GASTRONOMIA

A cozinha como caminho de volta

Da Bahia a Havana, dos Andes a São Paulo, histórias de migração ganham sabor nas mãos de quem transforma memória em alimento

Por Thalia Lins e Victória Gurjão

Fotos: Divulgação

O dendê fumegante da Bahia, o cheiro do porco assado e da banana-da-terra frita de Havana e o sabor marcante do milho tostado dos Andes conectam uma América Latina diversa em cultura, ancestralidade e ingredientes. Brasil, Cuba e Equador, compartilham saberes culinários marcados por fusões culturais, as quais fazem com que a comida seja tomada por um sentido de comunidade, família e hospitalidade, indo além de alimentar somente a carne, mas também o espírito.

Por isso mesmo e embora utilizados de modo diferente nesses três países, ingredientes como quinoa, mandioca, milho, pimenta e porco, por exemplo, são herança viva sendo reinterpretados pelas mãos de chefs da América Latina.

Enquanto no Brasil o milho está presente, em grande parte, nas receitas doces, no Equador ele se apresenta como parte de pratos principais, seja cozido, refogado, tostado ou como humitas e/ou tamales (bolinhos de milho). Apesar da diferença no uso e preparo, a semelhança está na memória afetiva que o ingrediente carrega.

Melissa Vélez, jovem equatoriana residente no Canadá, saiu do país de origem no começo de 2025. Criada entre as regiões da Sierra e Costa equatoriana, ela carrega recordações de gostos andinos muito específicos. “Minha avó paterna fazia uma incrível fanesca (sopa de grãos). E não precisava ser em dia festivo, ela fazia em qualquer momento”, conta.

Apesar de não herdar os dons culinários da mãe e avó, Melissa tenta resgatar os sabores presentes na sua infância por meio de temperos e modos de preparo. “Tento fazer as comidas aqui [Canadá] mas não saem igual. Uma vez consegui fazer um ceviche de camarão que me emocionou por estar igual a comida que eu comia no Equador. Por estar longe, hoje aprecio muito mais a comida de lá”.

Da excentricidade ao tradicional, a culinária equatoriana é rica e variada. Ela une sabores de dois mundos distintos, a combinação da herança gastronômica inca com ingredientes e técnicas trazidas cultura europeia. Mais do que uma simples refeição, a comida do país revela a história do seu povo e reflete a importância do ambiente que influencia modos de viver. “A comida no Equador é para compartilhar momentos em família. A gente se reunia para comer arroz com lentilha e carne ou uma parrillada”, compartilha Melissa.

Assim como a jovem no Canadá, outras histórias cruzam sabores e territórios latinos. É o caso de Paulina Alzamora, que encontrou na cozinha uma forma de se reconectar com sua ancestralidade cubana, mesmo morando no Brasil. Nascida no Chile, filha de mãe cubana e pai alemão, ela sempre carregou os saberes cubanos dentro de si. Chef e proprietária do restaurante Mi Sabor Latino Gastronomia Intercultural, localizado no bairro Ipiranga, em São Paulo, Paulina começou no ramo gastronômico com a partilha: cozinhando para pequenos grupos visitantes dentro de um ateliê. “Comecei cozinhando pratos variados, mas logo quis revisitar a culinária cubana. Por religião, dança, viagens e vínculos com colônias cubanas, fui me reconectando com os sabores e temperos”, contou. É com referências mexicanas, cubanas e chilenas que a chef hoje conduz a sua cozinha e faz questão de deixar os aprendizados vivos. Na cozinha do Mi Sabor, ela traz referências em pratos como o Arroz Congris com ‘Ropa Vieja’ de frango, porco ou perfil (um arroz típico cubano preparado com feijão preto, frango, pernil ou carne de porco e bacon), o Arroz Amarillo (arroz amarelo com legumes) e também a Torta de 3 leches, sobremesa típica da região. “O cubano tem muito respeito ancestral. De alguma maneira, eles têm buscado preservar a forma de viver, valores e sabores. Gostam de se reunir e compartilhar o que tem, sempre”, diz ela.

No Brasil, o partilhar da comida é uma tradição entre muitas famílias. Os churrascos aos domingos e a feijoada aos sábados são exemplos disso. Para Paulina, esse costume resgatou memórias, já que em Cuba viveu momentos como esse, em que amigos e familiares se reuniam para dividir momentos, sempre com a comida presente, como um fio condutor para as relações e ligações com datas festivas. “O termo latino no nome do restaurante significa o retorno à casa pelo sabor. É você conseguir identificar um fio condutor ou algo ali naquele prato que remete a sua história, ao seu passado e a sua origem.”

Assim como Paulina, outros chefs latinos veem na comida não só uma forma de resgate, mas também um espaço de reinvenção, onde tradição, identidade e resistência se entrelaçam. Originário da Bolívia, o chef Checho Gonzales chegou ao Brasil ainda criança, aos 7 anos. A vivência entre essas duas culturas marcou significativamente sua trajetória e é refletida em sua cozinha: uma fusão de raízes, memórias e resistência. “Minha comida é o resultado da cultura do meu país de origem e do meu país de acolhimento, no caso, o Brasil”, relata o cozinheiro e fundador do restaurante Mescla.

Para ele, a cozinha sempre foi um espaço de reintegração social. Checho, que na época já trabalhava em um restaurante, percebeu que a prática cotidiana e sua habilidade quase intuitiva para os sabores, herança direta de sua mãe, poderiam levar a algo maior: uma forma de expressão e de conexão com o outro por meio da cozinha.

Segundo uma pesquisa feita pelo Boletim da Migração, cerca de 195 mil migrantes foram registrados no Brasil em 2024, sendo cerca de 55% destes de origem latino-americana. Mas, para além dos números, é preciso discutir como essas culturas são percebidas: o termo latino, cunhado por norte-americanos, reduz povos diversos a uma única categoria. “Eu abomino o termo latino”, conta Gonzales. “Colocam a gente num balaio só. E a gente não é.” Sua trajetória, marcada pela chamada “cozinha de fusão” dos anos 1990 — hoje cozinha contemporânea — revela como a miscigenação está presente no prato, no idioma e no cotidiano. Assim, questionar rótulos como “latino” também é uma forma de reivindicar a complexidade e a riqueza dessas identidades múltiplas.

Já no caso do Brasil, cada região do país possui pratos típicos, muitas vezes transmitidos de geração em geração, preservando tradições e histórias locais. Ao longo dos séculos, a imigração de diferentes povos, como italianos, japoneses, alemães, entre outros, continuou a enriquecer a gastronomia brasileira além da forte influência africana, claro, contribuindo com novos ingredientes e modos de preparo. Essas influências formaram uma culinária plural e autêntica, que continua em constante evolução, e hoje o futuro da gastronomia brasileira aponta para um caminho de valorização das raízes: chefs, produtores locais e comunidades tradicionais têm resgatado ingredientes nativos e técnicas ancestrais, ao mesmo tempo em que incorporam novas tecnologias e tendências globais.

Com essa combinação entre tradição e inovação, a cozinha brasileira evidencia uma mudança de perspectiva nas novas gerações, que passam a reconhecer e celebrar a diversidade étnica e cultural que compõe o Brasil. Em um país onde tantas culturas se cruzam, a comida se torna um elo poderoso entre passado e presente, afinal, como diz Paulina: “a única coisa que te leva de volta para o teu lugar de origem é a comida.” É nesse retorno simbólico que a comida segue sendo um caminho sutil de volta às raízes.