ENTREVISTA
Acervo Pessoal/Vaca Azul

O som das margens também tem centro

Violonista, regente e pesquisador, Marcelo Fernandes reflete sobre o caldeirão cultural do Mato Grosso do Sul e os sons que ainda não aprendemos a escutar

Por Gustavo Ranieri

Poucos músicos carregam nas mãos a memória de um continente e, ao mesmo tempo, a intimidade com sua própria terra. Marcelo Fernandes começou a escrever sua trajetória internacional aos 23 anos, quando conquistou o Prêmio Nascente da USP e venceu uma série de concursos de interpretação instrumental. Formado pela Universidade de São Paulo, com doutorado em música e passagens por conservatórios da Europa e da América Latina, ele atravessou palcos do mundo como solista, camerista e pesquisador — e também cruzou o Brasil com o projeto Sonora Brasil, do Sesc, realizando 90 concertos em 20 estados em apenas três meses.

Radicado em Campo Grande desde 2005, Marcelo fincou raízes no Mato Grosso do Sul como professor da UFMS — ele compôs o hino da universidade, inclusive —, criador da Camerata Madeiras Dedilhadas e diretor artístico de projetos como o Festival Internacional de Violão e a série Movimento Concerto. Ao lado da cantora Ana Lúcia Gaborim, com quem forma o Duo Amábile, ele vem aprofundando pesquisas e criações que atravessam os repertórios erudito e popular, as influências latino-americanas e a poesia sul-mato-grossense.

Nesta conversa, Marcelo reflete sobre silêncios culturais, afetos musicais e os sons que ainda não aprendemos a escutar.

Você vive e cria no Mato Grosso do Sul. Em que medida essa geografia de fronteira, entre línguas, ritmos, culturas, influencia a sua maneira de pensar e compor música?
O Mato Grosso do Sul é um estado sui generis, com sete fronteiras, incluindo as divisões internas e as fronteiras internacionais com Paraguai e Bolívia. Esse contato com outros países da América Latina é intenso e atravessa toda a formação cultural da região, marcada também por eventos históricos como a Guerra do Paraguai e por populações indígenas que vivem nas cidades e mantêm vivas suas tradições. Viver nesse caldeirão cultural há duas décadas me levou a repensar não só as relações humanas, mas também a minha própria arte e maneira de compor. Embora eu seja paulistano, sempre tive uma grande afinidade com a América de língua espanhola. Já estudava essa aproximação antes de me mudar para cá. Estar no Mato Grosso do Sul apenas fortaleceu esse vínculo, tanto com os Andes, com os pampas e com a beleza plural da região. Também me fez ampliar o sentimento de pertencimento ao Brasil como um todo. O Brasil é atlântico, sim, mas também é pampa, é guarani, é fronteira. E isso é muito enriquecedor.

Como surgiu a ideia de criar projetos como a Camerata Madeiras Dedilhadas? Qual era o vazio ou urgência que você sentia e que a música ajudou a preencher?
A Camerata Madeiras Dedilhadas nasceu da observação de um potencial ainda inexplorado: tínhamos, aqui no Mato Grosso do Sul, violonistas e músicos de sopro de altíssimo nível, sobretudo madeiras, mas que não estavam reunidos em um mesmo conjunto. Como professor, percebi que havia ali uma oportunidade de criação. No começo, a motivação foi reunir esses músicos talentosos; depois, surgiu a necessidade comum de construir e adaptar um repertório próprio para essa formação inédita. Outro ponto importante é que o estado ainda carece de grupos profissionais estáveis, o que abriu um espaço significativo para a atuação da Camerata. Foi assim que ela encontrou seu lugar, não só como projeto artístico, mas como resposta a uma demanda real por música de qualidade e formação cultural no Mato Grosso do Sul.

Aliás, você acredita que o Mato Grosso do Sul é um estado que tem sido historicamente escutado em sua riqueza musical? Que sons nos escapam quando olhamos apenas para os grandes centros?
Bom, primeiro, sobretudo o Paraguai e a Bolívia são, para os ouvidos atlânticos, culturas distantes. Talvez duas ou três guaranias saltem aos ouvidos mais velhos, mas são culturas distantes. E aqui, em Mato Grosso do Sul, essa tradição está bem vívida, sobretudo a paraguaia, né? Tem muitos paraguaios aqui. A gente tem o que eles chamam de rasqueado, que é um híbrido entre o rural brasileiro, sobretudo em compasso três por quatro, e os povos paraguaios, que vêm em seis por oito, e acabam se misturando aí. Essa música integra, mais ou menos, o ouvido daqueles que realmente se interessam pelo cancioneiro brasileiro. Eu acho que aí tem algo para contribuir, né? Agora, também o estado tornou-se bem diverso do Mato Grosso em muitos aspectos depois da divisão dele. Ele mantém algo da tradição rural de Mato Grosso, seja música quilombola, música de raiz do século 19, música de beira de rio com viola de cocho. Mas tem também uma tradição que é a mescla de tudo que acontece em Campo Grande, que é um entroncamento de estradas, então você vai ter aqui a fixação de culturas japonesa, libanesa, italiana, o que é inesperado para quem olha de fora.

