ENTREVISTA

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O futuro é ancestral

A ancestralidade emerge como uma tecnologia de reconexão, mostrando que o amanhã pode ser guiado por saberes antigos

Por Ana Bezerra e Janaína Bernardino

Antes de olhar para frente, é preciso saber olhar para trás. Essa é a essência do conceito africano de sankofa, símbolo adinkra que representa o ato de retornar ao passado para, no presente, construir o futuro. Não se trata de nostalgia e sim de sabedoria.

As imagens que costumamos projetar sobre o futuro muitas vezes refletem uma perspectiva eurocêntrica. Nessas visões, pessoas negras são com frequência associadas a narrativas de escravização, pobreza e sofrimento, reforçando estigmas históricos.

O afrofuturismo surge como resposta a essas limitações, propondo a criação de futuros em que as pessoas negras estão no centro de suas próprias histórias. Trata-se de um convite para imaginar mundos em que experiências, saberes e revoluções negras existem, mas acima de tudo, moldam o futuro, transformando a ancestralidade em potência.

E é exatamente nesse ponto que surge uma questão provocadora: e se a ancestralidade fosse, ela mesma, uma tecnologia para o futuro? De acordo com o pesquisador Henrique André, autor do livro Afrofuturo – Ancestral do amanhã, esse conceito pode ser visto como um repositório de saberes herdados, acessados para construir um futuro mais plural e diverso. “Suas manifestações são diversas: a oralidade funciona como um arquivo vivo; o corpo, como receptáculo de saberes; a organização comunitária e a circularidade temporal estabelecem um elo onde passado, presente e futuro se encontram e se conectam, potencializando o ser, o território e a comunidade”, afirma.

Para Henrique, esse termo retorna às origens e rompe com narrativas coloniais. Desta forma, as filosofias africanas e afrodiaspóricas promovem um mundo mais coletivo, equilibrado e respeitoso com o meio ambiente.

O mundo que você deixará para o futuro
Grazi Mendes, futurista, estrategista e autora do livro Ancestrais do futuro – Qual a mudança que seu movimento alcança? parte da mesma premissa. Em sua obra, ela propõe um convite às lideranças para se aproximarem do que chama de “responsabilidade intergeracional”, um manifesto por uma nova forma de liderar, com consciência, memória e compromisso com as gerações futuras.

Segundo a futurista, cada um de nós é constituído por histórias de lutas e conquistas e, portanto, é importante entendermos que somos ancestrais, em vida e memória, das gerações que estão por vir. Dessa forma, liderar não significa apenas tomar decisões no presente, mas ser uma ponte entre o que herdamos e o que deixaremos.

“Ancestralidade é um ponto de partida para decisões com propósito. Incorporar práticas ancestrais, como escuta ativa, cuidado coletivo e sabedoria comunitária, fortalece vínculos e sustenta ambientes mais humanos e resilientes. Liderar com ancestralidade é entender que memória, história e cultura moldam como as pessoas se relacionam, criam e inovam”, defende.

Henrique também reforça a ideia de Grazi, especialmente diante das crises climáticas e desafios ambientais cada vez mais urgentes. Segundo o pesquisador, os conhecimentos herdados de povos negros sustentam propostas de futuros mais sustentáveis, equitativos e conectados. Eles propõem modelos de vida baseados na coletividade, no respeito à terra, no cuidado mútuo e na circularidade do tempo, rompendo com a lógica exploratória do progresso a qualquer custo.

Imaginar outros futuros é parte do trabalho
Parafraseando Bell Hooks, Grazi afirma que “o que sonhamos tem um papel essencial em definir o que nos tornamos”. Essa frase, que também se encaixa no conceito futurista, serve como fio condutor para entendermos o conceito de imaginação radical, que surge das reflexões de pensadores e ativistas que reconhecem a imaginação como uma ferramenta poderosa de transformação política e social.

Para Grazi, trata-se de uma competência estratégica. Romper com modelos únicos de sucesso e gestão exige liberdade para imaginar futuros fora do convencional. A valorização de saberes plurais, culturas silenciadas e histórias periféricas expande o repertório de soluções e abre espaço para inovação verdadeira. “Honrar nossa ancestralidade é também libertar a imaginação do que nos ensinaram ser impossível”, pontua.

Já Henrique, ao refletir sobre formas de inovação no processo de redefinição do futuro, destaca o ifá, filosofia iorubá, como um banco de dados oral. Assim como o axé, conceito central nas religiões de matriz africana, compreendido como a força vital que move tudo o que vive, enquanto a oralidade – por meio da contação de histórias, cantos, provérbios e mitos – mantém-se como um arquivo vivo de saberes transmitidos de geração em geração.

O uso ritual, medicinal e espiritual das ervas também desempenha um papel fundamental nesse contexto, assim como a compreensão de tempo. Em vez da linearidade passado-presente-futuro, típica da visão eurocêntrica, muitas cosmologias africanas e afrodiaspóricas operam com o tempo em espiral, num movimento de sankofa.

Assim, ao revisitar as raízes e ressignificar saberes históricos, o afrofuturismo projeta novos mundos, mas acima de tudo, acaba reivindicando o direito de imaginar, criar e ocupar futuros. Um direito que, por muito tempo, foi negado a corpos e culturas negras. É nessa travessia entre passado, presente e amanhã que se constrói, coletivamente, o que Henrique e Grazi definem como futuros negros possíveis.