para preservar e transmitir essa rica tradição.
A filosofia da Regla de Osha, conforme explica Nicolas, é intrinsecamente ligada à busca por uma vida plena e próspera. “A Regla de Osha é um fruto que prolifera a longa vida. Nós fazemos santo para realmente ‘morrer de velhos’”, afirma ele, sublinhando a intenção de seus praticantes de alcançar a longevidade e o bem-estar através da fé. Essa cosmovisão se manifesta através de conceitos fundamentais no oráculo da tradição, o mérìndilogún (tradicionalmente conhecido no brasil como o jogo de búzios), como os irês e os osogbos.
Os irês representam as bênçãos, os caminhos abertos e as energias positivas, como o irê ariku (saúde), o irê ashegun ota (superação de dificuldades) e o irê abbilona (caminhos abertos). Em contrapartida, os osogbos são as energias negativas ou desafios. Nicolas detalha: “Osogbo aro é um osogbo de perda de saúde. Osogbo akoba é um osogbo de perturbações, revoluções. Tem o osogbo iku, que, apesar do nome, não significa que seja morte, mas osogbo iku também tem como significado finalizações, ou a morte de um ciclo, ou relacionamento, emprego, ou um negócio”. Para equilibrar essas forças, a prática dos ebbós (oferendas e rituais) é fundamental. “Quem faz ebbó se salva. Se na consulta vem o irê, temos que fazer ebbó para manter o irê. Se na consulta vem o osogbo, tem que fazer ebbó para tirar o osogbo e estar em irê”.
O primeiro contato de Nicolas com a santería surgiu de uma necessidade pessoal. Um problema persistente em uma perna, que nenhuma intervenção médica resolvia, levou-o a um fisioterapeuta cubano na Vila Olímpica da Venezuela. Foi esse encontro que abriu as portas para o caminho espiritual. “Ali ele falou: ‘Olha, eu estou achando que isso aqui não é normal, isso aqui é uma questão espiritual.’ Ali ele passou um contato para mim de alguém, na qual essa pessoa me atendeu, fez um ebbó e eu sarei. A minha perna sarou por uma questão espiritual”, relata o sacerdote sobre a eficácia da fé e das práticas de rituais em sua recuperação.
Na santería, Nicolas detém o título de obà (que significa rei). Ele tem seu orishá feito em oyá, o que significa que passou por um processo de iniciação e assentamento de seu orishá pessoal, tornando-se um “filho” direto dessa divindade. Ele tem como nome de santo Afefe Iku (Os ventos da morte). Ele também é praticante de Palo Mayombe, outra tradição afro-cubana com características distintas. “Palo é o que nós chamamos do bruxo, é voltado para bruxaria, feitiçaria. É um culto que é voltado também para a natureza”, explica o sacerdote, diferenciando-o da santería. “Ali envolve mistério, envolve tratados de fundamentação onde voltamos as energias para a natureza. Seja de uma planta, de uma terra, uma pedra, uma água específica, um inseto específico, a lua, o sol, as estrelas, o clima, a chuva, o vento. O palo envolve todos esses mistérios.”
Uma curiosidade é que enquanto no candomblé os orixás frequentemente permanecem de olhos fechados e se comunicam, geralmente através da dança e gestos, na Regla de Osha o orishá incorporado abre os olhos, fala na língua lucumi (que é a língua litúrgica utilizada pelos praticantes de santería em Cuba), necessitando de um tradutor para transmitir sua mensagem, e interage de forma mais direta, nesse caso de Oggun: dançando, fumando charuto e bebendo de uma cuia. A paramentação é mais simples, longe da ‘hiper-paramentação’ e coreografias estritas. Características que, segundo o sacerdote, alinham-se mais com as práticas originais africanas.
De Cuba para o mundo
A santería é uma das religiões afro-cubanas de maior proeminência, e sua presença em Cuba é notável. Estudos conduzidos pelos pesquisadores cubanos das religiões afro, Aníbal Argüelles Mederos e Ileana Hodge Limonta, indicam que no início do século 21cerca de 8% da população cubana era iniciada na santería (o que corresponde a um contingente entre 800 mil e 900 mil pessoas). Esse número, no entanto, é ainda maior se considerados os indivíduos que embora não iniciados recorrem com frequência a santeros e santeras em busca de auxílio espiritual para questões práticas do cotidiano.
Em 1991, o antropólogo cubano López Valdés estipulou que aproximadamente 90% da população de Cuba praticava alguma forma de religiosidade, e, dentro dessa maioria, os adeptos das religiões afro-cubanas superavam os praticantes do catolicismo romano tradicional. “As religiões afrocubanas em Cuba, mais que religião, são cultura; fazem parte da nossa idiossincrasia e da nossa história”, salienta Frank Hernandez Sarrasen, guia turístico em seu país e gerente da Beyond Roots – Afro Cuban Tours & Experiences.Embora tenha presença em áreas rurais, a santería sempre foi mais enraizada nos centros urbanos de Cuba, predominando nas províncias de Havana e Matanzas. Contudo, conforme Wedel observou nos anos 1990, era especialmente prevalente em bairros de classe trabalhadora, de baixa renda e majoritariamente afrodescendentes. Segundo o autor, homens e mulheres participam da religião em proporções aproximadamente iguais, demonstrando uma equidade de gênero dentro da prática.
Apesar de estar aberta a novos adeptos, a santería é uma religião não proselitista, o que significa que não busca ativamente converter novos fiéis, mantendo um caráter iniciático e discreto.Com os fluxos migratórios, sobretudo após a Revolução Cubana, a santería se espalhou para outros países da América Latina, como México (com destaque para Veracruz e Cidade do México), além dos Estados Unidos, Canadá (com um centro em Toronto) e diversas regiões da Europa, incluindo Espanha e Alemanha, onde ilés (casas de santo) foram formados. Nos EUA, sua presença é registrada desde a década de 1940, tendo se intensificado a partir dos anos 1960.
No Brasil, santeiros e praticantes relatam que a presença da santería se manifesta de forma mais notável no Rio de Janeiro, onde, acredita-se, a religião teve início no país. A partir da capital fluminense, a santería teria se disseminado para outras regiões, embora mantendo um caráter bastante discreto, característica que persiste até os dias atuais.