Ou seja, é realmente um caldo cultural.
Sim, essa mistura gerou, por exemplo, os Espíndola, sobretudo a Tetê e a Alzira, que tiveram uma carreira fora daqui. Mas também temos Geraldo Espíndola aqui, que é uma voz potente, linda, que representa um sucesso mais vocal. Você tem, por exemplo, o Guilherme Rondon, que vem do interior mas faz carreira aqui, e depois se junta com um pessoal forte de MPB. E ainda tem um cara como o Almir Sater, que hoje está nesse universo sertanejo, mas é maior do que isso. Ele tem uma amplitude, fez muito mais coisa na vida e representa isso aqui no estado. Então, acho que a escuta desse repertório, com todas essas características latinas e, ao mesmo tempo, uma afirmação local, pode contribuir para o pensamento, por exemplo, paulistano, carioca. De repente, trazer um ar fresco, acredito que seria muito importante.

Mas existe um imaginário do “centro” e das “margens” na música brasileira, certo? Como romper com essa lógica a partir do interior do país?
Eu acho que, como ideia didática, o centro e a borda são úteis. Então, eu não me preocupo muito em romper, desde que você saiba que o centro é só um conceito, ele não é um centro de fato, ou seja, ele não merece mais atenção, ele não merece mais estudo. O centro é normalmente onde a gente está. Isso é natural para o ser humano, né? Se você não achar o lugar que você está, o seu lugar, e nele você se sentir em casa… Não acho que um paulistano deva carregar a culpa de ser paulistano e não achar que o lugar que ele está é de fato o centro do pensamento dele. É o centro, agora, é o centro desse jeito que eu me reconheço. Quando você olha para aquilo que você consideraria as bordas, as margens, você tem que olhar com o mesmo interesse ou até mais, né? Aí sim, eu acho que se você achar que o que está na margem do seu ser é menos interessante ou é menos importante, aí você está de alguma forma errando. Por exemplo, a nossa cultura é de matriz europeia, e ela é mesmo. Ela tem traços da cultura indígena e traços bem mais fortes da cultura africana. Isso não é um problema, isso é o que é. Acho que o problema está quando você desdenha de algo, não quando você reconhece algo mais central em você e menos central.

Nesse mesmo sentido, você enxerga uma afinidade musical entre o Brasil e seus vizinhos latino-americanos? Como essa irmandade sonora se manifesta na sua escuta e no seu fazer artístico?
Bom, eu estudei no Uruguai. Tenho muitos amigos argentinos e gravei um disco de música latino-americana há mais de dez anos. Então, para mim, a integração é parte da vida. Tocar o repertório latino-americano no violão solo sempre foi minha vida. No Brasil, ainda tem muito para caminhar nisso. Eu vejo que, quando estava no Uruguai, as pessoas ouviam música do Centro-América, ouviam música da Colômbia. E no Brasil, se você perguntar para um brasileiro o que é uma cumbia, ele acha que é uma panela, sei lá. Então, realmente, o Brasil tem muito a andar aí.

Por fim, se pudesse compor um retrato sonoro do Brasil de hoje, que instrumentos você escolheria? Que ritmo teria essa composição e qual silêncio ela conteria?
Bom, é uma pergunta muito difícil, pois acho que nós silenciamos muita coisa boa nossa. Nós não reconhecemos aquilo que temos talvez de mais importante, e isso é muito triste. Produzimos um repertório de músicas de concerto, canções clássicas, sinfonias, música litúrgica cristã que, na América, incluindo a do Norte, é extraordinário. Os norte-americanos, sim, depois da guerra, se organizaram, importaram todos os judeus que puderam, aproveitaram o potencial dos afrodescendentes e fizeram uma música de mídia forte, mas o Brasil já tinha isso há muito tempo, e mais. Mas o Brasil ignora, despreza sua música artística elaborada. Acho isso uma pena. Esse silêncio em relação ao nosso patrimônio cultural revela uma falta de consciência de quem somos. Temos Vila-Lobos, Guarnieri, Guerra-Peixe, Vignoli, Edino Krieger, todos extraordinários e desconhecidos. No século 19, Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, Leopoldo Miguez. O silêncio sobre eles é estarrecedor.

Mas você critica a música urbana?
Não critico a música urbana, critico o desequilíbrio entre o interesse pelo nosso patrimônio e pela novidade global padronizada. Nosso repertório construído ao longo de 300 anos é profundo, humano. Nem falei ainda das canções populares dos festivais, da era do rádio nos anos 1940, da Tropicália, do Clube da Esquina, tudo extraordinário. E o brasileiro com 20 anos hoje não tem ideia disso. É um silêncio que toca sozinho, e não há equação fácil para isso. Quem fomenta comunicação já deixou isso para trás. Para essa qualidade ser notada, é preciso mais do que uns poucos na internet. Nosso passado seria nosso melhor futuro. Nosso maior legado já aconteceu. E, se conseguirmos colocar isso pra funcionar, teremos um presente e futuro melhores. Tá tudo aí, é só vir buscar, já diria Raul Seixas.

Crédito: Nina Venturi / Memorial da América Latina


Divulgação/UFMS