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Áudios da palestra:
Comemora-se este ano o centenário de Agostinho da Silva. Filósofo português, estudioso de culturas clássicas e pensador da sociedade contemporânea, Agostinho é tido por muitos como o nome mais importante da segunda metade do século XX em Portugal – a primeira metade foi mesmo de Fernando Pessoa.
Durante a ditadura de Salazar, Agostinho exilou-se na América do Sul, período no qual morou no Brasil, Argentina e Uruguai. Por onde passou, o filósofo deixou sua marca contagiante, sendo responsável pela criação de diversos centros de estudo, institutos de pesquisa, museus e universidades. Naturalizou-se brasileiro e aqui, além do trabalho como professor, jornalista, consultor, etc, fez contato com os pensadores da época, dentre os quais, Dora e Vicente Ferreira da Silva.
Nascida no interior de São Paulo, Dora desde cedo teve inclinação pela poesia. Com dois anos mudou-se de Conchas para a capital, onde mais tarde estudaria no Instituto de Educação da recém-inaugurada Universidade de São Paulo. Aos 19, casou com o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), com quem viveu por 23 anos não apenas uma história de amor e admiração, mas também uma intensa e fecunda parceria intelectual. Ao lado de Vicente, relacionou-se com intelectuais do mundo inteiro, como o próprio Agostinho da Silva, Eudoro de Souza e Ernesto Grassi, assim como Guimarães Rosa e Oswald de Andrade, que freqüentavam a casa da rua José Clemente, referência cultural na cidade de São Paulo daquele tempo.
Entre suas atividades docentes, lecionou História da Arte na EAD e História das Religiões na Faculdade Tereza Martin. Ao longo de sua vida reuniu e orientou vários grupos de alunos que estudavam principalmente psicologia, mitologia e poesia, sendo esta, sua grande paixão até o fim da vida. Em 2006, aos 87 anos, Dora preparava-se para lançar mais um livro. Estava em plena atividade, trabalhando em três séries de poemas – “Appassionata”, “O Leque” e “Transpoemas”, esta última um mergulho na fonte originária da poesia, que, no entanto ficou inconclusa.
Seminário
O seminário do último dia 9 de outubro, reuniu na Biblioteca Latino-Americana Victor Civita, uma série de pensadores da obra do português centenário. Amândio Silva, diretor da Mares Navegados, organizadora do evento; Marcelo Ferraz, arquiteto que estabeleceu contato com Agostinho quando o mesmo esteve no Brasil; Romana Valente Pinho, mestre e doutoranda na obra filosófica de Agostinho; Amon Pinho Davi, membro do projeto de estudos do espólio do filósofo português; Constança Marcondes César, professora da Faculdade de Filosofia da Puc-Campinas e participante de diversas instituições filosóficas e Paulo Alexandre Esteves Borges, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa, autor de diversos estudos e pesquisas na área de teologia, antropologia e cultura.
Amândio Silva abriu as palestras, comemorando este ano especial, em que a obra de Agostinho da Silva toma impulso por novas traduções, tendo livros traduzidos para o alemão, italiano e polonês (Fernando Pessoa em edição bilíngüe!). Um conjunto de eventos e iniciativas em Portugal, às vezes mais de duas por semana, servem de impulso para conhecer e se “praticar” o pensador. Amândio lançou a proposta para os universitários brasileiros aprenderem com as lições de vida do autor luso-brasileiro.
Agostinho foi ideólogo de políticas para os países de língua portuguesa, defendendo a idéia de um passaporte único para todos povos da língua de Camões. Via o Brasil como o principal agente desta união pela língua, que teria um papel geopolítico estratégico. “É preciso estudar o Brasil pelos brasileiros” defendia o naturalizado Agostinho, que visava a construção de uma identidade nacional, para a formação de uma “nova civilização”.
O arquiteto Marcelo Ferraz falou em seguida e expressou justamente a dificuldade de apresentar figuras tão complexas como as de Agostinho e Dora. Marcelo conheceu o filósofo na empreitada para construção de uma escola de arquitetura em Lisboa, a “Olho de Boi”, e deste contato tirou a conclusão comum daqueles que estiveram com da Silva: ele era contagiante. O arquiteto leu um depoimento, escrito à época, onde diz que dele fica a certeza de que antes de tudo, o português era um amigo, cúmplice e compartilhador de sonhos e esperanças.
