Diretor-Presidente da Fundação Memorial da América Latina; pós-doutor em antropologia social
Revitalização dos Centros Expositivos:
Um Desafio Contemporâneo para a Gestão Cultural
08/11/2024
Ao longo das décadas, o papel dos museus e a forma como o público interage com seus acervos sofreram transformações significativas. No passado, a visita ao museu era uma experiência contemplativa, quase cerimonial, em que o silêncio e a observância eram mandatórios. Recordo-me, na minha infância, das visitas organizadas pelas escolas, em que as crianças caminhavam em fila, segurando uma corda, com regras rígidas que muitas vezes transformavam o museu em um espaço restrito e pouco acolhedor para o público infantil. O visitante, então, tornava-se um espectador distante, passivo.
Hoje, o cenário é diferente. A cultura museológica se tornou interativa, buscando um diálogo direto com o público, incluindo as novas gerações. As experiências de visitação se adaptaram à naturalidade das crianças e dos jovens, permitindo que eles interajam e se sintam parte do acervo. O próprio mobiliário dos museus foi repensado: se antes a disposição dos bancos incentivava a contemplação silenciosa, hoje é comum ver visitantes sentados de costas para as obras, tirando selfies e compartilhando nas redes sociais, engajando-se com o acervo de uma forma nova e dinâmica.
Essas mudanças exigem que os museus se reinventem para atender às novas demandas, sem perder de vista a preservação e o registro meticuloso de seus acervos. A gestão de uma instituição cultural, como o Memorial da América Latina, enfrenta o desafio constante de atualizar sua linguagem expositiva para dialogar com o público contemporâneo. A adaptação dos espaços e o uso da tecnologia são essenciais para a criação de mostras que se conectem com visitantes de todas as idades, garantindo um ambiente acolhedor e educativo, que inspire a descoberta e a apreciação da cultura.
Para que essa interação se mantenha em equilíbrio, o Memorial da América Latina, assim como outras instituições culturais, necessita de um acervo devidamente catalogado, com uma reserva técnica bem estruturada e um banco de dados eficiente. Essa organização facilita o intercâmbio de peças e o empréstimo de obras, possibilitando exposições temporárias que enriquecem a experiência dos visitantes e ampliam o alcance do diálogo cultural. Além disso, o registro detalhado da procedência das obras – o provenance – é um elemento fundamental, preservando a trajetória histórica de cada peça e o contexto de sua aquisição.
A Fundação Memorial da América Latina, projetada pelo antropólogo Darcy Ribeiro para celebrar a identidade latino-americana, possui uma coleção robusta, com mais de quatro mil obras de arte popular de países como México e Peru. É um patrimônio inestimável que requer uma atualização constante, tanto em sua gestão quanto em sua exposição ao público. Este é um trabalho que exige atenção e uma visão ampla da responsabilidade que carregamos.
O Pavilhão da Criatividade é um dos espaços mais importantes do Memorial, onde muitas crianças, ao visitarem o acervo, se percebem como parte de uma cultura latino-americana. Esse despertar de identidade é algo poderoso e que reflete o valor de nosso trabalho. É minha intenção, ao fim da gestão, entregar um centro expositivo que seja moderno e alinhado com as linguagens e os avanços culturais mundiais, proporcionando uma experiência envolvente e educativa para todos os públicos, especialmente para as novas gerações.
Reitero a importância de uma abordagem inovadora e de uma atualização contínua nos museus. O que buscamos é um equilíbrio, uma experiência que permita a interação sem comprometer a integridade e a memória histórica das obras. É um caminho de desafios, mas é também uma jornada gratificante para quem, como eu, vê no Memorial da América Latina um espaço vibrante de celebração cultural e identidade.
Arte e Proteção ao Patrimônio Cultural – minha trajetória pessoal até a presidência da Fundação Memorial da América Latina
18/11/2024
Com 56 anos de idade, ao olhar para trás em minha trajetória, reconheço o quanto fui privilegiado por ter nascido em um ambiente imerso no colecionismo de arte. Meu pai, um importante colecionador de arte moderna, semeou em mim o interesse e a paixão pelas belas artes desde muito cedo. Nossa casa, repleta de obras de arte, não era apenas um local de moradia, mas também um espaço de convívio com alguns dos maiores expoentes da cultura brasileira, durante toda minha infância e adolescência.
