/governosp
Saiba como foi o lançamento da biografia de João Batista de Andrade e o debate sobre sua obra.
Parte importante da programação de todas as edições do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo é a seleção do homenageado. Mostras panorâmicas, que contemplam vida e obra de um diretor consagrado, são, em geral, as mais disputadas pelo público e comentadas pela crítica, pois vão de encontro a uma proposta fundamental do Festlatino: o resgate da cinematografia do continente.
Já receberam a honra os argentinos Fernando Birri e Fernando Solanas, o mexicano Paul Leduc e o brasileiro Nelson Pereira dos Santos que, além da retrospectiva de seus filmes, presentearam o público do festival com aulas-magnas sobre a sétima arte. Em comum, todos cineastas-ativistas que colocaram o povo latino no primeiro plano de suas obras: Birri, um dos mais influentes cineastas latinoamericanos, autor do clássico Tire Dié (1959) e fundador da Escola de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños – EICT (Cuba); Solanas, responsável por obras de forte crítica social e questionamentos políticos, diretor da trilogia A hora dos fornos, documentário essencial na formação do cinema político no continente, eterno combatente na luta contra o abandono do povo argentino; Nelson Pereira precursor do cinema-novo brasileiro com seus Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte, autor da obra-prima Vidas Secas, fundador do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) e premiado em inúmeros festivais mundo afora; e Paul Leduc, que sempre colocou de forma realista a situação política e social do continente em seus filmes, autor de marcos como Reed: México insurgente (1973) e Etnocídio (1977).
Nesta 5ª edição, serão dois homenageados: Marcelo Piñeyro e João Batista de Andrade (acima, durante abertura do 1º Festlatino), diretor considerado dos mais importantes do cinema brasileiro, com quase 40 títulos no currículo. João Batista segue a linha engajada dos diretores que fizeram a história da cinematografia latina e, por seus filmes, já foi laureado em festivais nacionais e internacionais, com “O Homem Que Virou Suco” (1980 – foto abaixo), melhor filme no Festival de Moscou e premiado nos festivais de Gramado (roteiro, ator e ator coadjuvante), Brasília (ator), Huelva, na Espanha (ator) e Nevers, na França (filme e prêmio da crítica); “Doramundo” (1978), vencedor do Festival de Gramado (filme e diretor); “A Próxima Vítima” (1983), também premiado em Gramado e vencedor de três troféus da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte); e “O País dos Tenentes” (1987), uma produção contemplada com cinco troféus Candango no Festival de Brasília.
Além das ficções, sua importante trajetória como documentarista também será representada por filmes como ”Liberdade de Imprensa” (1966) – seu curta-metragem de estreia -; ”Greve!” (1979) e “Vlado – 30 Anos Depois” (2005). O festival promove ainda o relançamento, em edição ampliada, do livro “João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias: A Trajetória de Um Cineasta Brasileiro”, assinado por Maria do Rosário Caetano e editado pela Imesp, e uma mesa redonda que debaterá sua obra, mediada por Jean-Claude Bernardet.
Só o conjunto e a importância de sua obra já bastariam para tão abrangente retrospectiva, mas a trajetória de João Batista ultrapassa as definições “realizador” ou “produtor” de cinema; foi ele, quando Secretário de Estado da Cultura, um dos principais articuladores para que este mesmo Festival de Cinema Latino-Americano que agora o homenageia, nascesse. Realizador, fomentador, articulador político, todo João Batista de Andrade será homenageado a partir do dia 12 de julho.
Nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, no dia 1º de dezembro de 1939, João Batista passou por Uberaba e Belo Horizonte antes de se fixar em São Paulo, ao entrar no curso de Engenharia da Escola Politécnica da USP. Na POLI, iniciou sua carreira de cineasta ao realizar“Liberdade de Imprensa”. Neste curta-documentário, o jovem diretor capta os primeiros momentos pós-golpe de 1964; por meio de entrevistas com populares, políticos e especialistas, discute a imprensa brasileira, recém-atingida por uma lei de restrições. Produzido pelo Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, o filme seria distribuído pela União Nacional dos Estudantes (UNE), mas suas cópias foram apreendidas durante a ocupação militar do Congresso dos estudantes em Ibiúna, ficando por dez anos fora de circulação.
Ainda na POLI-USP, integrou o grupo “Escola Písico-Realista”, onde iniciou, no jornal literário da Casa do Estudante Politécnico (de 1962 a 1964), carreira de escritor. Seu primeiro livro, “Perdido no Meio da Rua” (1989), remonta exatamente a textos de ficção escritos durante o golpe militar. Depois vieram o juvenil “A Terra do Deus Dará” (1991), o romance “Um Olé em Deus” (1997), entre outros.
