/governosp
A Fundação Memorial da América Latina iniciou esta manhã o Seminário Internacional “A experiência da redemocratização – um balanço das trajetórias de Argentina e Brasil após o ciclo autoritário”, com a participação de intelectuais, pesquisadores e políticos dos dois países. O evento é uma iniciativa do Memorial, em conjunto com a Universidad Nacional de La Plata (UNLP) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), e conta com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Thiago Dantas, que articula os cursos de Relações Internacionais da Unicamp, Unesp e PUC-SP.
A mesa matutina foi aberta por Fernando Leça (na foto acima, no meio), presidente do Memorial, que deu as boas vindas aos convidados argentinos e ao público em geral. Leça reiterou a preocupação do Memorial em avançar na discussão de temas comuns do passado latino-americano, bem como também entender e interpretar as questões colocadas pelo presente, sempre apontando caminhos e desdobramentos para o lado da democracia, dos direitos humanos e da cidadania. Participaram também da mesa de abertura Jorge Claudio Szeinfeld (UNLP), Luis Antonio Paulino e Francisco Luiz Corsi (ambos da Unesp).
Para tanto, conforme destacou Leça, o Memorial conta com o Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL), cuja missão é justamente fomentar a pesquisa e a divulgação do conhecimento científico sobre o subcontinente latino-americano. O presidente do Memorial aproveitou para fazer um pré-lançamento de “Vargas e Perón – Aproximações & Perspectivas”, livro editado pelo CBEAL a partir de um seminário internacional como este que se inaugura, realizado em abril do ano passado (o preço oficial é R$ 40,00, mas a obra está sendo vendida no evento por R$ 20,00. Mais informações no e-mail pub.memorial@gmail.com).
Esse seminário bem como o livro foram organizados pela historiadora Maria Ligia Coelho Prado, da USP. Como ela afirma no texto de apresentação, “a relevância desse evento (e livro) deve ser enfatizada, pois raras foram as vezes em que especialistas brasileiros e argentinos se encontram para produzir em conjunto uma reflexão acadêmica sobre Varguismo e Peronismo. Alguns dos resultados desse profícuo encontro são aqui apresentados na forma de artigos que analisam as idéias políticas, as práticas de poder e o legado histórico de Getúlio Vargas e de Juan Domingo Perón.”
O 1º tema enfrentado pelos palestrantes foi um “Balanço da Experiência de Redemocratização em Argentina e Brasil”. Com a mediação do argentino Szeinfeld, o professor brasileiro Milton Lahuerta (Unesp, foto ao lado) apontou a quebra da “cultura cívica”, que se vinha lentamente construindo desde o período redemocratizante dos anos 50, como o principal “legado” da ditadura militar. Uma vez no poder, os militares brasileiros mantiveram o plano do “Brasil grande”, sonho que vinha dos tempos do Império. Isso por meio de um projeto de acumulação capitalista via industrialização com viés nacionalista.
Essa ruptura trouxe problemas sérios ao pós-ditadura, sempre segundo o professor Lahuerta. "Houve, é verdade, um rápido período de crença na democracia como sendo o sistema político que tudo ia resolver – o movimento das diretas é a prova mais evidente disso". Mas a carência de cidadania levou à sociedade violenta na qual vivemos hoje. E ao surgimento de uma certa crítica “moralista” da democracia, vazada principalmente pelos midia (“que não são isentos de interesses, como sabemos”). Essa situação tem leado ao perigoso esboroamento dos pilares da democracia…
Vários fatores contribuíram para isso. Ao mesmo tempo que o Brasil se redemocratizava o mundo mudava. A população do Brasil saia do campo e inchava as grandes cidades. Caia o Muro de Berlim e se iniciava um processo que levaria ao esgotamento do papel do Estado, com a conseqüente diminuição da sua capacidade de investir e desenvolver o país. Ocorreria também uma transição da matriz tecnológica – do chão de fábrica (fordista) à alta tecnologia atual, que dispensa grandes concentrações de operários. Isso, é claro, abalou os sindicatos. Quer dizer, o papel do Estado e das forças organizadas dos trabalhadores diminuíram..
Segundo o professor Lahuerta, o que vemos hoje na democracia brasileira é o predomínio do que ele chama de “lógica do interesse” no lugar de um projeto para o país que eduque a população para a cidadania e para a civilidade. E o que é pior, essa é uma lógica entranhada na sociedade brasileira e não apenas na classe política. Vinte anos após a redemocratização, a sociedade brasileira demanda por ética na política sem se dar conta que ela mesma alimenta a cultura individualista do famoso “jeitinho brasileiro”, “estou acima da lei” e “dane-se o resto”.
Já o professor Federico Storani (foto ao lado) falou sobre os 25 anos de redemocratização da Argentina, “uma transição de ruptura”, segundo ele, ao contrário do Brasil, que teria sido uma “transição negociada”. Militante histórico da União Cívica Radical, Storani foi deputado e Ministro do Interior do presidente De la Rua, entre 1999 e 2001. Por isso ele se definiu mais político do que acadêmico.
Fred Storani, como é conhecido em seu país, apresentou um rápido histórico dos partidos na Argentina. “Diferentemente do Brasil, na Argentina temos até hoje partidos longevos, alguns fundados no final do século XIX, como a União Cívica Radical e o Partido Socialista”. A partir dos anos 30, começou uma seqüência de golpes militares até o último em 1976. “Em meu país os militares só deixaram o poder devido a derrota na Guerra das Malvinas, em 1982”, contou.
