COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; Doutor em proteção ao Patrimônio Cultural; Advogado especializado em direitos autorais; e Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)
O polo museológico das culturas do sul global
Sexta-feira, 27 de junho de 2025
O Memorial da América Latina foi concebido como uma instituição multidisciplinar, síntese da utopia latino-americana sonhada por Darcy Ribeiro, um humanista que via no continente não apenas a memória do passado, mas a força criativa de um povo em permanente reinvenção.
Ao longo de seus 36 anos de história, o Memorial consolidou-se como um centro de irradiação cultural, abrigando exposições, congressos, espetáculos, centros de estudos e políticas de integração regional. Contudo, no século 21, um museu já não pode se limitar à concepção tradicional de centro expositivo. A museologia contemporânea exige que os museus sejam também espaços vivos, capazes de gerar conhecimento, provocar debates, estabelecer vínculos afetivos e simbólicos, e promover acesso à diversidade do patrimônio cultural de maneira inovadora, interativa e conectada com seu tempo.
É nesse espírito que o Memorial da América Latina avança para tornar-se um polo museológico em diálogo com as novas linguagens e desafios da museologia. O início dessa transformação está na requalificação de seu próprio acervo, por meio de um ambicioso projeto iniciado nesta gestão: a revitalização do Pavilhão da Criatividade, espaço idealizado por Darcy Ribeiro para abrigar a riqueza estética e antropológica da cultura popular da América Latina.
Firmamos um termo de cooperação com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), que resultou na liberação de uma linha de investimento de 100 mil dólares destinada à formação de uma equipe especializada em museologia. Com esses recursos, foi iniciado o processo sistemático de higienização, classificação e registro do acervo do Memorial, que inclui peças em tecido, como os valiosos têxteis pré-colombianos, objetos em papel, cerâmica, madeira e outros suportes. O trabalho envolve a elaboração de fichas museológicas, identificação de necessidades de restauro, mapeamento para criação de novas mapotecas, áreas com umidade controlada e diagnóstico das condições físicas e simbólicas do acervo.
Mais do que uma catalogação técnica, esse levantamento permitirá dar fruição pública à coleção, estimular parcerias com museus congêneres mundo afora, fomentar exposições conjuntas e reintroduzir o Memorial nos circuitos internacionais de intercâmbio museal. Nossa intenção é estabelecer pontes entre o que temos e o que outros povos também preservam, fazendo com que as peças do Pavilhão da Criatividade dialoguem com seus equivalentes e divergentes em outras culturas latino-americanas.
Como pós-doutor em Antropologia Social, com especial atenção aos pressupostos, basilares e profundos, do pensamento de Darcy Ribeiro, compreendo que a museologia é também um exercício de leitura do mundo. Darcy reconhecia na gastronomia não apenas um elemento importante da formação da cultura de um povo, mas um verdadeiro catalisador do sentimento de pertencimento. O projeto do Museu da Cultura Alimentar da América Latina, que anunciamos recentemente durante a cerimônia do Prêmio Melhores da Gastronomia 2025, realizado pelo Mundo Mesa, ecoa essa visão. A culinária é também patrimônio: carrega em cada receita um enredo de migrações, resistências, trocas e sobrevivências. O Memorial entende essa dimensão e assume o papel de articulador de narrativas culturais que extrapolam o campo das belas-artes e tocam o cotidiano, o simbólico e, ainda, o afetivo.
Após a pandemia, a atividade museológica não pode mais restringir-se apenas à presença física. Antigamente, os museus limitavam-se a informar em seus sites o horário de funcionamento, o “quem somos” e o endereço. Hoje, não mais. É imperativo ocupar o espaço digital com conteúdo, experiências e interatividade, dialogando com um público que já se forma e se informa nessas plataformas. O museu contemporâneo é também um museu expandido e o Memorial está atento a essa realidade.
No mesmo espírito de ampliação, está em curso a concepção do Museu da Diáspora Negra, uma instituição inédita e audaciosa, que propõe pensar, de maneira comparada e transversal, as contribuições negras às sociedades latino-americanas. A proposta prevê estudos e exposições que estabeleçam paralelos entre as trajetórias negras no Brasil, no Caribe, nas Guianas, nas Américas Central e Andina, e em outros contextos onde a diáspora deixou marcas profundas. A intenção é que esse olhar não se limite à interpretação brasileira das questões latino-americanas, mas que seja verdadeiramente plural. Isso exige a presença efetiva de pensadores, curadores e acadêmicos de diversos países do continente no corpo intelectual do Memorial, assegurando que a reflexão seja feita com legitimidade e pluralidade, e não por meio de um filtro unilateral.
O Memorial não olha apenas para o futuro: reconhece, com lucidez, que todo avanço exige também consciência do passado. Como afirmei recentemente, há instituições voltadas apenas ao para-brisa, mirando o horizonte do vir-a-ser. Nós, porém, acreditamos que dirigir com segurança exige também o uso do retrovisor, a capacidade de reconhecer os percursos trilhados, os traços legados, os silêncios que ainda ecoam e os patrimônios que precisam ser reanimados.
Esses são alguns exemplos das iniciativas que estamos implementando para que o Memorial da América Latina se transforme, ainda nesta gestão, em um autêntico polo museológico da identidade latino-americana. Preservar, pesquisar, exibir, problematizar, incluir e criar: eis a missão museológica de um Memorial que, mais do que um conjunto de prédios, é um organismo cultural a serviço do continente.