No final dos anos 1960, aproximou-se dos produtores da Boca do Lixo, do Cinema Marginal, onde realizou “Gamal, o Delírio do Sexo” e “O Filho da Televisão”, episódio do longa “Em Cada Coração Um Punhal”. No início da década seguinte, dirigiu, com Jean-Claude Bernardet, dois filmes para a Comissão Estadual do Cinema sobre a história do cinema paulista, “Paulicéia Fantástica” e “Eterna Esperança”.
Viveu rico período na televisão, onde realizou importantes reportagens, como “Migrantes”, para o programa Hora da Notícia, na TV Cultura – em que trabalhou com Fernando Jordão e Vladimir Herzog. Este último, amigo pessoal, cuja perda o marcou profundamente e culminou na produção de “Vlado, 30 Anos Depois” (2005). Nos áureos tempos do programa Globo Repórter (Rede Globo) – quando por lá passaram cineastas como Paulo Gil Soares, Eduardo Coutinho e Jorge Bodanzky -, produziu os hoje célebres “Caso Norte” e “Wilsinho Galiléia”. Desta experiência na televisão, passou a integrar o movimento Cinema de Rua, com a produção de documentários para circulação alternativa em cineclubes, associações, sindicatos etc.
Durante a abertura política, deu seu testemunho em filmes como “Greve!” e “Céu Aberto”, difundidos com sucesso pela Dinafilmes (distribuidora do Conselho Nacional de Cineclubes, organização a que sempre esteve ligado). O tema dos migrantes é retomado no consagrado “O Homem que Virou Suco” e a derrota dos ideais políticos e a perda de ilusões são temas de reflexão em vários de seus filmes, como “O País dos Tenentes” (foto abaixo), revisão biográfica de ex-militar que passou dos levantes tenentistas a cargo em multinacional.
Com o golpe que representou o corte do fomento à produção cinematográfica pelo governo Collor, João Batista buscou o isolamento e a reflexão no interior do Centro-Oeste brasileiro. Na região, algum tempo depois, realizou filmes como “O Cego Que Gritava Luz”, “O Tronco” e “Rua Seis, Sem Número”, já da safra da retomada do cinema brasileiro.
Além de sua produção cinematográfica e literária, atuou em diversas frentes do cinema e da cultura brasileira. Foi duas vezes presidente da Associação de Cineastas de São Paulo, presidente da Cinemateca Brasileira, conselheiro do Museu da Imagem e do Som (SP) e coordenador geral da primeira e terceira edições (1999 e 2001) do Fica (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental), que acontece em Goiás; além de Secretário de Estado da Cultura entre os anos de 2005 e 2007.
Leia entrevista exclusiva de João Batista para o 5º Festlatino
fotos de João Batista por Marcos Finotti
Filmes na programação:
“Liberdade de Imprensa” (Brasil, 25 min, 1966) – O filme traça um painel das condições da imprensa brasileira após o golpe de 1964, discutindo a Lei de Imprensa e a internacionalização dos meios de comunicação. Foi um dos primeiros balanços críticos feito pelo cinema brasileiro após o golpe. No filme estão presentes as passeatas, as imagens da marcha pela família, as cenas da repressão policial aos estudantes, entre outras.
“Portinari, um Pintor de Brodósqui” (Brasil, 10 min, 1968) – Visão da obra de Portinari, relacionada à sua infância em Brodósqui, com reconstituições de cenas que inspiraram o pintor, como o enterro da criança no caixãozinho azul e o futebol de meninos.
“Gamal, o Delírio do Sexo” (Brasil, 90 min, 1969) – Diante da realidade brasileira pós-AI5, um jornalista percebe sua total impotência política, entra em crise e vive uma série de episódios autônomos que expressam seu completo desespero. A fragmentação da narrativa impede a construção de uma estética alegórica, que remeta a uma única representação do Brasil, e o filme se torna uma expressão ainda mais forte da angústia e do medo imperantes à época, uma metáfora sobre a repressão recheada de belas imagens de desespero. Com Joana Fomm, Paulo César Pereio, Lourival Pariz, Fernando Peixoto e Flávio Santiago.
