COLUNA

João Carlos Corrêa
Diretor Cultural e Chefe de Gabinete da Presidência da Fundação Memorial da América Latina
Especialista em Gestão Cultural e Indústria Criativa (PUC-RJ); Jornalismo Cultural e de Entretenimento (Belas Artes-SP); e mestrando em Gestão e Políticas Públicas (IDP-SP)
A Economia que o Brasil não enxerga
O papel da Fundação Memorial da América Latina na geração de emprego e renda no Estado de São Paulo
Sexta-feira, 4 de julho de 2025
Há uma São Paulo produtiva que não é vista nos relatórios econômicos convencionais com a atenção merecida. Uma metrópole que pulsa em cada esquina, nos palcos improvisados, nos saberes e sabores de rua e nas mãos que transformam barro em arte. Essa efervescência cultural, muitas vezes subestimada na agenda nacional, é o combustível de um trabalho silencioso e essencial que a Fundação Memorial da América Latina, em alinhamento estratégico com o governo do Estado de São Paulo, desenvolve para posicionar a cultura como uma poderosa promotora de emprego e renda.
Mas de que Memorial estamos falando? Nossa instituição possui múltiplas facetas, cada uma contribuindo para o nosso ecossistema de valor. Há o Memorial que é uma Cátedra Unesco, com seu sólido programa de bolsas de pesquisas, que provoca o pensamento acadêmico e tem potencial para embasar a elaboração de políticas públicas. Há o Memorial que é referencial de discussões políticas sobre a América Latina. Temos o Memorial com suas salas de exposição e auditórios constantemente renovados e vivos, abrigando as artes visuais, a música, o teatro e a dança de artistas de todas as nacionalidades. E, ainda, vislumbramos um Memorial vocacionado para ser potencial e emergente polo museológico latino-americano, já sendo reconhecido como um dos complexos arquitetônicos mais emblemáticos do nosso país.
O leque de nossas atuações é grande, mas hoje vou tratar aqui do Memorial que abre suas portas para a diversidade cultural em todas as suas cenas e formas de expressão. Para aprofundar essa discussão, precisamos navegar por alguns conceitos que podem ajudar na compreensão desse pensamento. Frequentemente, os termos “Economia Criativa” e “Economia da Cultura” são empregados quase como sinônimos. No entanto, é importante desatar esse nó semântico para que possamos, de fato, desenvolver estratégias que abracem a totalidade do nosso potencial e estejam alinhadas com as políticas de governo e de estado.
A gênese do termo “indústrias criativas”, popularizado pela força-tarefa do governo inglês de Tony Blair, foi um marco. Naquele momento, nos anos 1990, os ingleses cunharam essa terminologia para agrupar atividades com potencial comercial significativo, como design, cinema e tecnologia, sob a proteção da propriedade intelectual. Esse recorte, sem dúvida, abriu caminhos e apresentou ao mundo um setor econômico em crescimento, capaz de inovar e competir globalmente, trazendo um olhar empresarial para a arte e a criação e incentivando a formalização de nichos específicos.
Contudo, ao longo das últimas décadas, a compreensão do que constitui a Economia Criativa evoluiu significativamente, expandindo-se para além da estrita lógica da propriedade intelectual e da industrialização. Organismos internacionais como a UNCTAD e a UNESCO têm impulsionado uma visão mais abrangente, que incorpora e valoriza as manifestações culturais tradicionais, populares e comunitárias, reconhecendo seu importante valor econômico, social e identitário.
Nesse cenário de evolução conceitual, a noção de “Economia da Cultura” apresenta uma abordagem ampliada dentro do guarda-chuva da Economia Criativa, oferecendo um panorama ainda mais inclusivo e, ouso dizer, mais verdadeiro para a nossa realidade latino-americana. A Economia da Cultura não apenas absorve e valoriza as atividades tipicamente enquadradas nas indústrias criativas, mas também expande seu horizonte para abraçar todo o universo da produção simbólica. Isso inclui manifestações que não seguem a cartilha da industrialização ou da propriedade intelectual como seu único balizador. Ela reconhece o valor econômico, social e identitário de expressões que, embora não sejam “indústrias” no sentido convencional, geram ocupação, emprego e renda de maneiras complexas e intrincadas, muitas vezes invisíveis aos olhos da contabilidade tradicional.
