COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro
O teatro e a consolidação da identidade nacional
Desde a Antiguidade, o teatro tem sido um dos pilares da construção cultural da humanidade. Os gregos nos legaram anfiteatros e construções arquitetônicas de rara beleza, mas não é apenas a estética desses espaços que permanece como herança. O que realmente atravessa os séculos é a função simbólica do teatro: a mitologia, utilizada como esforço de humanizar conceitos e saberes, tornava mais palatáveis as reflexões sobre a vida, o destino e a própria condição humana. Cada tragédia, cada comédia, cada rito performático era um espelho no qual a sociedade grega podia se ver, reconhecer seus dramas e compreender-se enquanto povo.
Essa lógica permanece válida até hoje. Cada país necessita de seus dramaturgos, de seus palcos, de seus atores e atrizes para que a população se reconheça e se eduque na experiência estética. Sem teatro, não há espelho; sem espelho, não há identidade; sem identidade, não há povo, mas apenas uma população dispersa em determinado território. Povos com identidade cultural frágil tornam-se vulneráveis ao chamado soft power, absorvendo influências externas que corroem seu estilo de vida, seus valores e sua forma própria de ser.

Anfiteatro no sítio arqueológico de Cúrio, em Chipre. Foto Adobestock
Do ponto de vista antropológico, o teatro é um rito de identidade, como lembra Clifford Geertz, ao dizer que as práticas simbólicas não apenas representam, mas constituem a cultura de um povo. O palco é o espaço no qual a sociedade interpreta a si mesma, transformando dramas individuais em lições coletivas. Do ponto de vista museológico, cada peça, cada dramaturgia, cada ator ou atriz constitui um patrimônio imaterial, um acervo vivo que precisa ser salvaguardado para as futuras gerações. A fragilidade cultural que vemos no Brasil se manifesta não apenas na ausência de políticas consistentes de valorização da dramaturgia, mas também na forma como tratamos nossos símbolos: cemitérios depredados, monumentos pichados, prédios históricos vilipendiados. Isso ocorre porque a população não se sente representada por esses marcos, não percebe neles o reflexo de sua própria trajetória.
A experiência latino-americana nos mostra caminhos diferentes. Povos andinos do Peru, Bolívia e Equador preservam línguas, vestimentas e práticas anteriores à colonização. Isso não é sinônimo de poderio econômico, mas de mecanismos eficazes de preservação cultural. Recordo, de minha infância em Lima, quando o rádio de casa captava uma estação em quíchua vinda de Quito. A língua atravessava fronteiras nacionais porque era mais antiga do que elas. Ali estava uma identidade que sobreviveu aos impérios e às divisões políticas porque tinha raízes profundas.
O Brasil, por sua vez, é riquíssimo em atores, atrizes e dramaturgos de qualidade excepcional. Nossas telenovelas são exportadas para todo o mundo, alcançando públicos de diversas línguas e culturas. Mas dentro do próprio país, a atividade teatral ainda não ocupa lugar central na grade de preocupações do poder público. Políticas públicas mais eficazes são necessárias, não apenas para o desenvolvimento de atores e atrizes, mas também para a preservação dos espaços teatrais. O que vemos, infelizmente, é o Brasil na contramão, fechando teatros quando deveria estar multiplicando-os, ampliando escolas, formando plateias e capacitando públicos.
Venho lutando, ao longo da vida, pela valorização do teatro no Brasil. Quando ocupei a vice-presidência da Comissão de Direito às Artes da OAB-SP, batalhei com afinco pela devolução do Teatro Hilton, um palco italiano reformado, com iluminação e acessibilidade plenas, que abrigou peças memoráveis como Bonifácio Bilhões, espetáculo protagonizado por Lima Duarte que marcou minha juventude. Hoje, esse espaço, apto a receber o público, encontra-se sob domínio do Tribunal de Justiça de São Paulo, utilizado para sessões do CNJ e aulas de português, mas sem cumprir sua vocação cultural.
O mesmo destino teve o antigo Teatro Crowne Plaza, transformado pelo Ministério Público em um arquivo morto de papéis. Ali, no começo dos anos 2000, tive a oportunidade de assistir a peças memoráveis, entre elas O Bêbado, com texto, direção e interpretação de Fábio Silvestre. Era um espetáculo impactante: um homem sentado a uma mesa de bar, dialogando com um interlocutor imaginário, narrava histórias que se transformavam em metáforas da vida, da solidão e da resistência. A peça acontecia no coração da cidade, na rua Frei Caneca, e fazia daquele espaço uma usina de reflexão e sensibilidade. Outras tantas encenações marcaram o mesmo palco, mas, apesar de sua importância, o prédio foi gradualmente esvaziado de sua vocação cultural. Não se questiona aqui o direito de propriedade ou o livre uso do espaço por parte de instituições da República, mas sim a ausência de sensibilidade política diante daquilo que transcende o utilitarismo administrativo. Palcos não são depósitos, teatros não são salas de reunião, são aparelhos essenciais para a vida cultural de uma nação, elementos estruturantes de sua identidade coletiva.
Não é preciso ir longe para perceber o papel estratégico do teatro. No pós-guerra, a Broadway desempenhou papel fundamental no desenvolvimento da sociedade norte-americana. Ela empregava trabalhadores com baixa qualificação (eletricistas, marceneiros e contrarregras) e, ao mesmo tempo, transmitia, tanto para o público interno quanto externo, uma mensagem de confiança, esperança e alegria. O teatro ofereceu uma injeção de ânimo e fé no futuro coletivo. Não é à toa que a primeira infância, em muitos países, passa pelo teatro: peças infantis introduzem conceitos abstratos de forma didática, ajudando as crianças a reconhecerem, por meio da arte, os fatos da vida. O teatro, portanto, é um aparelho fundamental não apenas na formação do indivíduo, mas também na compreensão de uma população sobre sua realidade política e seu futuro coletivo.
Hoje, como presidente da Fundação Memorial da América Latina, tenho o orgulho de acolher o acervo de Bibi Ferreira e admirar os passos largos que se dão para a concretização aqui, em um futuro breve, de um museu sobre essa grande dama do teatro nacional e mundial. Esse movimento não é apenas de preservação, mas de reposicionamento: colocar no centro do palco aqueles que foram relegados às margens.
Já passou da hora de o Brasil consolidar sua matriz cultural não a partir do espelho europeu, mas de sua própria antropologia: os povos originários, os povos de matriz africana, sua religiosidade, sua riqueza estética e simbólica. Sem isso, seguiremos como uma população sujeita a modelos externos, incapaz de reconhecer-se em seus próprios marcos. Com isso, perdemos não apenas patrimônio, mas também autoestima coletiva. O teatro, mais do que entretenimento, é exercício de identidade. Preservar nossos palcos e nossa dramaturgia é afirmar quem somos, é formar um povo orgulhoso de sua diversidade, de sua história e de sua riqueza ética e cultural.