A convivência com figuras como Alfredo Volpi, Aldo Bonadei, Francisco Rebolo, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Bruno Giorgi, Rubem Valentim, Tomie Ohtake, Manabu Mabe, Sérgio Camargo e José Antônio da Silva, entre outros tantos, foi fundamental para a formação do meu olhar artístico e do meu entendimento sobre o papel das artes visuais na construção de uma identidade cultural. Crescer entre esses artistas me permitiu não apenas testemunhar a criação de obras que hoje ocupam um lugar de destaque na história da arte brasileira, mas também entender o processo criativo e a dedicação necessária para transformar ideias em arte. Mas não só nas artes visuais, levado pelas mãos por meu pai, convivi com o poeta imortal Lêdo Ivo, conheci Jorge Amado e Zélia Gattai, participei de almoços memoráveis com Oscar Niemeyer no antigo hotel Ca’d’Oro.
Essa exposição precoce ao mundo das artes não só impactou minha sensibilidade artística, mas também moldou a minha vida profissional. Desde cedo, entendi que a administração de uma coleção importante envolvia responsabilidades que iam muito além do simples ato de adquirir obras. Assim, formei-me advogado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especializando-me em direitos autorais, um campo essencial para a proteção e gestão do patrimônio artístico e cultural. Cultivei formação pessoal multidisciplinar e hoje sou Pós Doutor em Antropologia Social.
Minha trajetória profissional acabou sendo direcionada para o campo da museologia e da gestão cultural, e, ao longo dos anos, tive a honra de presidir diversas instituições culturais que desempenham um papel crucial na fruição e preservação da arte. Entre essas, destaco o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), então ligado à Universidade de São Paulo (USP), que conta com um acervo de 17 mil documentos relacionados à vida e obra de alguns dos mais importantes artistas modernistas brasileiros, como o escultor Sérgio Camargo, a artista plástica Mira Schendel, Willys de Castro e Hércules Barsotti. O IAC desempenha um papel central na pesquisa acadêmica e na preservação de documentos que são essenciais para a compreensão do modernismo no Brasil.
Além do IAC, presidi a Associação dos Amigos do Museu de Arte Contemporânea da USP (AAMAC), uma instituição dedicada à promoção e apoio ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Essa experiência foi fundamental para aprofundar meu entendimento sobre a gestão museológica e a importância de garantir que as coleções e suas histórias sejam preservadas e tornadas acessíveis ao público. Participei intensamente do processo de humanização do antigo prédio do Detran de SP, convertido em nova sede do MAC/USP, sendo certo que, de todos os esforços dispendidos, orgulho-me da implementação do restaurante Vista na cobertura do museu, hoje bastante festejado e incorporado na vida da cidade. Pudemos restabelecer o acesso com o Parque do Ibirapuera, revitalizado a passarela Ciccillo Matarazzo em conjunto com uma aprazível cafeteria, atraindo assim, de modo espontâneo, os usuários do parque para dentro do museu. Um salto na visitação daquele que era um museu universitário.
Outro capítulo importante da minha carreira foi a atuação como vice-presidente da Comissão de Direito às Artes da OAB de São Paulo, em que pude contribuir para a discussão e formulação de políticas voltadas à proteção das artes no campo jurídico. Atuei como Assessor Técnico Procurador do Estado, por sete anos, junto ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), principal órgão de fiscalização e controle de diversos entes estatais. Paralelamente, minha experiência me levou a atuar em diversos conselhos de museus de renome, como o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Museu Lazar Segall. Também fui um dos implementadores e conselheiro do Museu Judaico de São Paulo, uma instituição que preserva e valoriza a cultura judaica no Brasil. Meu compromisso com a proteção do patrimônio cultural me levou ainda a atuar como diretor jurídico e conselheiro do Projeto Leonilson, dedicado à memória do renomado artista visual José Leonilson.
