Por Eduardo Rascov
Escritores que fariam 100 anos em 2020 é o tema da Nossa América 56. Saiba mais sobre a vida dos autores homenageados
A edição 56 da revista Nossa América é dedicada à literatura naquilo que ela tem de irredutível, exclusiva e transcendente. E a revista faz essa homenagem por meio de três dos maiores escritores que já surgiram no subcontinente latino-americano que, coincidentemente, nasceram no mesmo ano de 1920: Clarice Lispector, Mário Benedetti e João Cabral de Melo Neto.
Clarice Lispector nasceu em plena Guerra Civil Russa na localidade de Tchetchelnik, Ucrânia, palco de sangrentas disputas entre os Exércitos Vermelho, Branco e Anarquista. Essas circunstâncias pioraram os progroms que afligiam as famílias de tradição judaica. Clarice tinha pouco mais de um ano quando chegou a Maceió, com os pais e as duas irmãs mais velhas. A maior parte da infância passou no Recife, assim como João Cabral de Melo Neto, mas não há notícia que tenham se encontrado nessa época, mesmo porque o poeta viveu nos engenhos de cana de açúcar da família os primeiros dez anos de vida. Depois, ambos vão para o Rio de Janeiro, Clarice aos 15 anos e João Cabral aos 20.
Os dois tornam-se correspondentes posteriormente. Em comum, a trajetória nas letras, na geografia e na diplomacia. Em meados da década de 1940, já devidamente empossado no cargo de vice-cônsul brasileiro na Catalunha, João Cabral compra uma prensa manual e aprende o ofício com o tipógrafo de Miró. O plano era editar e imprimir livros de amigos escritores sob o selo O livro inconsútil. Incentivado por Manuel Bandeira (“Se sua impressora começa com Clarice Lispector, que melhor começo pode desejar”[1]), João Cabral queria estrear como impressor com uma obra da autora de Perto do Coração Selvagem. Mas Clarice não quis. O poeta pernambucano teve que se contentar em editar e imprimir obras de Vinícius de Moraes (Pátria minha), Manuel Bandeira (Mafuá do Malungo) e dele próprio (Psicologia da composição e Cão sem plumas), entre outras.
A aventura tipográfica de João Cabral termina em 1950. Nesse ano ele já está acreditado no consulado do Brasil em Londres quando é enviado para atender uma ocorrência com uma brasileira em um hospital da cidade. O marido de Clarice, o diplomata Maury Gurgel Valente, havia sido designado para participar da conferência sobre o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT), na capital do Reino Unido. Ela estava grávida, passou mal, teve um aborto espontâneo e desmaiou. Quando acordou, olha quem estava do lado dela!
Além de sua obra autoral e do trabalho na imprensa, Clarice atuou como tradutora, principalmente do inglês e do francês para o português. Em 1968, publicou a crônica Traduzir procurando não trair, em que reflete sobre o ofício. Sua única excursão ao espanhol é digna de nota. Em 1969, traduz para o Jornal do Brasil o conto de Jorge Luis Borges Historia de los dos que soñaron. Essa tradução integrou o livro Borges no Brasil, organizado por Jorge Schawatz e lançado em 2000 pela Editora Unesp e Imprensa Oficial. Nele, autores como Ricardo Piglia, João Alexandre Barbosa, Leyla Perrone-Moisés, Augusto de Campos, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Paulo Rónai, Otto Maria Carpeaux, entre outros, cotejam Borges com o cânone da literatura ocidental e refletem sobre os desafios da tradução.
Arte da tradução, aliás, que atravessa a mesa organizada pelo Memorial para discutir João Cabral de Melo Neto, no início do ano, um pouco antes pandemia. Chamada Poeta, tradutor e traduzido, a mesa reuniu o escritor e literato Antonio Carlos Secchin, profundo conhecedor da poética de João Cabral; o ensaísta e poeta equatoriano Iván Carvajal Aguirre; e o tradutor e professor John Milton. Os três falaram sobre diversos aspectos da trajetória do poeta e sobre as questões, dilemas, decisões e achados de quem se propõe a traduzir a poesia cabralina para o espanhol e para inglês.
Uma característica comum destes três grandes escritores latino-americanos, cujo centenário se comemora em 2020, talvez seja o cosmopolitismo. Não só pela trajetória pessoal de cada um, que circularam entre a América Latina, a Europa e os Estados Unidos, mas pela modernidade de suas obras, pelo arrojo formal que dialogava com o que se produzia no restante do mundo. Seja como correspondente de jornais, seja como exilado político, Mário Benedetti viveu em vários países, como Argentina, Peru, Cuba e Espanha. Em todos, cativou corações e mentes de leitores e de companheiros de viagem e luta. Em 1991, o então editor desta Nossa América, Eric Nepomuceno, convidou-o a publicar na revista. Benedetti então enviou-lhe o poema Triste número 1 (“Nacemos tristes y morimos tristes/ pero en el entretiempo amamos cuerpos/ cuya triste belleza es un milagro”) Quando Mário Benedetti morreu, aos 88 anos, em 2009, Nepomuceno declarou que Benedetti, “deixou desolada uma multidão de leitores, e, nos amigos, um vazio sem fim. “Que será de nós sem sua bondade inexplicável?”, escreveu Eduardo Galeano”[2]. Que seria de nós sem a força, a beleza inexplicável das letras de Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Mario Benedetti. Que seria de nós sem a literatura?
[1] Carta de Manuel Bandeira a João Cabral de Melo Neto, citada por Victor Heringer no site do Instituto Moreira Salles, consultado em 25.07.2020 https://claricelispectorims.com.br/do-acervo/clarice-lispector-e-joao-cabral-uma-historia-tipografica/
[2]Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 23.5.2009, por Eric Nepomuceno. Acesso: 25.7.2020 https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,benedetti-o-poeta-suave-e-indignado,375492