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O jornalista italiano Enzo Baldoni – cujo assassinato no Iraque, há 2 anos, ainda é um mistério – foi homenageado em audição internacional na terça, 22 de agosto, no Memorial da América Latina. Foi um “concerto pela paz, pelos direitos humanos e contra todas as guerras”. Regidos pelo maestro brasileiro radicado na Itália Martinho Lutero, e tendo à frente a Orquestra de Câmera do Teatro Municipal de São Paulo, as cerca de 50 vozes dos coros Cantosospeso, de Milão, e do Coral Luther King, de São Paulo, encheram o imenso foyer do Auditório Simón Bolívar de uma sonoridade ao mesmo tempo piedosa, eclética e surpreendente.
Os músicos se postaram em frente ao painel semi-circular Agora, de Victor Arruda. Tinham à sua frente a imensa parede espelhada, que aumenta ainda mais o saguão do Simón Bolívar de 69 metros de largura por 22 de comprimento e pé direito de 16 metros. Os músicos então viam a si mesmos enquanto cantavam. E eram vistos não só pelo público, mas também pela Pomba, de Cheschiatti, imensa escultura de 2,20m de altura e envergadura de 3,00 m, pousada na curva da rampa como se estivesse prestes a alçar vôo em prol da paz mundial.
A viúva de Baldoni, Giufi Bonsegnose, canta no Cantosospeso, assim como o próprio jornalista morto ali cantava. Ela foi chamada à frente pelo jornalista Audálio Dantas, presidente da Associação Brasileira de Imprensa. “Agradeço aos brasileiros por organizarem essa homenagem. O meu marido ainda não voltou para mim. Espero que na Itália também façam alguma coisa para eu receber o meu Baldoni de volta”, disse Giufi, referindo-se ao fato de que a ossada de seu esposo continua desaparecida e que até hoje não foi esclarecido ao certo o que aconteceu.
José Luiz Del Roio, Senatore della Repubblica Italiana e Commissione Affari Esteri e Emigrazione, presente no ato, tomou a palavra para fazer um inflamado discurso contra a Guerra do Iraque, que ceifou milhares de vidas, incluindo a do jornalista homenageado. Ele condenou veementemente a “agressão americana”, assim como já havia feito Dantas.
O encontro foi um desdobramento do Fórum Coral Mundial, evento paralelo ao Fórum Social Mundial que reúne coros do mundo todo. Na América Latina, a coordenadora do Fórum Coral Mundial é a Comunidade Coral Luther King, assim como na Europa o coordenador é o Coro Cantosospeso. Pois aqui no Memorial os dois grupos puderam mais uma vez cantar juntos para a felicidade dos amantes da música.
Versátil, o concerto começou com Hanacpachap cussicuinin, tradicional canto quíchua e terminou com “Miserere nº 2 in do minore”, do compositor italiano G. B. Pergolesi, do início do séc. XVIII. Apenas a segunda vez que essa obra foi executada nas Américas (a primeira se deu no dia 13 de agosto, em Santos, pelo mesmo grupo). A composição permaneceu com a autoria desconhecida durante muito tempo; só recentemente é que foi estabelecida como sendo de Pergolesi.
Além das cordas tradicionais e do oboé, a orquestra de câmara do Teatro Municipal trazia instrumentos antigos, como a alongada guitarrone, a espineta (teclado) e um “órgão portativo”, que ajudaram a construir uma atmosfera barroca no Memorial. O destaque foram os solistas, especialmente o italiano Emanuele Bianchi (alto). Também a japonesa Akiko Yonezawa (soprano), o italiano Davide Rocca (baixo) e o tenor brasileiro, José Antonio Palomares, tiveram performances inspiradas. Mas nada encantou tanto a platéia quanto os recursos sonoros da música quíchua citada acima. Para entoá-la, os cantores usaram de recusos ancestrais inusitados, que ampliaram as possibilidades do aparelho fonador, como estalar os dedos nos lábios, colocá-los na abertura da própria boca, fazendo dele uma espécie de modelador do som, ou ainda bater o indicador na garganta pelo lado de fora, transformando o pescoço em um instrumento musical.
A direção artística foi de Martinho Lutero, maestro ítalo-brasileiro radicado em Milão. Além do Memorial, o evento contou com o patrocínio do Assessorato alla Cultura della Provincia di Milano e da Comunidade Coral Luther King. A mesma formação musical apresenta-se nesta quarta-feira, 23 de agosto, na Igreja São Luís, às 20h. Em seguida, o grupo italiano faz uma excursão por várias cidades brasileiras. Eles também passarão uns dias numa aldeia Kraó na região amazônica – após pesquisa, Cantosospeso incluiu em seu repertório cantos tradicionais Kraó.
Criada em 1987, a Associação Cultural Cantosospeso (Canto Suspenso) desenvolve um trabalho no campo da pesquisa e desenvolvimento de repertório coral extra-europeu e de preservação de cantos de povos sufocados pelo “progresso”, pelo colonialismo cultural ou pelas rígidas leis do mercado. Seu objetivo é dar voz, tempo e espaço à preservação da memória de tais culturas e manter vivas as diversas maneiras de pensar no mundo e de pensar o mundo.
Da sua fundação até hoje realizou mais de trezentos concertos nas principais cidades italianas e participou de importantes tournees artísticas:
* Brasil (1994) apresentando-se em 13 concêrtos,um dos quais a Abertura do Festival de Música Contemporânea de São Paulo
* Burkina Faso – África (1996) primeiro coro italiano a se apresentar numa aldeia africana
* Cuba (1997) participando no Festival Internacional de Coros de Santiago, e ainda mais 10 concertos cruzando toda a Ilha.
O concerto contou com o apoio da ABI – Associação Brasileira de Imprensa, Oboré Projetos Especiais em Comunicação e Artes – SP, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Teatro Municipal de São Paulo, Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo.
Martinho Lutero
Martinho Lutero Galati De Oliveira, diretor de coro e orquestra ítalo-brasileiro , nasceu em Minas Gerais. Depois de concluir os estudos superiores de música em Buenos Aires-Argentina, onde se formou em regência de coro e orquestra, freqüentou a Faculdade de História da Universidade de São Paulo. Entre 1980 e 1984 completou a sua especialização na Europa, estudando na Hungria, Itália, França e Suiça.
De 1978 a 1984 trabalhou na África como musicólogo pesquisador da música tradicional do continente negro. Em Moçambique dirigiu o Coro da Escola Nacional de Música, onde lecionou regência e composição. Em 1988 vence o prêmio Andrè Segovia de regência em Santiago de Compostela, Espanha.
Atualmente é docente do Instituto Superior di Musicologia de Milão e alterna a atividade de diretor de Coro e Orquestra com a de compositor junto a importantes teatros e instituições musicais na Itália, Alemanha, Suiça e Estados Unidos da América. É também diretor do Coro “Città di Milano” e do Coro “Bat Kol” da Comunidade Hebraica Italiana. É diretor artístico da Associação Cultural Cantosospeso por ele fundada em 1987.