COLUNA

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Por Pedro Machado Mastrobuono

Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Pós-doutor em Antropologia Social; Doutor em proteção ao Patrimônio Cultural; Advogado especializado em direitos autorais; e Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)

pedro.mastrobuono@memorial.org.br

O que merece ser lembrado? Patrimônio, identidade e os silêncios da memória digital

Sexta-feira, 11 de julho de 2025

O Memorial da América Latina foi concebido como um espaço físico e simbólico de resistência cultural. Seu traço inaugural não foi apenas arquitetônico, mas existencial: erguer uma casa comum para a alma latino-americana. Um lugar onde nossos povos pudessem se reconhecer uns nos outros, através da arte, da história, da linguagem e da luta. Hoje, ao refletir sobre os desafios da preservação da memória coletiva no tempo digital, é impossível não voltar à pergunta inaugural: o que nos torna latino-americanos?

Vivemos uma era paradoxal. Nunca se produziu, compartilhou e armazenou tanta informação. A memória, ao migrar para o digital, tornou-se aparentemente infinita, mas não menos frágil. A obsolescência dos formatos, a instabilidade das plataformas e a lógica algorítmica de visibilidade, que privilegia o efêmero, o espetaculoso e, ainda, o monetizável, impõem um novo tipo de apagamento: silencioso, seletivo e disfarçado de abundância.

Nesse novo cenário, quem decide o que merece ser lembrado? A curadoria dos algoritmos substitui, muitas vezes, os processos coletivos e críticos de seleção da memória. Em vez de arquivos construídos por instituições comprometidas com a historicidade e a diversidade, temos timelines que favorecem o engajamento instantâneo. O resultado é uma nova forma de esquecimento: aquele que não se dá por ausência, mas por saturação.

A América Latina (com sua herança de oralidade, resistência popular, religiosidade mestiça, ritos de corpo e memória imaterial) corre o risco de ver seus traços mais singulares dissolvidos no ruído digital global. Quando tudo pode ser armazenado, inclusive o irrelevante, é ainda mais urgente definir critérios éticos e culturais do que deve ser guardado e transmitido.

Darcy Ribeiro, que concebeu este Memorial e cuja obra me acompanha desde a infância, foi alguém que tive o privilégio de conhecer ainda muito jovem. Isso se deu porque ele e meu pai fizeram parte do ministério do presidente João Goulart, sendo colegas e partilhando daquele ambiente político e intelectual. Anos depois, quando minha família viveu em Lima, no Peru, Darcy frequentava nossa casa e deixava uma impressão profunda em todos, inclusive em mim, ainda menino. Sua fala vibrante, sua paixão pelas ideias e a clareza com que articulava os destinos da América Latina marcaram minha formação de forma indelével.

Dentre as muitas inquietações que Darcy expressava, uma sempre me tocou de modo especial: o risco de o homem latino-americano converter-se em um ser humano pasteurizado. Alguém desterrado de suas raízes originárias, seccionadas ao longo do processo histórico, e que tampouco conseguiu fincar novas raízes profundas na terra para onde foi levado ou para onde migrou. O risco, segundo ele, era o surgimento de um homem com identidade rarefeita, preso a códigos culturais externos, replicando padrões que o distanciavam tanto da tradição quanto da invenção autêntica. Essa preocupação permanece atual. O digital, em sua força avassaladora, pode reforçar essa pasteurização, ao promover um apagamento sutil das singularidades culturais em nome da indexação e da performatividade.

Preservar, nesse contexto, não é apenas copiar ou digitalizar. É interpretar, contextualizar, garantir o acesso crítico e equitativo aos bens culturais. É, sobretudo, reconhecer que há memórias subalternizadas que não gritam por atenção, mas que precisam ser protegidas com urgência. O patrimônio imaterial, os saberes ancestrais, os gestos do cotidiano, os registros de comunidades tradicionais, muitas vezes escapam ao radar das big techs e correm o risco de sumir para sempre se não houver instituições capazes de legitimá-los como dignos de permanência.

Como presidente do Memorial da América Latina, mas também como alguém cuja trajetória é marcada pela defesa da memória cultural brasileira, proponho uma reflexão radical: estamos preparados para construir uma memória latino-americana no tempo digital, ou vamos terceirizar nossa história ao esquecimento algoritmizado?

A preservação da memória exige não só tecnologia, mas também sensibilidade e coragem. Coragem para dizer que há coisas que valem mais que likes, que há silêncios que gritam mais do que postagens, que há culturas que precisam ser protegidas antes que desapareçam sem deixar vestígios.

Darcy Ribeiro sonhou com uma América Latina que se reconhecesse na sua pluralidade. Que tivesse instituições fortes, capazes de resistir ao colonialismo informacional. Nosso desafio é estar à altura desse sonho, garantindo que o futuro possa lembrar não apenas o que foi visível, mas também o que foi vital.