“O Filho da Televisão” (Brasil, 30 min, 1969) – Um dos episódios do longa-metragem “Em Cada Coração um Punhal”, o filme aborda a cultura de massa pelos bastidores, ao acompanhar as peripécias de um publicitário às voltas com o lançamento de um novo garoto-propaganda, que se torna amante de sua esposa. O filho que nasce dessa relação concretiza a metáfora que dá nome ao filme. Com Joanna Fomm, John Herbert, Medeiros Lima, João Batista de Andrade, Ana Maria Cerqueira Leite e Abraão Farc.
“Paulicéia Fantástica” (Brasil, 100 min, 1970) – Nas palavras de Vladimir Herzog à revista Visão, “Uma equipe de pesquisadores sob a direção de João Batista de Andrade partiu para fazer um documentário sobre os inícios do cinema paulista. O resultado foi um filme feito com o espírito iconoclasta dos modernistas de 1922. Mas com os olhos voltados para os tempos atuais”.
“Eterna Esperança” (co-direção: Jean-Claude Bernardet, Brasil, 30 min, 1971) – A segunda parte da revisão do cinema paulista feita por João Batista de Andrade e Jean-Claude Bernardet aborda o cinema paulista dos anos trinta até o final da década de 40. Discute a relação entre o cinema e o Depto. de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas, e a aspiração nacional a construir uma indústria de cinema.
“Migrantes” (Brasil, 7 min, 1972) – A partir de notícia de jornal com queixa contra migrantes sob viaduto, a proposta é lhes dar voz. Um curioso passa a entrevistar o migrante, num embate entre “migrante padrão” e “paulistano típico”.
“Restos” (Brasil, 10 min, 1975) – O filme surgiu de um depoimento de um técnico americano que, examinado o lixão paulista para eventual exploração industrial, declarou: “o lixo de São Paulo é o mais rico do mundo”.
“Buraco da Comadre” (Brasil, 10 min, 1975) – Um buraco enorme com mais de 20 anos de existência ocupa uma rua, sem que se encontre solução. O filme é uma discussão sobre o que fazer e sobre a relação da população com o progresso e com as autoridades.
“Doramundo” (Brasil, 95 min, 1977) – Numa pequena cidade de cordilheira, num ambiente de névoa e pouca luz, ocorre uma série de assassinatos. Baseado no romance de Geraldo Ferraz, o filme constrói uma história de dupla leitura: apesar de se passar em 1939, é um dos melhores retratos da situação política brasileira dos anos 70. Os policiais olham a população local com repulsa e transformam todos em suspeitos, e o filme deixa claro como, sob o pretexto de manter a ordem, o poder estabelecido oprime os cidadãos. Com Rolando Boldrin, Irene Ravache, Antonio Fagundes e Armando Bogus.
“Wilsinho Galiléia” (Brasil, 82 min, 1978) – A reconstrução da vida trágica de Wilsinho, transformado aos 14 anos em bandido perigoso, várias vezes preso e finalmente fuzilado pela polícia no dia em que completaria 18 anos. Com Paulo Weudes, Gilberto Moura e Ivan José.
“O Homem Que Virou Suco” (Brasil, 90 min, 1979) – Deraldo, poeta popular recém-chegado a São Paulo, é confundido com o operário de uma multinacional que havia matado o patrão na festa em que receberia o título de operário símbolo. Perseguido pela polícia, Deraldo perde sua identidade e sua condição de cidadão, passando a transitar entre vários pequenos empregos e situações inusitadas. Com José Dumont, Célia Maracajá, Denoy de Oliveira, Barros Freire, Renato Master, Rafael de Carvalho, Ruthnéia de Moraes e Ruth Escobar.
“Greve!” (Brasil, 37 min, 1979) – Documento histórico e opinativo de João Batista de Andrade, “Greve!” narra os principais acontecimentos da greve dos metalúrgicos do ABC, ocorrida em março de 1979. Naqueles dias o sindicato esteve sob intervenção, e Lula e outros dirigentes haviam sido afastados. Entrevistas com o interventor do sindicato e com os operários, com cenas de seu cotidiano e das assembléias.
“A Próxima Vítima” (Brasil, 93 min, 1983) – Em período de eleições um jornalista de televisão é pautado para cobrir uma sucessão de crimes ocorridos no Brás. Fica amigo de um dentista prático conhecedor dos segredos do bairro e se envolve com uma menina-prostituta. O delegado se vale do jornalista para exibir na televisão o homem escolhido como bode expiatório. Com remorso, o jornalista procura o perseguido para tentar dar voz a ele. Mas este não aceita o repórter como seu representante e reage com violência, em cena síntese do filme. Com Antonio Fagundes, Gianfrancesco Guarnieri, Mayara Magri, Louise Cardoso, Othon Bastos, Ester Goes e Aldo Bueno.