Entre os projetos mais significativos que tive a honra de liderar, destaco minha atuação como sócio fundador e ex-presidente do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna. Durante minha gestão, organizamos a primeira grande retrospectiva do artista na Europa, realizada no Museu Nacional de Mônaco. A abertura do evento pela princesa Caroline foi um dos momentos mais marcantes da minha carreira, e a repercussão internacional foi significativa. A crítica especializada na Itália comparou Volpi ao pintor Giorgio Morandi, destacando a relevância de sua obra no cenário artístico global. O sucesso da exposição em Mônaco também resultou na criação de uma sala especial dedicada a Volpi na Fundação Cartier, em Paris, consolidando ainda mais o legado do artista no circuito internacional de arte. Em ato contínuo, realizamos exposições também no USA. Não é demasiado lembrar que trabalhei diretamente na implementação e desenvolvimento dos catálogos Raisonné de Volpi e de Leonilson, atuando inclusive nas respectivas comissões catalogadoras, ambos instrumentos bastante respeitados no Brasil e exterior.
Minha trajetória no campo da museologia e gestão cultural tem sido amplamente reconhecida e premiada. Entre as honrarias que recebi, destaco a maior comenda concedida pelo Senado Federal da República, a Comenda Câmara Cascudo, em reconhecimento à minha contribuição para a preservação e divulgação da cultura brasileira. Também fui agraciado com o título de doutor honoris causa em proteção ao patrimônio cultural brasileiro pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Além disso, fui indicado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA) ao Prêmio Ciccillo Matarazzo, como a personalidade mais atuante na divulgação e preservação da cultura brasileira. Sou membro efetivo do ICOM – International Council of Museums, braço da UNESCO para a museologia.
Minha trajetória me levou a ser indicado para a presidência do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), uma autarquia federal responsável pela formulação de políticas públicas para o campo da museologia nacional, onde permaneci por três anos, sendo o segundo presidente mais longevo da história da instituição. Na minha gestão, dentre outras realizações, firmamos inédito acordo de cooperação com o BNDS para a modelagem e formatação do Fundo Patrimonial – Endowments para o setor da museológico nacional; regularizamos a proteção ao patrimônio já musealizado com obras civis e obtenção de alvarás do corpo de bombeiros para diversos museus federais; criamos um circuito para museus militares e atuamos diretamente na implementação do novo museu naval no RJ. No Governo Federal, também atuei no Conselho do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em que participei das câmaras de proteção à propriedade material e imaterial. Fui membro efetivo do Comitê Gestor do Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça, convertido em grande agente de fomento de atividades culturais, entre outras atividades voltadas à preservação e promoção do patrimônio cultural brasileiro.
Foi em Brasília, durante minha atuação no IBRAM, que conheci o então ministro Tarcísio de Freitas. Nossa relação profissional se consolidou quando fui convidado para integrar a equipe de transição após sua nomeação como governador de São Paulo. Após o trabalho na transição, recebi o convite para presidir a Fundação Memorial da América Latina, por um mandato de quatro anos.
A presidência da Fundação Memorial da América Latina é um desafio especialmente estimulante, pois a instituição, idealizada por Darcy Ribeiro e projetada por Oscar Niemeyer, possui características multidisciplinares. Aqui, além de um museu com mais de sete mil obras de arte popular dos povos latino-americanos no centro expositivo titulado Pavilhão da Criatividade, também somos uma cátedra da UNESCO voltada à educação e mantemos uma importante interlocução com 18 corpos consulares de países da América Latina. A combinação dessas múltiplas frentes de atuação torna a missão da Fundação única e exige uma visão estratégica que combine cultura, educação e diplomacia cultural.
Toda essa trajetória, construída sobre uma base sólida de amor e dedicação à cultura, me traz hoje à liderança do Memorial da América Latina, uma instituição que simboliza a unidade e a riqueza cultural da América Latina, e me desafia a continuar trabalhando para a preservação e promoção das artes e da cultura no Brasil e além.