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A Aula Magna de Nelson Pereira dos Santos – o grande homenageado do 4º Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo – na verdade foi uma conversa descontraída, bem ao estilo do diretor, durante a qual ele deu seu testemunho sobre a realidade do cinema brasileiro nas décadas de 50, 60, 70 e 80. Nelson Pereira estruturou sua palestra de maneira bem simples e funcional, falou sobre cada um dos seus filmes exibidos no Festlatino.
O cineasta começou reconhecendo “que é muito bom chegar aos 80 anos”, pois recebeu uma série de homenagens em várias cidades, “mas esta é a primeira em São Paulo, a minha terra”. Nelson Pereira contou que é meio "bandeirantes, tinha necessidades de ir além do rio Tietê". Já está há 50 anos fora de sua cidade natal. Construiu sua carreira cinematográfica no Rio de Janeiro.
Em 1952, Nelson Pereira dos Santos foi convidado pelo cineasta Rodolfo Nani a ir ao Rio auxiliá-lo na direção de “O Saci”, baseado na obra de Monteiro Lobato. O filme é o primeiro longa-metragem brasileiro destinado a crianças. Rodolfo Nani estava na platéia (foto) e fez questão “de manifestar minha honra de ter tido como auxiliar o grande Nelson Pereira dos Santos, que já naquela época se mostrava especial e muito eficiente”.
Nelson contou que quando lá chegou ainda era muito presente no Rio a influência da estadia de Orson Wells na cidade para filmar o documentário “Tudo é verdade” – todas as pessoas envolvidas com cinema diziam que tinham privado da companhia ou trabalhado com o diretor americano que tinha feito há pouco tempo “Cidadão Kane”.
Desde meados dos anos 40 eram populares os filmes da produtora carioca Atlantida, que fazia o que Nelson Pereira chamou de “cinema radiofônico”. Era uma mistura de gêneros com o objetivo paralelo de vender discos. Os filmes – na maioria, comédias, estrelados por gênios como Grande Othelo e Oscarito- tinham números musicais com grandes cantores de rádio da época, uma história de amor e um certo enredo policial. A fórmula era popular. As famílias iam ao cinema ver esses filmes.
O cinema não dependia de dinheiro público, era totalmente iniciativa privada. Havia investidores. No começo dos anos 50, foi se formando um circuito (ainda incipiente) de “cinema independente” ou não comercial. Era um sistema de "cooperativa". Para se fazer um filme, o distribuidor adiantava uma parte da renda futura; o cineasta tinha crédito no laboratório, que emprestava negativo e revelava em troca de participação nas vendasa. O equipamento igualmente era alugado nestes termos. Claro, era necessário um dinheiro inicial próprio. “Rio 40 Graus” foi feito assim, todos os atores e técnicos que trabalharam no filme tiveram participação na renda.
Segundo Nelson Pereira, a censura era dominante nos anos 50. Era ela quem dizia se o filme era de “boa qualidade” ou não. Isso só com as películas brasileiras; com as estrangeiras, não. O dono do laboratório que revelou “Rio 40 Graus” gostou do filme e conseguiu que a Columbia o distribuísse. O iniciante Nelson Pereira ficou muito feliz, mas em seguida entristeceu: “o chefe da polícia resolveu proibir meu filme alegando que ele podia causar distúrbio… Era ano eleitoral e todos que apoiavam Juscelino Kubitschek passaram a defender a liberação de meu filme, o que veio depois de alguns meses. Foi uma enorme publicidade gratuita que tive graças ao chefe da polícia, que era ligado à UDN” (partido de direita)”, contou Nelson.
Na época da produção de “Rio 40 Graus” – 1957 – já existia a Vera Cruz, uma produtora privada que sonhava em consolidar uma atividade cinematográfica industrial no Brasil. Mas ela enfrentava muitos problemas financeiros. Foi aí que se começou a falar do modelo francês de apoio estatal, explicou Nelson Pereira. Na França era obrigação do Estado proteger o cinema tanto quanto a língua francesa.
“Vidas Secas” (1962) teve como patrocinadores “duas empresas que não existem mais – o Banco Nacional e a Pan Air Brasil, enquanto o filme está aí até hoje”. Seu financiamento foi inteiramente privado.”Ninguém pensava no Estado. Eu assinava papagaio de milhões para o Leon Hirszman e ele fazia o mesmo para mim. A gente pagava com a venda dos filmes. No final dava tudo certo”. No mesmo ano foram produzidos “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Gláuber Rocha. Os 3 foram para Cannes. “Dei sorte de pegar a onda do Cinema Novo na Europa”, diz Nelson humildemente.
