MÚSICA

A cultura pop amplia o “sotaque latino”
Como artistas da América Latina desafiaram a supremacia histórica dos Estados Unidos e transformaram o cenário musical mundial
Por André Duarte
Pensar em cultura pop é quase inevitavelmente remeter ao vasto aparato de produção e distribuição criado pelos Estados Unidos para projetar sua influência global. Ao longo da história, essa estratégia consolidou sua hegemonia, sobretudo na América Latina, onde a indústria norte-americana moldou mercados nacionais durante o século 20, com gêneros e estilos de produção que influenciaram a região.
No caso da indústria fonográfica dos EUA, esse predomínio estabeleceu um modelo de produção e distribuição musical em larga escala, centrado em artistas-ícones e na padronização estética. O sucesso do jazz, do rock e do pop reforçou esse formato, o qual passou a ser replicado mundialmente, inclusive na América Latina, moldando a lógica de consumo musical. O conceito de sucesso acabou sendo medido por vendas de álbuns e posições em paradas, fomentando a competição e criando uma lógica de consumo entre fãs e artistas.
Com a globalização e a internet, esse cenário passou por profundas transformações. Em um mercado saturado, a música pop buscou novas referências para manter sua relevância, em um contexto em que o sucesso não era somente medido por vendas. Com a popularização das plataformas de streaming, responsáveis por essa transformação na lógica de consumo musical, faixas virais e curtas ganharam força, sendo ouvidas repetidas vezes para gerar um melhor desempenho comercial. Fato comprovado pelo relatório Global Music Report 2023, da IFPI, em que afirma que singles e playlists são centrais na experiência digital, com artistas preferindo lançar faixas individuais frequentemente para maximizar visibilidade. Assim, gravadoras e produtores passaram a buscar referências frescas e originais, muitas vezes vindas de mercados regionais.
A música latina, antes confinada a nichos, rompeu barreiras e formou ícones que hoje personificam a cultura pop mundial, levando suas bandeiras e discursos para novos públicos. Na década de 2010, o mercado global da música latina cresceu exponencialmente. Segundo o Spotify, entre 2014 e 2023, o número de ouvintes globais aumentou 986%, enquanto 20% das músicas mais ouvidas em 2023 são latinas — algo inimaginável em 2014, quando nenhum artista da nossa região entrou no ranking anual.
Presença essa tão forte que, em 2023, Bad Bunny, porto-riquenho, aparece ao lado de Taylor Swift e Drake como um dos nomes com mais streams no Spotify. Benito, seu nome de batismo, representa uma comunidade historicamente marginalizada, e enfatiza a resistência e importância da música latina. Bebendo em fontes visuais e estratégias comerciais das gigantes gravadoras dos Estados Unidos, Bad Bunny consegue levar em todos os seus trabalhos o discurso de resistência latino-americana, misturado com uma estética que questiona questões de gênero e consegue elevar a cultura latina a outro patamar.
Cada um de sua forma, uma leva de artistas latino-americanos também conseguiram achar seu espaço no mercado internacional de música. J Balvin, um pioneiro do reggaeton, por exemplo, usou parcerias com Beyoncé, Cardi B e Black Eyed Peas para se apresentar a novos públicos, aumentando seus ouvintes mensais para cerca de 68 milhões no Spotify. Enquanto isso, a colombiana Karol G carrega seus trabalhos com pautas feministas, assim como as maiores divas pop, mas levando a resistência como mulher latino-americana consigo.

Bad Bunny, rapper, ator e produtor musical porto-riquenho
Algo muito visto também nos trabalhos de uma das pioneiras nessa invasão latino-americana nos Estados Unidos, Shakira. Nos anos 1990, a artista colombiana já se aventurava internacionalmente, vendendo mais de 10 milhões de cópias com seu álbum em inglês Laundry Services, no qual ela precisou adaptar sua arte a um idioma diferente do seu e ao modelo estético estadunidense para realizar esse salto. Shakira se tornou uma das primeiras divas pop latino-americanas, entrando cada vez mais na estética desejada por essa indústria.
A brasileira Anitta, por sua vez, acabou seguindo caminho próprio. Apostou em parcerias com Maluma e J Balvin, lançando músicas em espanhol com mais de 1 bilhão de streams, e navega nos mercados internacionais ao lado de outros artistas latino-americanos, mas carregando também o estilo que a lançou para o Brasil todo: o funk carioca.
Nesse cenário, artistas latino-americanos vêm ganhando cada vez mais espaço no mercado global sem se submeter às necessidades de grandes gravadoras. A globalização e a forte presença do público latino nas redes sociais transformaram a música latina num negócio bilionário. Mia Nygren, diretora do Spotify na América Latina, afirma que ritmos latinos ditam o pulso global, representando mais de 20% do Top 100 global do Spotify e 8% do lucro total da plataforma em 2023.
Todavia, apesar dessa crescente constante da música latina no mercado norte-americano, a barreira linguística entre o espanhol e o português parece estar em outro ritmo. Em solo brasileiro, por exemplo, a música latina hispânica ainda não encontrou espaço para competir de igual para igual com os gigantes da música norte-americana e os sertanejos do Centro-Oeste nacional, os mais consumidos no país. Isso é evidente, por exemplo, quando uma artista do porte de Karol G, que consegue lotar estádios ao redor do mundo, precisa realizar seu grande espetáculo em uma casa de shows com capacidade para somente 8 mil pessoas em São Paulo. O público, de modo geral, prefere consumir a lógica tradicional da indústria fonográfica e só costuma abrir espaço para artistas desse cenário após sua aprovação e destaque no mercado estadunidense.
Não podemos negar, entretanto, que, graças à globalização, a música latino-americana, na totalidade, se beneficiou dessa abertura do mercado norte-americano à diversidade musical. Assim como o K-pop, o gênero musical sul-coreano fenômeno entre os jovens, o reggaeton, em especial, criou a possibilidade de outros artistas, de realidades distintas, trilharem o caminho pavimentado por Shakira. A América Latina assume, enfim, um papel de protagonismo nessa história que continua em constante transformação e cujos próximos capítulos prometem ser ainda mais surpreendentes.