ECONOMIA CRIATIVA

O Brasil como potência criativa na indústria de games
Com talento criativo, identidade própria e estrutura legal inédita no mundo, o país se firma como protagonista latino-americano na produção de jogos digitais
Por Julyana Barradas
Quando se pensa em gigantes da indústria de jogos, é comum nomes como Nintendo, Sony, Sega e Microsoft serem os primeiros a surgir na cabeça das pessoas. Nos últimos anos, por conta da globalização, títulos de estúdios de fora do eixo EUA/Japão começaram a ganhar destaque no cenário, como o caso da adaptação para consoles de Cyberpunk 2077, da Polônia; o universo expandido de Dungeons & Dragons, o RPG de mesa mais jogado do mundo, Baldur’s Gate, da Bélgica, e o JRPG Clair Obscur: Expedition 33, da França. Ainda que esses títulos sejam da Europa, o continente ainda tem um soft power (influência de poder por meios não bélicos) considerado mais influente do que os países latinos, em vários aspectos culturais.
Já do outro lado do hemisfério, o Brasil, país de proporções continentais e com uma grande diversidade cultural, tem se consolidado como um polo efervescente de criatividade e inovação na indústria de games sul-americana, destacando-se capitais como São Paulo e Rio de Janeiro. Não só é um mercado consumidor, como aponta a Pesquisa Game Brasil (PGB) de 2024, a qual mostra que 82,8% dos brasileiros têm o hábito de consumir jogos digitais, mas é também um celeiro de talentos, que contam com aliados além de uma comunidade apaixonada. Eventos anuais como o Brasil Game Show (BGS), Gamescom Latam e Game Developers Conference (GDC) são os maiores expoentes desse ecossistema, além de serem vitrines para a troca de conhecimento, networking e apresentação de novos projetos na área.
A jornada brasileira na produção de jogos não é recente, mas ganhou uma força considerável na última década. Alguns fatores contribuíram para esse crescimento, principalmente o aumento do acesso à internet e a digitalização da população, o surgimento de cursos de graduação focados em desenvolvimento, design, programação e arte de jogos, e a profissionalização do setor. A última se consolida com o Marco Legal dos Games (Lei 14.852/2024), tendo como pioneira nesse processo a Abragames (Associação Brasileira de Jogos Digitais), entidade sem fins lucrativos que visa fortalecer a indústria nacional do setor desde 2004.
Para Rodrigo Terra, presidente da Abragames, o Marco Legal dos Games fez do Brasil uma referência em ser o único país da América Latina e do mundo a ter uma estrutura jurídica sólida para com a indústria de jogos e seus profissionais. “Ainda que de forma gradual, o poder público tem avançado nos últimos três anos em políticas voltadas ao setor, em esferas federais, estaduais e municipais, envolvendo áreas como cultura, economia, ciência e educação. Isso amplia as possibilidades de formalização da carreira no setor e reforça a compreensão dos games como uma indústria estratégica”, avalia. Isso também posiciona o país como peça importante no cenário internacional, com lançamentos que já disponibilizam o português falado no Brasil como um dos idiomas. Até o início do século atual, muitos brasileiros aprenderam inglês jogando videogame porque era a única opção, agora jogar no nosso idioma nativo é uma realidade.
Como o país não tem uma empresa tradicional na indústria como EUA e Japão, o cenário independente passa a ser o principal centro de produção de jogos, onde pequenos estúdios, ainda que com poucos recursos financeiros, dispõem-se de muita dedicação e mais liberdade criativa em relação a grandes estúdios para o desenvolvimento dos seus projetos. Neles, a brasilidade, tão diversa em sua natureza, pode ser vista como um diferencial, como no caso de Língua, criado por Guilherme Giacomini e lançado em 2021, que consiste em uma plataforma estilo retrô que acompanha as aventuras de Beto pelo sertão nordestino, com trilha sonora inspirada no baião e no xaxado. Também pode ser destacada Hell Clock, um RPG de ação ambientado na Guerra de Canudos, que acaba de ser lançado para PC pelo estúdio Rogue Snail.
Graças ao potencial criativo brasileiro, alguns jogos produzidos de modo independente por aqui fizeram barulho fora do país, a exemplo de Pocket Bravery, que em 2023 foi indicado ao Game Awards, uma espécie de Oscar dos jogos, na categoria de melhor jogo de luta. Outro título que chamou a atenção foi Horizon Chase Turbo, desenvolvido pelo estúdio gaúcho Aquiris, ele teve uma recepção positiva por trazer de volta a estética de arcades de corrida estilo Top Gear, jogo que foi uma verdadeira febre no Brasil nos anos 1990.
No entanto, ainda que o Brasil tenha um terreno fértil para uma criatividade plural, paradoxalmente enfrenta problemas de diversidade e inclusão dentro da indústria. “Dentro da indústria nós temos, infelizmente, um percentual que está um pouco aquém, principalmente em postos de poder, de acordo com uma pesquisa que a Abragames fez em parceria com o Governo Federal. Nós nunca tivemos mais que 30% de mulheres na indústria, e até pessoas que se denominam pretas ou pardas fazem parte dela, mas não necessariamente estão em postos de poder”, destaca Érika Caramello, CEO da Dyxel Gaming, professora universitária e pesquisadora da área.
Apesar dos desafios, seja ele sobre a diversidade na indústria ou questões burocráticas, o Brasil, que carrega o pluralismo em seu DNA, tem potencial para tornar-se uma potência criativa global ao lado de países emergentes como China e Coréia do Sul. A vasta base de jogadores no país, uma das maiores do mundo, representa um mercado consumidor ávido por conteúdo de qualidade, incluindo jogos produzidos localmente. O país está provando, com cada jogo lançado e cada estúdio que prospera, que é muito mais do que um mercado consumidor, é um centro de criatividade, inovação e talento, pronto para escrever novos capítulos na história da indústria de games na América Latina.