COLUNA
O elo invisível: O que nos conecta como latino-americanos

Foto Memorial da América Latina
Por Pedro Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social – UFMS | Doutor em Proteção ao Patrimônio Cultural – UFMS | Comenda Câmara Cascudo por sua atuação na preservação do Patrimônio Cultural – Senado Federal
O que nos torna latino-americanos não é uma língua comum, mesmo porque há muitas. Não é uma religião, mesmo porque há várias. Tampouco um modelo político, uma linha geográfica precisa ou, ainda, um DNA cultural uniforme. A identidade latino-americana, se é que se pode nomeá-la, pulsa de forma mais profunda e intangível: ela é feita de memória, de gestos repetidos que sobrevivem ao tempo, de práticas transmitidas na oralidade, no corpo, na cozinha, na fé e na luta.
Os povos originários preservaram cosmologias complexas mesmo diante do apagamento violento. Os africanos escravizados reinventaram suas práticas religiosas sob a vigilância dos senhores e deram origem a expressões sincréticas que hoje definem a alma popular. Os camponeses, mestiços e migrantes urbanos de nossos países transmitiram, de geração em geração, modos de vida que desafiam a lógica da globalização homogeneizante. Essa resiliência simbólica, somada a esse saber fazer com pouco, esse continuar cantando mesmo quando o chão ruge, talvez seja o verdadeiro idioma que compartilhamos.
Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Darcy Ribeiro, com quem meu pai conviveu, de modo intenso, no mesmo período em que ambos atuaram no Ministério do presidente João Goulart. Mais tarde, quando minha família passou a residir em Lima, no Peru, Darcy frequentou algumas vezes a nossa casa. Sua fala era viva, eloquente, quase inflamável. Mesmo sendo eu ainda muito jovem, fui profundamente impactado por sua presença e pela força com que transmitia ideias e afetos. Até hoje guardo na memória aquele timbre carregado de entusiasmo e convicção.
Como pós-doutor em Antropologia Social, posso afirmar que estudei e revisitei a obra de Darcy Ribeiro, sempre com seriedade e fascínio. Jamais imaginei que, anos depois, viria a presidir a Fundação Memorial da América Latina, projeto concebido a partir do que ele sonhava e acreditava. Em seus textos e discursos, Darcy deixava clara sua inquietação com a identidade do homem latino-americano, forjado após sucessivos ciclos migratórios, e que, segundo ele, corria o risco de tornar-se um sujeito “pasteurizado”, expressão que ousou utilizar para definir aquele que perdeu os vínculos com sua terra natal, sem ter, por outro lado, raízes profundas na terra que o acolheu.
Mas conhecendo Darcy e, também, seu amor visceral pela América Latina, compreendi que o que poderia parecer uma perda de identidade, na verdade, é uma potência: é resiliência. É justamente essa capacidade de integrar a diversidade, de reinventar-se na convivência com o outro, que faz do latino-americano um ser singular no mundo contemporâneo. Nessa aparente fragmentação reside uma virtude civilizatória rara: a de conviver com as diferenças sem se desfazer. Em tempos tão marcados por ódios identitários e guerras, a América Latina tem muito a oferecer como exemplo de convivência, reinvenção e esperança.
O que nos conecta, portanto, não é uma simples herança. É um modo de continuar. É um saber-ser.
Essa herança viva está presente em ritmos como o som cubano, o candombe uruguaio, o maracatu brasileiro, a cueca chilena ou a huayno andina. Está nos mercados, nas feiras, nas fogueiras de São João, nos cortejos de Páscoa e nas redes que balançam entre palmeiras. Está nas avós que curam com ervas, nos mestres de capoeira que ensinam gingando a história do corpo escravizado, nos poetas populares que rimam a esperança. Está mesmo quando não se vê. Resiste.
No Memorial da América Latina, esse elo invisível se materializa em projetos de pesquisa, em feiras de saberes tradicionais, nas exposições do Pavilhão da Criatividade e nos encontros acadêmicos promovidos por nossa cátedra Unesco. A missão da Fundação não é apenas preservar esse patrimônio imaterial, mas ativá-lo. Atuamos como aqueles que sopram brasas para reacender o fogo.
Estamos aqui, de peito aberto. E seguremos integrando e promovendo o intercâmbio com os países da América Latina, por meio do resgate, produção e difusão da cultura e do conhecimento científico, valorizando a diversidade, união, justiça e colaboração entre os povos. Almejamos, assim, elevar o sonho de Darcy ao patamar de patrimônio cultural, material e imaterial, da humanidade e memória viva da América Latina, garantindo espaço de voz e visibilidade para os grupos historicamente silenciados.