/governosp
João Batista de Andrade relançou sua autobiografia, escrita em parceria com a jornalista Maria do Rosário Caetano, nessa quarta, 14 de julho, na vivência do 5º Festival de Cinema Latinoamericano de São Paulo. É a primeira reimpressão. O livro data de 2003, mas a filmografia foi atualizada até 2010.
O autor estava muito à vontade, assinando os livros da fila que se formava e fazendo questão de afirmar que se tratava da história da “travessia longa de um cineasta, da juventude à… nova juventude” Entre os que prestigiaram a tarde de autógrafos, amigos e amigas de longa data, como a atriz Eva Wilma, dirigida por ele no longa “Veias e Vinhos”, há quatro anos.
A tarde de autógrafos antecedeu a noite de homenagens. Em sua 5ª edição, o Festilatino reconhecia a importância e coerência da “travessia” cinematográfica e biográfica deste mineiro de Ituiutaba que se formou engenheiro de produção na Escola Politécnica da USP, isso no fatídico ano de 1964, para logo em seguida abandonar a engenharia e se dedicar a um tipo de cinema no qual os conflitos pessoais nunca estariam dissociados do drama coletivo de seu país.
Ao mesmo tempo que era projetado seu longa ficcional de 1977, “Doramundo”, na Sala 2 do Memorial, se deram os trabalhos da mesa “O cinema de João Batista de Andrade” no Anexo dos Congressistas, da qual participou o pesquisador e crítico Jean-Claude Bernardet, além do próprio cineasta. O professor da USP se ateve a uma faceta menos conhecida, comentada e estudada da carreira de João Batista – sua obra documental.
Bernardet notou que desde seu primeiro filme de média-metragem, “Liberdade de imprensa”, de 1966, João Batista já era diferente do cinema documental que se fazia então. Além de entrevistar vários jornalistas, ele transgrediu sem cerimônias uma regra antes sagrada do documentário: não interferir na realidade, atuar o mais discretamente possível e apenas registrar o que vê. Não, João Batista se posicionou ao lado de uma banca de jornal, parava quem passasse por ali e dava um jornal para ele ler em voz alta. O que interessava era captar as reações das pessoas.
Esse é um bom exemplo do cerne da obra de João Batista, diz Bernardet, a construção de um cinema fundamentalmente político. A questão era não apenas observar, mas mudar a realidade. “Antes a realidade era fetichizada pelos documentaristas”, explicou Bernardet.
Outro ponto destacado por Bernardet foi exemplificada pelo curta-metragem “Migrantes”, produzido em 1972, para a TV Cultura de São Paulo. Lá estava João Batista embaixo de um viaduto da praça D. Pedro, no centro da cidade, entrevistando moradores de rua quando ele vê passando por ali um homem elegantemente vestido, com gravata etc, um digno representante do outro lado da cidade.
O normal seria afastar o transeunte, pedindo para que não atrapalhasse a filmagem. João Batista não vacilou e convidou o homem bem vestido para conversar com o migrante sem teto. E filmou a conversa reveladora. O engravatado desfilava preconceitos – vocês estão sujando e trazendo doenças a São Paulo etc – e o migrante respondia a altura.
“A questão do acaso é muito importante na obra documental de João Batista”, entende Bernardet, “embora tenha tudo planejado, ele pode mudar instantaneamente. Com esse diálogo áspero travado pelos dois se usou um recurso de dramaturgia em um documentário.
O terceiro exemplo apontado por Bernardet foi o filme “Wilsinho Galiléia”, também para TV, de 1978. Como todo documentário tradicional, João Batista observa o que acontece e filma. Mas tem coisas que é praticamente impossível filmar, como um crime, por exemplo. Então João Batista usa atores para dramatizar a situação.
Bernardet aponta o cineasta Eduardo Coutinho, na verdade, como pioneiro nessa vertente com o filme inacabado “Cabra marcado para morrer”, de 1964. Na película, para falar de um líder camponês assassinado, João Pedro Teixeira, Coutinho usa atores amadores da região, pessoas muito próximas da vítima. Com o golpe de 1964, as filmagens são interrompidas. Só serão retomadas 17 anos depois, quando Coutinho volta à cena e entrevista as pessoas que participaram da primeira filmagem.
Essa linha de desenvolvimento do documentário brasileiro vai desembocar, analisa Bernardet, no filme “Iracema, uma Transa Amazônica”, de 1981. Neste filme de 1974, Jorge Bodansky usa de recursos tradicionais do documentário e da ficção para contar os perigos e ameaças à população amazônica em plena euforia da construção da malfadada rodovia Transamazônica.
“Iracema” foi proibido pela ditadura. O próprio João Batista foi perseguido. E toda uma geração de cineastas foi tolida em seu trabalho. Bernardet lamenta que se brecou uma linha da dramaturgia e do documentário mesclados que poderia ter evoluído muito. Mas pessoas como João Batista de Andrade não esmoreceram, deram um jeito de continuar filmando ficção e cinema documental e, com isso, deram o exemplo e ensinaram as novas gerações.
Embora o pré-sal ainda não tenha sido explorado e a realidade permaneça aí com as suas profundas contradições, pode-se afirmar com orgulho que hoje a produção documental brasileira é muito mais rica, vasta e diversificada. Graças a homens, pode-se afirmar com mais orgulho ainda, a homens como João Batista de Andrade.