“El Justiceiro” é de 66. Nessa época, já havia o dedo do Estado na produção cinematográfica brasileira. Isso por meio de uma lei que permitia à distribuidora investir até 70% do imposto devido sobre a remessa à matriz . A distribuidora internacional poderia se associar a uma produtora nacional e usar essa verba para fazer filmes. Não havia sido criado a Embrafilme ainda. “El Justiceiro” se utilizou deste mecanismo por meio de uma produtora chamada Condor.
“Os filmes do Cinema Novo não correspondiam à publicidade oficial. Constataram que a censura não tinha controle sobre a produção e por isso, alegando que queriam apoiar o cinema brasileiro, criaram um instituto de cinema. Era a forma de controlar o filme no nascedouro”, contou Nelson Pereira. A censura falhava porque, depois de pronto, dificilmente ele não era exibido nem que fosse no exterior, onde acabava sendo veículo de campanhas internacionais por liberdade, democratização etc.
Com a criação da Embrafilme, em 1969, as distribuidoras não tinham mais o poder de produzir diretamente uma obra. A Embrafilme queria filmes coloridos, que mostrassem as belezas naturais do Brasil. Não deu outra. Nelson Pereira dos Santos fez “Como era gostoso o meu francês”, que, talvez por aparecer no início da Embrafilme, não sofreu muita interferência na produção. “Mas foi censurado. O Luiz Carlos Barreto conseguiu permissão especial para ir a Cannes, mas foi proibido também neste festival. Até o diretor de lá dizia que era muito forte para o público. Por sorte, era 1969 e o movimento dos cineastas não deixou que o festival de Cannes acontecesse naquele ano – “Godard chegou a se pendurar nas cortinas”. Depois, houve uma mostra paralela e o filme foi exibido.
"De volta ao Brasil, soubemos que Jarbas Passarinho, então ministro da educação e cultura do Brasil, tinha mandado o filme para ser analisado pela CNBB (Conferência Nacioanl dos Bispos do Brasil). As freiras gostaram do filme. Disseram que se havia alguma maldade moral era a do francês que mata seu companheiro”. Os índios nus eram inocentes. O filme foi liberado, mas teve cerca de 10 minutos de cortes.
“Memória do Cárcere” já foi produzido inteiramente pela Embrafilme, em 1984. “Houve 2 embrafilmes. O cineasta Roberto Farias é o pai da nova embrafilme, com a qual o cinema brasileiro chegou a ocupar mais de 30% do mercado. Os cinemas eram obrigados a exibir 180 dias de filme nacional por ano, o que levou a surgir o Cinema da Boca, em São Paulo. Também era obrigatório a exibição de curta-metragem antes de cada sessão, com 5% da renda destinada à produção de curtas. “Isso foi como o ataque à Pearl Habor ou às Torres Gêmeas”. Provocou muita pressão. “Novamente tive sorte em realizar um filme político em um ano muito politizado, 1984, o das Diretas Já. "Memórias do Cárcere" também foi a Cannes e teve carreira vitoriosa no Brasil.
Criada inicialmente apenas para distribuir filmes brasileiros, a Embrafilme teve seu papel ampliado e se tornou produtora na gestão de Roberto Farias, de 1974 a 1979. Com o apoio da classe cinematográfica, esse foi um período rico e produtivo do cinema brasileiro. Perguntado pelo cineasta Sergio Muniz, que assistiu a Aula Magna, se preferia a "segunda embrafilme ou o atual sistema de financimento do cinema", Nelson Pereira foi curto e grosso: "Nenhum dos dois".
Como sua Aula Magna demonstrou, ao longo de 50 anos, Nelson Pereira dos Santos foi obrigado a se relacionar com diferentes sistemas de financiamento de filmes, com nenhuma, mais ou menos participação do dinheiro público e do Estado. Que é a sina de todo realizador brasileiro, como Beto Brant (foto acima), Patrícia Pillar e Jurandir Muller, que cumprimentam o mestre (foto ao lado). Mas apesar de tantas dificuldades, Nelson Pereira criou algumas das obras-primas cinematográficas que ficarão para sempre no imaginário brasileiro e mundial. E por isso merece todas as homenagens do Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo.
Por Eduardo Rascov
Fotos Fábio Pagan