ECONOMIA CRIATIVA

Como a economia criativa transforma realidades invisíveis
Mulheres periféricas e vítimas de violência encontram na costura, no upcycling e na cultura instrumentos para romper ciclos de exploração e precariedade em São Paulo
Por Isabella Vilela Cunha
Fotos por Lerato
Cinquenta milhões de pessoas viviam em situação de escravidão moderna em 2021, segundo as mais recentes estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dessas, 28 milhões estavam submetidas a trabalhos forçados, realidade que ainda hoje atravessa fronteiras e se infiltra em grandes cidades, muitas vezes de maneira invisível.
Desafios como desigualdade de gênero, exclusão social e vulnerabilidade econômica ainda marcam a trajetória de muitas mulheres, em especial negras, periféricas e imigrantes, que encontram barreiras no acesso a oportunidades e direitos. Em grandes cidades como São Paulo, onde convivem diferentes realidades sociais e econômicas, iniciativas ligadas à economia criativa têm se consolidado como caminhos potentes para promover inclusão, autonomia e transformação.
Foi exatamente com esse propósito que nasceu o Lerato Social, organização criada por Rachell Brazil em 2016. “Escrevi o Lerato ainda em 2013, quando estava na Assembleia Legislativa, participando da elaboração da lei sobre trabalho análogo à escravidão”, conta. Assistente social de formação, ela percebeu na costura — ofício que aprendeu ainda na infância, observando a mãe e a avó acolherem mulheres em casa para costurar e participarem de rodas de conversa — uma poderosa ferramenta de transformação social. O nome do projeto, Lerato, significa ‘amor’ no dialeto africano e carrega em si o simbolismo da reconstrução de tecidos, de histórias e de autoestima.
A iniciativa capacita mulheres em situação de vulnerabilidade, ensinando a transformar calças jeans usadas em peças exclusivas. Trata-se de um processo que une empoderamento feminino, geração de renda e sustentabilidade, tendo o upcycling como principal estratégia. “Minha mãe chamava as mulheres da comunidade para casa, ensinava a costurar, mas também a costurar a própria história, a protagonizar de novo”, relembra Rachell.
Desde sua criação, o Lerato já impactou mais de 10 mil mulheres, entre vítimas de violência doméstica, refugiadas e trabalhadoras exploradas em oficinas clandestinas. Segundo Rachell, o padrão que se repete é o da mulher que chega fragilizada, sem perspectivas e com a autoestima destruída, mas que, ao aprender um ofício e compreender seu potencial criativo, conquista independência financeira e dignidade.
Além da transformação individual, o projeto também gera impactos ambientais expressivos. Segundo relatório oficial da Lerato, mais de 2 mil toneladas de tecidos já foram direcionadas para reaproveitamento e outras 4 mil toneladas de jeans em desuso foram recicladas. Durante o Carnaval do ano passado do Rio de Janeiro, por exemplo, o projeto participou da operação de coleta de resíduos têxteis na Sapucaí, recolhendo 25 toneladas de materiais. “A gente não só gera renda, como também contribui para a economia circular e reduz o impacto ambiental. Cada peça que desconstruimos e recriamos carrega a mesma essência, mas ganha uma nova vida”, destaca a CEO.
A potência da cadeia produtiva
A trajetória da Lerato ilustra de maneira prática o papel da economia criativa como motor de transformação social. E São Paulo, como destaca a secretária de Cultura do Estado, Marilia Marton, tem investido em políticas públicas para que iniciativas como essa se multipliquem e alcancem ainda mais territórios. “Em 2024, levamos ações culturais para todos os 645 municípios paulistas, algo inédito. Essa interiorização é fundamental para democratizar o acesso, fortalecer a identidade cultural e ampliar as oportunidades”, afirma ela, que também é mestre em Cidades Inteligentes e Sustentáveis.
De acordo com a secretária, os programas Fomento CULTSP e CreativeSP têm papel central nessa expansão. O primeiro apoia produções e circulação cultural, com foco inclusive em cidades pequenas, enquanto o segundo promove missões e intercâmbios para inserir empreendedores culturais no mercado global. “A economia criativa movimenta toda a cadeia produtiva e estimula a geração de empregos e renda. É um pilar fundamental para a requalificação urbana e a regeneração de espaços públicos”, reforça Marilia.
Além de apoiar projetos e eventos, a Secretaria de Cultura tem investido na profissionalização dos agentes culturais, um desafio histórico nas pontas mais vulneráveis do setor. Segundo ela, desde outubro de 2024, o programa CULTSP PRO – Escolas de Profissionais da Cultura já capacitou mais de 22 mil pessoas em áreas como audiovisual, games, produção musical, moda sustentável e empreendedorismo. “Essa diversidade permite que cada profissional se qualifique onde mais precisa, fortalecendo técnica e gestão de carreira”, explica.
No Lerato Social, esse processo de formação vai além da técnica. Rachell explica que as alunas aprendem desde o manuseio das máquinas até o desenho das peças, passando pela teoria dos materiais e o entendimento sobre a indústria têxtil. Esse resgate do potencial criativo, muitas vezes adormecido por traumas ou pela rotina exaustiva de trabalho forçado, é um dos pontos centrais da metodologia que envolve esse trabalho. Segundo a fundadora, muitas mulheres que chegam ao projeto vêm de oficinas clandestinas, onde passam horas executando etapas fragmentadas da produção e sequer conseguem visualizar o resultado final do que confeccionam. “Elas perdem a criatividade, perdem o brilho. Nosso trabalho é pedagógico, leva tempo, mas mostra que elas já sabem costurar uma peça inteira, só precisam desconstruir o que aprenderam de forma fragmentada”, afirma.
A conexão entre desenvolvimento econômico, inclusão social e sustentabilidade está no centro do que especialistas chamam de nova economia criativa. “O futuro que projetamos é o de um ecossistema forte, diverso e sustentável, em que a cultura seja reconhecida como ativo estratégico”, destaca Marilia Marton. Para ela, o desafio é acompanhar a velocidade das transformações tecnológicas sem perder o foco humano. Exposições digitais, realidade aumentada e experiências imersivas são ferramentas, mas o conteúdo, a pluralidade e o fortalecimento das identidades locais continuam sendo prioridade.
Na prática, iniciativas como a Estação Motiva Cultural, inaugurada em 2024 no antigo saguão da Estação Júlio Prestes, exemplificam essa integração entre patrimônio, inovação e desenvolvimento social. “A cultura não é só expressão simbólica, é também motor econômico, ferramenta de regeneração urbana e instrumento de emancipação”, finaliza Marton.
Projetos como o Lerato Social, que ressignificam resíduos têxteis, costuram autoestima e criam alternativas de renda, evidenciam que a economia criativa vai além do discurso. Ela está nos bairros periféricos, nas mãos das mulheres que aprendem a desconstruir o jeans e, junto dele, as estruturas que as aprisionam há gerações.