Com a redemocratização, as forças políticas estavam suficientemente fortes para não aceitar limites impostos pelos militares, diferentemente da solução pactuada no Brasil. A desvantagem desse tipo de transição é a imprevisibilidade. “Avançamos sobre um campo minado”, relembra Storani, que à época assessorava o presidente Raul Alfonsín. De fato, o movimento dos “carapintadas” (militares rebelados) marcou o país.
Segundo Storani, se por um lado os anos 80 podem ser chamados de “a década perdida” em termos econômicos – já que a queda dos preços dos produtos primários, hoje chamados commodities, levou à crise – eles também podem ser chamados de “a década ganha” em termos de conquistas institucionais rumo à democratização da sociedade e das instituições públicas.
No período imediato após a democratização houve grande fugas de capital na Argentina, causada pelos juros baixos e o ambiente econômico inseguro. “Era o momento em que o Estado mais precisava de investimentos”, ponderou. Isso levou, também lá, à descrença na democracia.
Com a eleição de Menem (1989), houve uma inversão curiosa. “Ele foi eleito com uma proposta e depois que assumiu mudou totalmente”, acusa Storani. “Menem se aliou à oligarquia e aos carapintadas”. No plano internacional, à Ronald Reagan e à Margareth Thatcher. Depois do Chile, foi um dos primeiros governantes a seguir a “Escola de Chicago” e a aderir ao “Consenso de Washington”. Eram tempos do fim da Guerra Fria e do “fim da história” de Fukuyama. “Com o argumento de que as ideologias tinham acabado, queriam, na verdade, impor uma ideologia única”, diz.
Storani participou ativamente do governo de De La Rua, integrando a frente de esquerda chamada Frepaso. “Mas De La Rua acabou se aliando também com o setor financeiro, representado pelo “super ministro Cavallo””. O resultado foi a crise de 2001, que derrubou o governo e quase acabou com o Estado argentino. O povo acabou de vez de perder a fé na política. “Que se vaiam a todos”, se dizia. “Mas se os políticos se foram, quem assume o lugar deles? Não são os militares?”, pergunta-se.
A eleição de Kichner coincidiu com o aumento dos preços das commodities, o que permitiu um crescimento da economia entre 5 a 7% durante 5 anos. Mas essa fase não foi aproveitada para se implantar políticas anticrises, nem para diminuir a pobreza. “Hoje existe na Argentina um “capitalismo de amigos”, daqueles que apóiam o projeto de poder do casal Kichner.
Para Storani os Kichner não vão ser reeleitos na eleição de 2011, pois houve uma ruptura com a sociedade, especialmente depois do enfrentamento (e derrota) do setor do agronegócio. Para ele, “o principal problema da democracia argentina é a pobreza que persiste e aumenta. É inaceitável para um país de 40 milhões de habitantes, com os recursos, agropecuária e indústria sofisticada que temos”, conclui.
O futuro do Mercosul, a situação dos direitos humanos e a tentativa de criar uma coordenação militar no continente (Unasur) – são alguns dos outros temas do Seminário Internacional “A experiência da redemocratização – um balanço das trajetórias de Argentina e Brasil após o ciclo autoritário”. Nestes dois dias de debates, especialistas, acadêmicos e políticos (entre os quais, o deputado Aldo Rebello, foto acima) fazem a análise do atual estágio do processo de redemocratização inaugurado com o fim do regime militar nos dois países.
Programa
05/11 (quinta-feira)
Anexo dos Congressistas
Manhã: 9:00 – 12:00 h.
Cerimônia de Abertura:
Gustavo Adolfo. Azpiazu – Reitor da Universidad Nacional de La Plata
Herman Jacobus Cornelis Voorwald – Reitor da Unesp
Fernando Leça – Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Adolpho José Melfi – Coordenador da Cátedra Memorial da América Latina
1 – Balanço da Experiência de Redemocratização em Argentina e Brasil
Aldo Rebelo (Deputado – Brasil)
Federico Storani (UNLP – Ex-Deputado, Argentina)
Milton Lahuerta (Unesp)
Tarde: 14:30 – 17:30 h.
2 – A UNASUR e os desafios de uma política de segurança coordenada na América do Sul
Angel Tello (UNLP)
Eliezer Rizzo de Oliveira (UNICAMP)
06/11 (sexta-feira)
Sala dos Espelhos
Manhã: 9:00 – 12:00 h.
3 – Balanço da Experiência do Mercosul
Karina Lilia Pasquariello Mariano (Unesp – Araraquara)
Marcelo Fernandes de Oliveira (Unesp – Marília)
Alberto Porto (UNLP)
Tarde: 14:30 – 17:30 h.
4 – Um balanço dos Direitos Humanos em Brasil e Argentina após a redemocratização
Glenda Mezarobba (UNICAMP /Unesp – INEU)
Guillermo Chaves (UNLP – Director de Inst. Nac. de Capacitación Politica de La Nación)
Mais Informações:
E-mail eventoscbeal@memorial.sp.gov.br (mande com cópia para cbeal.memorial@gmail.com )
Tel.: (11) 3823-4780
Memorial da América Latina
Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664
Metro Barra Funda – São Paulo – SP
Estacionamento (R$10,00), com entrada pelo Portão 15
Por Eduardo Rascov
Fotos Fábio Pagan