PÍLULAS LATINAS
Foto Divulgação
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Pratos que servem culturas

Por meio da cozinha pantaneira, o chef e antropólogo Paulo Machado conecta o passado, o presente e o futuro da memória gastronômica do nosso continente

Por Thalia Lins

Paulo Machado, cozinheiro, antropólogo e pesquisador da cozinha pantaneira, dedica sua trajetória a preservar e expandir a gastronomia do Pantanal como patrimônio cultural. Natural do Mato Grosso do Sul, cresceu entre as histórias do avô, advogado e historiador da região, e as receitas da avó, que lhe transmitiu o dom da cozinha artesanal. Formado em Gastronomia e mestre em Hospitalidade, estudou a comensalidade pantaneira e lançou seu primeiro livro, Cozinha pantaneira

Hoje, residente na Espanha, atua no turismo gastronômico com a Brasil Food Safaris, empresa que leva visitantes a conhecer sistemas alimentares locais, e promove internacionalmente a cozinha brasileira em países como Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos. Além disso, assina cardápios de estabelecimentos em Bonito (MS), realiza treinamentos com equipes locais e coordena o Instituto Paulo Machado, dedicado à pesquisa, preservação e difusão da gastronomia pantaneira. Com seu trabalho, o chef transforma a comida em ferramenta de identidade e memória coletiva, fortalecendo a posição da gastronomia latino-americana no mundo.

A cozinha pantaneira nasce de encontros de povos indígenas, fronteiriços e tropeiros. De que forma essa junção cultural se conecta à própria ideia de América Latina e quais ingredientes ou pratos você acredita que melhor contam essa história?
Essa mistura traz uma cozinha marcada por ingredientes disponíveis e técnicas aprendidas com os povos originários da região e com aqueles que chegaram depois. Um bom exemplo é o pão, feito com mandioca ou milho. A técnica é semelhante, mas adaptada aos ingredientes locais, às vezes com ovos ou gordura, resultando em variações herdadas da herança ibérica, mas com identidade própria. Em cada cultura regional, há um estudo e uma escolha de pratos, muitas vezes relacionados à política pública, ao reconhecimento identitário, a criações locais e à pesquisa. Nos estudos que realizo, pratos derivados do arroz comunicam muito a identidade latino-americana. Os que levam milho, mandioca, carne e a técnica do churrasco também estão presentes em várias culturas do continente. O fogo e a proteína são elementos comuns, mas cada região tem seu jeito próprio de fazer. A forma de temperar e preparar o arroz, com alho, cebola, coentro, salsinha ou cebolinha, presente diariamente nas casas e nos restaurantes de comida caseira, é um exemplo dessa tradição.

Como a culinária de uma determinada região pode influenciar a memória coletiva latino-americana? E o que a gastronomia pode ensinar a outros campos da cultura sobre guardar e transmitir esses saberes?
A comida pantaneira recebe influências de povos que vieram para a região, como do Paraguai, Bolívia e de Cuiabá. Essas influências se misturam à cultura pantaneira, que introduziu hábitos de interioranos de Minas Gerais, tropeiros e bandeirantes, adaptando o consumo e transporte de alimentos durante as jornadas. Ela reflete uma vida marcada pelo ciclo das cheias e secas, em que era preciso fazer a “comitiva” transportar alimentos e animais para regiões mais altas, vendas ou leilões. Essa realidade econômica difícil deu origem a uma alimentação em constante movimento e reflete também o cotidiano de uma cozinha do dia a dia, nascida da necessidade e da escassez de opções. Os pratos precisavam ser nutritivos, aproveitando o que a região oferece: carne seca, arroz, alho, mandioca, farinha de mandioca, paçoca e peixe. A gastronomia é fundamental para que uma população futura compreenda seu passado. O modo como nos alimentamos reflete nossa cultura, economia local e jeito de ser. No Pantanal, o convívio familiar em torno de receitas regionais e ancestrais é uma tradição. Um caso emblemático é a linguiça de Maracaju, produzida a partir da carne lampinada (corte originário obtido ao retirar lascas finas e irregulares da carne), misturada com gordura e temperos, e recheada na tripa do boi com a participação de toda a família. Essa linguiça, inclusive, possui Indicação Geográfica (IG), criada pelo Sebrae, para preservar saberes locais.

Daqui a cinquenta anos, de que forma a culinária popular latino-americana atual será reconhecida?
O jeito de temperar a comida, o que chamamos de “mão”. Isso é sobre usar os ingredientes com sabedoria e equilíbrio, como mistura de pimenta, alho e cebola. Essa característica define a comida artesanal, que é a essência da gastronomia latino-americana. Em Minas, por exemplo, a produção de goiabada, queijo, pão de queijo e frango com quiabo tem métodos manuais. Essa comida, com ingredientes próprios e tradicionais, preserva a qualidade e os valores culturais de cada região. A América Latina tem se posicionado globalmente na gastronomia: em 2026, a cidade de Manabí, no Equador, irá receber o título de Região Mundial da Gastronomia, e o Pará sediará um fórum internacional de gastronomia. Isso mostra a força e a relevância da nossa gastronomia artesanal.