OPINIÃO
Por Ana Maria Bernardelli, poeta, ensaísta e crítica literária
Ocupando a Cadeira nº 27 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, ela escreve a respeito do texto O que merece ser lembrado? Patrimônio, identidade e os silêncios da memória digital, escrito pelo Presidente da Fundação Memorial da América Latina, Pedro Machado Mastrobuono.
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O texto O que merece ser lembrado? Patrimônio, identidade e os silêncios da memória digital é mais que um discurso institucional: é um libelo em defesa da memória viva de um continente forjado na pluralidade, marcado por feridas coloniais e pela riqueza de suas vozes ancestrais.
A tessitura do artigo é feita com fios de lucidez e urgência. De início, o autor, PM, nos convoca a relembrar o gesto inaugural de Darcy Ribeiro ao fundar o Memorial como um lar para a alma latino-americana — um gesto que, mais que arquitetônico, é político e simbólico: construir um espaço comum de pertencimento. A partir desse ponto de partida, a reflexão se desdobra, com sobriedade e contundência, sobre os perigos que a era digital impõe à memória coletiva.
Vivemos tempos de paradoxos: a abundância de dados não significa riqueza de lembrança. A saturação de conteúdos, guiada por algoritmos cegos à diversidade e à história, gera um tipo de esquecimento novo — não o da ausência, mas o da invisibilidade. Um esquecimento que se traveste de arquivo e se esconde sob a superfície ruidosa da viralização.
A voz que assina o texto, ao mesmo tempo pessoal e pública, invoca um passado vivido para iluminar um presente ameaçado. O reencontro com Darcy – em contextos afetivos, familiares e intelectuais – não é gratuito. É chamado de testemunho. A lembrança de uma América Latina em risco de ser reduzida à repetição de códigos importados, de tornar-se um corpo sem alma, espelha o perigo real da pasteurização identitária promovida pela lógica das plataformas digitais.
Mas o texto não se detém na denúncia. Há nele uma proposta: repensar o que significa preservar. Digitalizar não basta. É preciso legitimar. É preciso escutar os silêncios. É preciso que instituições culturais deixem de ser apenas depósitos de passado e passem a ser escudos do presente e sementes do futuro.
Eis, pois, a essência da reflexão: num tempo em que tudo se pode armazenar, o que merece ser lembrado? A resposta, sutil e contundente, está nas entrelinhas: merece ser lembrado tudo aquilo que for vital, ainda que não viral. Merece ser lembrado o que carrega alma, ancestralidade, gesto, rito, e resistência. Merece ser lembrado o que, mesmo em silêncio, sustenta a existência de um povo.
No viés onde a crítica pulsa com ritmo de pensamento e afeto, reconhece-se um texto que não apenas fala da memória: ele próprio é memória em estado de vigília. Uma convocação para que sejamos curadores de nossa própria história – não por vaidade, mas por dever ético com os que vieram antes e os que virão depois.