Romana Valente Pinho proferiu a palestra “Do cristianismo ao alcorão: as interlocuções filosófico-religiosas entre Agostinho da Silva, Dora e Vicente Ferreira da Silva”, introduzindo aos presentes aspectos do pensamento filosófico dos homenageados. Discorrendo sobre temas específicos, tais como a formulação do conceito de Deus e do ser dos homens, Romana apresentou a idéia agostiniana de um homem em busca de seu próprio sentido e do sentido dos outros – sejam transcendentes ou não-, um “eu” que só é pleno e completo na e pela relação com o outro e disto, da consciência do “eu” através do “outro”, tanto Agostinho como Dora e Vicente, celebram a coexistência.
Desta “dialética das consciências” conclui-se que não vale a pena separar-se dos outros, pois tal cisão é a quebra do próprio ser. Em outras palavras, não há dialética das consciências sem pluralidade.
Amon Pinho Davi – aniversariante do dia -, relatou passagens do exílio sul-americano de Agostinho e relembrou como se constitui a ditadura salazarista em Portugal. Ditadura calcada pela Universidade e pela Igreja, Salazar era ex-professor de Coimbra e ex-seminarista, Agostinho construiu sua obra como um ataque anti-clerical e anti-acadêmico. Definido como anarquista-cristão, o filósofo deplorava o atraso português em relação ao resto da Europa. Para ele, já era tempo de acabar com as falsas lendas e mitos e imitar os franceses, com seu sentido de beleza, gosto pela vida e avanço científico. Em outras palavras, Agostinho não queria nunca que o futuro voltasse a repetir o passado.
Numa pausa entre as comunicações, um breve documentário sobre Dora Ferreira da Silva descansou mentes e corpos no mini-auditório. Composto por fotos de arquivo, leituras de poemas e uma “engraçada” entrevista com a autora (engraçada, pois cheia de “graça”), o vídeo apresentou um panorama geral da obra da paulista. Dora finaliza a conversa dizendo que se pudesse escolher uma palavra, para ser a última a ser proferida por ela, seria “appassionata”…Pois o mundo todo é digno de paixão.
Na seqüência das comunicações, Constança Marcondes César falou sobre o sagrado na obra de Dora. Denominador comum das três frentes de produção de Dora, a busca pelo sagrado está tanto em seu trabalho poético, como em seus ensaios e traduções. A poetisa rompe com a religiosidade comum do homem contemporâneo e massificado. Em quase toda sua obra poética, Dora tem presente mitos gregos, dentre eles Orfeu e Apolo. Mais tarde, a poetisa viverá uma transição ao cristianismo. Esta passagem, do arcaico ao pensamento cristão também reflete em sua obra.
Ao final, Paulo Alexandre Esteves Borges expôs a palestra “O sentido histórico-civilizacional e espiritual da cultura luso-brasileira no pensamento de Agostinho da Silva” em que mostrou o sentido histórico e espiritual das relações entre Brasil e Portugal. Agostinho via como um drama, mas também como uma matriz de possibilidades a construção do homem tal como ele vem se desenvolvendo. O que se pode chamar de cultura lusófona é um espaço mental marcado por uma inquietação a respeito de uma cisão que parece imobilizar o resto da sociedade ocidental. O ocidente, que tem como paradigma a civilização bélica, sufoca as possibilidades humanas, as ciências, etc. Esta visão de mundo é fruto das invasões indo-européias que triunfaram com uma nova forma de poder e de divindade. Agostinho, clássico, vê na constituição do povo luso-brasileiro a alternativa ao modelo dominante.
A noite em homenagem a Agostinho e Dora terminou com a exibição do documentário “Agostinho da Silva: um pensamento vivo, de João Rodrigo Mattos. Fica a impressão de que a importância do pensador ainda é pouco reconhecida em território nacional e que se fazem salutares iniciativas como a da Mares Navegados, a Associação Agostinho da Silva, o Instituto Moreira Sales e da Fundação Memorial da América Latina.
fotos: Adriano Capelo
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