“O País dos Tenentes” (Brasil, 75 min, 1986) – No dia em que é homenageado por uma multinacional, um general da reserva entra em crise e começa a rememorar a sua participação nas revoluções de inspiração tenentista. Isolado em sua casa de campo – já cercada pelo avanço da zona periférica – ele relembra as traições, os ideais frustrados e as divergências políticas entre os tenentes. Uma trajetória que coincide com 60 anos de vida política brasileira. Com Paulo Autran, Cássia Kiss, L. Pariz, Ricardo Petraglia, Buza Ferreaz, Giulia Gam e Carlos Gregório.
“O Cego que Gritava Luz” (Brasil, 73 min, 1996) – Às margens do Paranoá, em Brasília, um contador de histórias entretém os freqüentadores de um bar. Mas reluta em levar até o fim o caso de um assassinato cuja testemunha foi um cego. Pressionado pelos ouvintes, volta ao início do relato: a luta pela posse do lago entre agentes imobiliários e seu conflito com um grupo de posseiros. Sob a máscara do contador, revela-se alguém que se refugiava do passado, e o caso que hesitou em contar revela-se a história de sua própria derrota pessoal e política. Com Tonico Pereira, Roberto Bomtempo, Carmem Moretzsohn, Luciano Porto e Murilo Grossi.
“O Tronco” (Brasil, 109 min, 1999) – O filme é uma adaptação do romance de Bernardo Elis que, por sua vez, escreveu baseado em fatos reais. O coletor de impostos Vicente Lemos, homem de confiança do governo, é enviado para a região Norte a fim de combater o domínio absoluto exercido pela família do patriarca Pedro Melo. Mas os conflitos se acentuam e o governo acaba enviando uma tropa com soldados comandada pelo astuto e carreirista Juiz Carvalho, que inicia uma guerra selvagem entre jagunços e soldados. Com Antonio Fagundes, Ângelo Antônio, Letícia Sabatela, Rolando Boldrin e Chico Diaz.
“Rua 6, s/ n°” (Brasil, 100 min, 2002) – Desempregado, Solano recebe de um moribundo a incumbência de entregar a uma tal “Maíra” um pacote de dinheiro. Onde? Numa rua seis e nada mais. Mas ruas ou quadras seis existem por toda parte da periferia, nos arredores do plano piloto da capital brasileira, uma das mais violentas regiões do país. Descontente da vida, Solano parece procurar para si uma outra história. O encontro com “Maíra” se dará como um encontro com seu próprio passado. E, eventualmente, com sua morte. Com Marco Ricca, Luciana Braga, João Acaiabe, Henrique Rovira, Christine Fernandes, Umberto Mangnani, Gracindo Jr. e André Jorge.
“Vlado – 30 Anos Depois” (Brasil, 84 min, 2005) – Chamado ao DOI-CODI durante a ditadura militar para prestar depoimento, Vladimir Herzog, mesmo questionado pela mulher, recusou-se a fugir, alheio à clandestinidade. No mesmo dia, a família recebeu a notícia de sua morte, segundo fonte oficial, por suicídio. O filme revela sua trajetória, desde a infância na Iugoslávia até a posse na direção de jornalismo da TV Cultura. A recusa da mulher, amigos e sociedade à farsa montada para justificar a morte do jornalista tornou-se um marco na luta pela redemocratização do país.
“Travessia” (Brasil, 79 min, 2009) – A travessia de gerações sob influência da ditadura militar e da abertura política. Histórias e reflexões de pessoas que tiveram uma participação expressiva nesse período, seja a favor ou contra o golpe de estado.
Serviço:
5º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo
12 a 18 de julho de 2010
Memorial da América Latina – Av. Auro Soares de Moura Andrade 664, Barra Funda
Cinesesc – Rua Augusta 2075, Cerqueira Cesar
Sala Cinemateca – Largo Senador Raul Cardoso 207, Vila Mariana
Museu da Imagem e do Som – Av. Europa, 158, Jardim Europa
Cinusp Paulo Emílio – Rua do Anfiteatro 181 favo 4, Cidade Universitária
ENTRADA FRANCA
Abertas inscrições para Oficinas Audiovisuais do 5º Festlatino
“Água Fria do Mar”, da costarriquenha Paz Fábrega, abre 5° Festilatino
Confira como foram as edições passadas: