MÚSICA

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Ritmo em comum

Brasil, Cuba e Equador compartilham mais do que vizinhança: na música e na dança pulsa uma memória coletiva que atravessa gerações e une culturas

Por Samara Chrystine e Giullia Cartaxo

A conexão entre Brasil, Cuba e Equador vai além dos acordos diplomáticos, dos fóruns regionais ou das trocas comerciais. No campo simbólico e cultural, é nos sons, nas festas, nos corpos em movimento que essa ligação se torna mais visível e, principalmente, mais viva. Esses três países compartilham uma herança musical forjada no encontro e no confronto entre matrizes indígenas, africanas e europeias. É nesse caldeirão que surgem ritmos como o samba, a salsa, a rumba, o sanjuanito e a bomba. Cada um com suas particularidades, mas todos reverberando o princípio de transformar dor em celebração, memória em movimento e resistência em arte.

Brasil: o samba como corpo político
Mais do que um estilo musical, o samba é um modo de existir. Ele nasce da diáspora africana, da reinvenção cultural dos que foram arrancados de suas terras e obrigados a reconstruir o mundo com outras ferramentas. Para Rejane Romano, jornalista e presidente da Escola de Samba Filhos do Zaire, o samba é a voz dos invisibilizados. O gari que passa despercebido nas ruas é, às vezes, o mestre de bateria. A faxineira que entra pelos fundos da casa da patroa é a Rainha da Avenida”.

Rejane enxerga no samba uma ponte com outras expressões afro-latinas. A semelhança com a rumba cubana ou com a bomba equatoriana não está só na batida ou no gingado, mas também em algo mais profundo: “Todos esses ritmos têm essa ginga dos quadris, algo orgânico, natural, ancestral”, diz. É uma linguagem do corpo que ultrapassa o idioma falado e que se reconhece na percussão, na dança e na força coletiva.

Cuba: entre congas e passos
Cuba é ritmo por excelência. A rumba e a salsa, com suas batidas quentes e letras marcantes, são expressões de uma musicalidade que mistura religiosidade afro-caribenha com sofisticação melódica europeia. Foi nos bairros populares de Havana que a rumba floresceu como canto de resistência. Nos salões, a salsa conquistou o mundo.

Nos anos 1970, a salsa chegou a Nova York e, de lá, foi exportada para o mundo. No Brasil, esse movimento ganhou corpo graças a nomes como o bailarino Fernando Claumann, que fundou a companhia Conexión Caribe no ano 2000 e deu início ao Congresso Mundial de Salsa do Brasil, em 2003. Em São Paulo, Karina Carvalho dirige o Clube Latino, onde esse ritmo é dançado com rigor e paixão. Ela explica que existem diferentes formas de marcar o tempo: o on-one, mais direto, e o on-two, ligado à percussão tradicional. Cada escolha revela um tipo de escuta, uma sintonia fina com o corpo.

Equador: entre montanhas, tambores e rituais
A música tradicional equatoriana talvez seja uma das mais ricas e menos conhecidas da América Latina. Fruto do encontro entre os Andes e o Pacífico, ela incorpora tanto os ventos das montanhas quanto o som dos tambores costeiros.

Nos Andes centrais, o sanjuanito pode ser encontrado em círculos, acompanhado de instrumentos como o charango, a quena e a zampoña, evocando rituais sagrados e festas de colheita. Já o pasillo, mais melancólico, se tornou uma espécie de crônica cantada do país marcada por temas como saudade, amor e pertencimento.

Na costa, em Esmeraldas, a bomba nasce como uma música de luta das comunidades afrodescendentes. Tambores tocados com as mãos ditam o ritmo de danças e celebrações coletivas e grupos como Los Hermanos Congo e Bomba Blanca preservam essa tradição oral e corporal, levando-a para palcos internacionais sem perder o vínculo com as raízes.

Em 2021, o pasillo foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Equador. Ainda assim, como o samba no Brasil e a rumba em Cuba, os sons do Equador vivem mais intensamente no cotidiano das comunidades do que nos palcos midiáticos.

Quando vira tendência, o risco é esvaziar
Apesar de toda essa riqueza, a cultura latino-americana ainda é frequentemente apropriada de forma superficial. Elementos simbólicos, como os ritmos ou trajes típicos, são consumidos como estética sem o devido reconhecimento das comunidades que os criaram. Recentemente, o rapper Tyler, The Creator foi acusado de usar indevidamente uma composição de Gilberto Gil para fins publicitários. Para muitos, foi motivo de orgulho, afinal, um artista internacional reconhecendo um ícone brasileiro. Mas a pergunta permanece: será que só valorizamos nossa cultura quando ela ganha chancela internacional?

Esse processo também se manifesta nas modas passageiras. O ‘latina fairy’, tendência que romantiza uma suposta feminilidade latina, transforma traços culturais em produto visual. Saias esvoaçantes, batons vermelhos, cabelos cacheados e delineadores viram fetiche, esvaziando a potência histórica e política que carregam.

A cultura, quando desconectada de suas raízes, corre o risco de virar mercadoria. E quando o tambor vira apenas som de fundo, a dança só entretenimento e o traje um figurino bonito, se perde aquilo que mais importa: a alma viva desses povos.