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Tradição ecoa modernidade
Por meio das redes e das artes, Mari Wapichana conecta a ancestralidade dos povos originários à modernidade digital
Por Nathália Severo
No coração da Amazônia, entre as águas, florestas e redes digitais, uma nova geração de descendentes de povos indígenas vêm mostrando que tradição e modernidade não são opostas, mas caminhos que podem ser trilhados juntos. Uma dessas vozes é Mari Wapichana, uma jovem comunicadora e influenciadora indígena do povo wapichana. Nascida em Roraima e eleita em 2021 como a primeira miss indígena do Estado, ela transformou a visibilidade do concurso em plataforma de conscientização e valorização da identidade dos povos originários. Desde então, seu trabalho nas redes sociais leva mensagens de orgulho, resistência e pertencimento.
Prova disso é que, em 2024, Mari foi finalista e venceu o Prêmio iBest, maior premiação da internet brasileira, que reconhece anualmente as iniciativas digitais mais influentes, na categoria Influenciadores de Roraima, sendo reconhecida por seu impacto positivo na comunicação indígena e na promoção da diversidade. Também foi mestre de cerimônias, em São Paulo, no evento Clube de Criação, espaço simbólico de representatividade em um meio onde, por muito tempo, a presença indígena foi invisibilizada.

Foto: Mari Wapichana
A trajetória da influenciadora nas mídias digitais começou em 2021 quando, após ser eleita Miss Indígena de Roraima, ganhou destaque em veículos locais e nacionais. “Muita gente queria saber quem era a Mari Wapichana”, recorda. “Foi nesse momento que percebi o poder da comunicação e comecei a usar esse espaço para compartilhar meu dia a dia na comunidade, minha cultura e meu jeito de viver.”
A vontade de comunicar, no entanto, vem de antes. Filha de professores e contadores de histórias, Mari cresceu cercada pela oralidade e pela importância da memória. “Meus pais sempre me ensinaram a ter orgulho da minha origem. Então, quando comecei nas redes, percebi que estava apenas continuando algo que já existia dentro de mim”, salienta.
Em seus conteúdos, ela transita entre a aldeia e a cidade, entre a câmera do celular e a ancestralidade. “Reafirmo quem eu sou todos os dias”, diz. Para Mari, as redes sociais podem impor padrões, mas não têm poder sobre sua identidade. “O que me faz indígena não é a roupa que uso nem o fato de ter um celular. O que me define é minha cultura, minha língua, meu modo de viver e de pensar.”
Ainda assim, ela reconhece que há resistência por parte do público e que muitas pessoas ainda têm dificuldade de aceitar que um indígena possa ser moderno. “Recebo comentários de pessoas dizendo que ‘quem usa internet não é mais indígena’. Prefiro responder com paciência e informação, porque acredito que o conhecimento é o melhor caminho para combater o preconceito.”
De acordo com Mari, a presença indígena nas redes é uma forma de retomada. “Hoje, em Roraima, muitos povos usam as plataformas digitais para denunciar o garimpo ilegal, o desmatamento e outras violências. Ao mesmo tempo, também usamos esses meios para valorizar nossa cultura”, diz. Foi com vídeos simples, mostrando a rotina na aldeia, que ela se tornou uma referência para outros jovens. “Ver meninas me dizendo que se sentem orgulhosas de serem indígenas depois de assistir aos meus conteúdos é o que me motiva.”
Entre a floresta e o feed, Mari reflete sobre a falsa oposição entre tradição e modernidade. “Sou a prova viva de que as duas podem caminhar juntas. Vivo na cidade, uso internet, mas continuo sendo indígena, porque minha tradição vive em mim. Se eu deixasse minha tradição, perderia minha identidade.”
Para ela, as críticas revelam desinformação e racismo estrutural. “Quando alguém diz que ‘indígena de celular não é mais indígena’, eu respiro fundo e explico que o que nos define não é o que temos, e sim o que somos. Prefiro transformar o preconceito em oportunidade de aprendizado.”
As redes sociais, segundo Mari, se tornaram uma das ferramentas mais poderosas na luta pelos direitos indígenas. “A internet leva nossa voz a lugares onde talvez nunca chegaríamos pessoalmente. Por meio dela, denunciamos abusos e divulgamos nossa arte, nossos projetos e vitórias.” Ainda assim, ela ressalta a necessidade de cuidado. “Se usada de forma irresponsável, a internet pode afastar os jovens de suas raízes. É uma ferramenta poderosa, mas precisa ser usada com sabedoria”, alerta.
Além de instrumento de resistência, o ambiente digital também se tornou um território de educação. Hoje seu trabalho é usado como exemplo em escolas e isso é motivo de orgulho para a influenciadora. Para ela, ver alunos discutindo a presença indígena nas mídias e nas artes mostra que estamos mudando a narrativa. “A juventude indígena está cada vez mais presente em todos os espaços: nas universidades, nos hospitais, no Congresso, nas redes. Nosso papel agora é abrir caminhos. Nossos antepassados andaram para que pudéssemos correr, e nós estamos correndo para que as próximas gerações possam voar.”
A influenciadora também redefine o conceito de inovação a partir da cosmovisão indígena, que consiste em usar aquilo que já tem e a sabedoria ancestral para criar coisas novas. Segundo ela, as pessoas acham que inovar é copiar o que vem de fora, mas para os povos originários é o contrário: é olhar para dentro. Em sua comunidade, ela conta que há artistas e empreendedores que produzem camisas, colares e artefatos com base na cultura local e vendem pelas redes, movimentando a economia e mantendo viva a tradição. A verdadeira inovação está em resistir e se reinventar sem perder a essência.
Ao final da conversa, Mari deixa uma mensagem a quem ainda enxerga os povos originários como parte de um passado distante. “Eu diria que nós existimos, resistimos e sempre vamos existir. Somos o ontem, o hoje e o amanhã”, afirma, com firmeza. “Não estamos presos ao passado, somos o presente e o futuro do Brasil. Estávamos aqui antes de tudo, e continuaremos aqui, com nossas línguas, nossas músicas e agora também com nossos celulares e câmeras. Ser indígena é estar em movimento, e nossa cultura nunca parou de se mover”, finaliza.

