“País Sonhado” é uma mostra coletiva de arte contemporânea chilena que fala muito da realidade “real e onírica” do país vizinho. Dezoito jovens artistas trouxeram seus trabalhos ao Memorial da América Latina, escolhidos pelo curador chileno Ernesto Muñoz. A exposição na Galeria Marta Traba abriu ontem, 29 de agosto, e vai até 20 de setembro. A entrada é gratuita e vale a pena ser visitada, seja pela qualidade das obras, seja pela excelência da montagem, seja por dar notícia de um lugar com o qual temos tanta identidade (histórica, religiosa, social, cultural, política), mas pouco conhecimento.
O Chile vive eleições presidenciais no final deste ano. Em certos aspectos, o país atravessa um momento semelhante ao brasileiro. Catalina Mena, uma das artistas chilenas participantes de “País Sonhado”, diz que há um descompasso entre “o que exige a sociedade e o que oferece o governo, que está muito desacreditado”. Principalmente os jovens chilenos têm saído à rua para protestar e os enfrentamentos com a polícia são comuns. “As autoridades estão desatualizadas, não conseguem entender, se comunicar ou conversar com a nova realidade”, conta, como se falasse do Brasil.
Catalina Mena trouxe ao Memorial uma “silla” toda feita com facas velhas. “É impressionante pensar que na mesa comemos com uma arma, a faca. Como essa arma está entranhada em nosso cotidiano. Creio que no oriente isso seja impensável, comem com aqueles pauzinhos, outras culturas comem com a mão. Por isso fiz a cadeira de facas, cuja ambiguidade está em ser um assento em que ninguém quer sentar…” Desse modo Catalina instala no público um processo reflexivo sobre o que (e como) usamos no dia-a-dia. A outra obra de Catalina é uma série de facões, nos quais fez furinhos e através deles bordou delicadas borboletas que, segundo ela, remetem ao sonho e ao amor, em contraste com a dureza das armas brancas.
Esses facões estão distribuídos de forma a lembrar a salsicha do mapa do Chile. São em número de 13, um para cada província chilena. As facas remetem a facadas, brigas, mortes, violência típica dos países latino-americanos. “Uma das vertentes do meu trabalho é a violência contra as mulheres. Em meu país, somente no ano passado foi aprovada uma lei específica contra a morte de mulheres, chamada “feminicídio”. Ela prevê penas mais duras do que a de outros assassinatos”.
Outro artista que trabalha com arma branca em “País Sonhado” é Pedro Tyler, que já expôs individuais na Argentina, Peru, Colômbia, Uruguai e, claro, Chile. Ele esculpe facas a partir de réguas de desenho e com elas forma figuras, como uma estrela. São as suas “ferramentas de duplo fio”, que podem cortar para o bem ou para o mal. As réguas são instrumentos da geometria usados para medir o espaço. Simbolizam o uso racional da mente humana, a procura da medida certa, a busca do conhecimento que caracteriza a jornada humana sobre o planeta. Mas são facas, podem ferir a carne. “Meu trabalho remete às coisas difíceis de medir, de apreender. Brinco com o irracional”, explica o jovem artista.
Em outra obra, Pedro construiu uma corrente de trena (outro instrumento de medir). Ela está conectada a um motorzinho no teto. Na outra extremidade, no piso, a uma barra de metal. De quando em quando o motorzinho movimenta a corrente, que por sua vez arrasta a barra. Em atrito com o piso, produz um som que enche a galeria e faz parte da escultura. “É uma cadeia de conhecimento, que conecta o céu à terra. A razão é a mediadora”, diz. A obra chama-se “Todavia en pé”, e demonstra certa fé, ainda, na razão humana. Tyler também enviou um vídeo muito simples, em que uma sombra joga as facas-réguas em uma sombra, à maneira de um artista de circo. Novamente os perigos frankfurtianos da razão.
Carlos Edwards Bott conseguiu uma façanha. Ele extraiu um granito de uma pedreira e o esculpiu de tal forma que fez com que ele flutuasse na água. “Quis mostrar que tudo pode se mover e flutuar, como o planeta. Tudo que é sólido demais e aparentemente imóvel pode ser mexido, deslocado”. Ele colocou seus pedaços de granitos em recipientes de acrílico com água. A sensação de leveza é desconcertante. “As pedras são transformadas em hologramas delas mesmas. Flutuam como qualquer elemento fariam em nossos sonhos. O interior desses blocos foi removido, não é mais. A pedra é a mesma. O inamovível se tornou móvel”.
“Revisión de um processo desvanecido” é um bordado e costurado sobre tela de algodão feito por Cristián Velasco Guzmán, artista chileno de 42 anos. O tecido de algodão é simples e a costura e o bordar são técnicas tradicionais conhecidas por todos, principalmente pelas mulheres. Mas quanta sofisticação há na obra aparentemente simples de Cristián Velasco. Um homem segura uma manta com motivos gráficos Mapuche com a cabeça inclinada. “Ele está olhando o objeto e se transforma no objeto”, pois a manta avança pelo chão e sutilmente ganha volume. “Gosto do cruzamento de linguagens, o cruzamento entre o trabalho gráfico, a pintura e a escultura. E trabalho com a memória”, explica ele que também faz performance. Em “País Sonhado”, por exemplo, se postou ao lado da sua obra de ponta-cabeça e lá ficou por um tempo.
Além dos acima, também fazem parte da exposição obras de Fernando Balmaceda, Denise Blanchard, Rodrigo Bruna, Amelia Errazuriz, Hernan Gana, Maite Izquierdo, Cecilia Juileerat, Maria Jose Mir, Lorenzo Moya, Carolina Oltra, Francisco Ríos, Catalina Prado, Paula de Solminhac e Angela Wilson.
Serviço:
De 29 de agosto à 29 de setembro
Exposição “País Sonhado”, um olhar sobre a arte contemporânea do Chile
Local: Galeria Marta Traba
GRÁTIS