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Foto: Katiuska Sales
Tradição e irmandade: a luta livre como símbolo identitário
Do histórico legado dos mascarados mexicanos à retomada brasileira de seu protagonismo, a luta livre revela um terreno fértil de novos talentos, intercâmbios e construção de uma identidade cultural
Por Ana Iost
Ao pensarmos em elementos marcantes que compõem a cultura mexicana, rapidamente nossa mente já desenha velhos conhecidos do nosso consciente coletivo, como a música envolvente e alegre entoada pelos grupos mariachi, a culinária rica e picante, as icônicas telas pintadas por Frida Kahlo e os emocionantes duelos travados pelos luchadores de um esporte de combate performático: a luta livre, ou, em espanhol, lucha libre. Declarado patrimônio cultural imaterial pelo chefe de governo da Cidade do México desde 2018, esse espetáculo esportivo reúne turistas e moradores em quatro apresentações por semana na capital do país, mostrando a força tanto daqueles que estão dentro do ringue, com suas máscaras coloridas, quanto nas plateias, vibrando por esses competidores com paixão e intensidade.

Foto: Katiuska Salles
“A lucha libre no México é como o futebol aqui no Brasil”, diz o fundador da Brazilian Wrestling Federation, Bob Júnior. “Eles valorizam a essência, aquela dinastia, a lona, o ringue e as cordas, aquela coisa mais poética da luta.” Esses valores também são exportados para o restante da América Latina, países onde, apesar de não possuir o mesmo nível de popularidade que a luta mexicana atualmente, também tem um legado significativo, sobretudo no Brasil.
Até 1986, o Brasil era a potência da luta livre sul-americana, tendo sido popularizada na época pelo programa Gigantes do Ringue, exibido por canais que faziam parte da rotina das famílias brasileiras, como a Rede Record e a TV Gazeta. O programa trazia para o dia a dia da população os embates marcantes do estilo telecatch, nome dado à luta livre encenada e teatralizada.
Para além das personas nas telas, a luta livre brasileira também se consagrou na época por meio de sua conexão com o mundo circense, que sempre atraiu multidões de curiosos, sobretudo em cidades pequenas. “Quando descobri que meu pai era lutador, foi uma coisa de super-herói”, relembra Bob. “Aos seis anos, encontrei uma caixa com as botas de luta dele e perguntei por que ele viajava tanto. Foi aí que ele me levou para assistir a uma luta no circo. Quando vi meu pai lutar pela primeira vez, senti o vírus da luta livre entrar em mim.”
O caráter mambembe de sua infância foi o que possibilitou transformar a admiração pelo ofício do pai em seu projeto pessoal de vida. Após aprender, no fundo das lonas do circo, o que precisava ser feito para começar sua carreira na luta e percorrer seu próprio caminho nos ringues, Bob trocou o papel de lutador pelo de mestre e passou a dedicar seus dias à criação da Brazilian Wrestling Federation e à formação de uma nova geração de talentos nacionais.
Ensinar a nova geração de lutadores é um desafio constante. Com o fácil acesso às redes sociais, muitos chegam ao ringue com o imaginário moldado por ídolos estrangeiros. “Hoje, com a facilidade que os jovens têm em assistir às lutas, eles começam a gostar e a se espelhar em algum lutador. Lá fora é onde eles têm mais acesso: no México, por exemplo, as máscaras falam muito alto, e nos Estados Unidos os personagens se destacam, então eles já vêm com uma ideia formada”, explica. Essas inspirações, no entanto, devem ser trazidas com cautela ao longo do processo de treinos, já que, como brinca o criador da BWF, “os meninos chegam no treinamento sem saber dar uma cambalhota, mas já sabem os personagens que querem representar”.
Os personagens que sobem aos ringues da luta livre não são baseados meramente em estética, eles carregam em si a oportunidade de colocar em debate questões sociais que muitas vezes não têm voz. No México, as coloridas máscaras dos lutadores vêm de uma origem que remete à cultura do povo asteca, que as usava em rituais com imagens de animais e deuses.
Atualmente, as máscaras mexicanas são consideradas elementos sagrados, ocultando a verdadeira identidade dos luchadores e possibilitando a imersão em personagens que podem representar animais, seres mitológicos, figuras do oculto ou cavaleiros do bem. Já no Brasil, ainda que a tradição dos disfarces não tenha o mesmo peso simbólico, há um cuidado semelhante na construção de figuras marcantes, com nomes impactantes e cuja narrativa se desenvolve luta após luta.
Nesse contexto, as mídias digitais são essenciais no processo de divulgação dos eventos de luta livre, ampliando o alcance dessas histórias. Desde aparições televisivas até publicações nos canais oficiais, a comunicação para diferentes públicos ajuda a atrair uma plateia engajada, conectando novos espectadores com esse universo. Ainda assim, mesmo que as redes sociais sejam aliadas no momento da difusão, é no contato direto com o público que esse espetáculo encontra o seu verdadeiro significado. Como explica Bob Júnior, “tudo que um lutador faz em cima do ringue é na intenção de atingir o público, e a resposta do público é o nosso combustível”.
Entre os fãs mexicanos, a preferência é por um espetáculo mais visual, com manobras elaboradas e surpreendentes. O que encanta não é o contexto da luta ou o seu desfecho, mas a performance em si, repleta de voos e saltos que arrancam reações empolgadas da plateia. No Brasil, por outro lado, o público valoriza uma performance cheia de ação e drama narrativo. Como definido pelo criador da Brazilian Wrestling Federation, “o que a gente faz é uma novela esportiva”. A atenção da plateia se volta para os momentos de altos e baixos do lutador, suas quedas e reações, reflexo do amor dos brasileiros pelas novelas televisivas, onde cada episódio é repleto de reviravoltas.
Apesar das diferenças de público, no que tange os lutadores e suas federações, existe um elo interessante que possibilita uma troca valiosa. Por meio de um intercâmbio cultural, a Brazilian Wrestling Federation recebe diversos atletas da América Latina que se alojam, treinam e lutam em solo brasileiro. Em contrapartida, muitos lutadores brasileiros também vivenciam esse enriquecimento em outros países do continente, retornando com uma visão ainda mais ampla da cultura da luta livre.
Mais do que aprendizado técnico e experiência profissional internacional, é possível dizer que essas trocas fortalecem um sentimento de irmandade, no qual tradições locais são compartilhadas e histórias pessoais se conectam a uma narrativa coletiva. Essa rede de intercâmbios, imersão e valorização mútua mantém a luta livre como símbolo identitário da América Latina.
A prospecção de futuro desse espetáculo é muito positiva. Na América do Sul, países como Chile e Brasil vêm trabalhando continuamente para estabelecer um treinamento de qualidade para os recém-chegados ao universo da luta livre, por exemplo. O desejo brasileiro, mesmo muito inspirado pelos moldes de sucesso e tradição mexicanos, é poder colaborar harmoniosamente com seus irmãos latino-americanos e se restabelecer como potência da luta livre com uma identidade própria e única. Assim como Bob Júnior projeta para o futuro: “Eu não quero que a gente acompanhe o estilo mexicano, nem o estilo americano, nem o chileno, eu quero que nós tenhamos a nossa identidade de volta.” E nós estamos conseguindo, disso temos certeza.

Foto: Divulgação/Pexels