Pensem no Carnaval e seus festejos derivados (blocos, desfiles e jogos infantis), ou mesmo nas festas juninas, que mobilizam o interior do país com suas tradições culinárias, musicais e artesanais. Como enquadrar a dimensão econômica dessas celebrações populares, que movimentam cadeias produtivas inteiras, desde a costureira do adereço até o agricultor que planta o milho para a pamonha? A Economia da Cultura nos permite compreender e valorizar essas cadeias, que prosperam muitas vezes pela oralidade e pela tradição, pela vivência comunitária e pela força dos laços sociais que a cultura estabelece, e não apenas por contratos de licenciamento ou regimes de direitos autorais rígidos.
Essa distinção conceitual não é meramente acadêmica; ela é importante para o entendimento da missão ampliada do Memorial e das ações de estado correlatas. Reconhecer a amplitude da Economia da Cultura permite que o estado e a sociedade invistam de forma mais estratégica, apoiando não apenas os grandes players do mercado criativo, mas também as bases da nossa identidade cultural, as manifestações populares e as tradições que formam a identidade da nossa nação. Trata-se de enxergar que o valor não reside apenas naquilo que pode ser tangibilizado ou monetizado em um mercado formal, mas também naquilo que se propaga pela vivência e pela força social da cultura.
Um exemplo dessa perspectiva ampliada, e que serve como referência para o Estado de São Paulo e para o Brasil, é a reinvenção do Memorial da América Latina. Essa instituição soube ao longo dos anos ir além da sua missão inicial para se transformar, na atual gestão, em um epicentro da Economia da Cultura. Longe de se limitar a uma vitrine estática, o Memorial se abriu para ser palco de grandes eventos: festivais artísticos que dão voz a talentos emergentes e consagrados, feiras gastronômicas que celebram a diversidade culinária de um continente, e espaços de inovação que dialogam com as fronteiras do conhecimento e da tecnologia. Celebrações que vão desde o Carnaval às festas juninas, passando pelas festas similares dos demais países latino-americanos, ganham vida em nossos espaços.
Ao fazer isso, o Memorial não apenas criou um ciclo virtuoso de atividades que atraem público e movimentam a economia local, mas abraçou a cadeia produtiva completa da cultura. Deu espaço para o pequeno produtor, para o artista independente, para o empreendedor cultural, tornando-se um protagonista na busca por soluções sustentáveis para o setor. Essa transformação é contínua e permanente, sem perder o foco em sua missão estatutária. É fruto de ações de uma gestão que compreende e amplia a dimensão de suas possibilidades, entregando muito mais do que percentuais de impostos recolhidos.
O Memorial se tornou um instrumento de desenvolvimento social, um fomentador de identidades, um agente de inclusão e um meio de geração de emprego e renda que se espalha em diversas camadas da sociedade, muitas vezes invisíveis aos olhos de uma contabilidade puramente financeira.
Enquanto o Brasil busca fórmulas para crescer, talvez devêssemos olhar com mais atenção para esses exemplos. A riqueza que vem da cultura não se mede apenas em cifrões, mas em oportunidades criadas onde o mercado formal nem sempre chega. O Memorial está vivo e pronto para mostrar que, quando um espaço público entende seu papel, deixa de ser apenas um destino turístico aos olhos do cidadão, e passa a ser espaço de transformação social. O desafio agora é seguir trabalhando para que, junto com o poder público, a sociedade enxergue com mais clareza que cultura não é luxo, é fundamento para o desenvolvimento e a identidade de uma nação.