ENTREVISTA

Enquanto o mundo aprende a ouvir
Criolo fala sobre o hip-hop como linguagem do aprendizado coletivo
Por Isabella Vilela Cunha
Fotos: Karim Kahn
Há algo de profundamente pedagógico na sobrevivência. Nos becos, nas esquinas, nos trens lotados, onde se aprende a ler o mundo antes mesmo de aprender a decifrar as letras, o hip-hop nasceu nesse lugar, longe do luxo estético e dentro de uma urgência social. Criado nas periferias de Nova York e abraçado com língua e sotaque próprios pelas ruas brasileiras, ele transformou o desamparo em escola e a falta de estrutura em invenção. O microfone se tornou lápis, o muro, o caderno, a batida, a ponte entre o que se sente e o que se sonha.
Anos depois de seu nascimento, o hip-hop segue sendo uma pedagogia da escuta. Sua didática é a da convivência, um método com diplomas multiplicados pela vida, e quando um rapper sobe no palco, ele ensina sobre dignidade, sobre o valor da palavra, sobre a beleza de existir apesar de tudo. E talvez por isso tenha sido simbólico que o projeto Inteligência PontoCom, iniciativa do Sesi-SP para promover diálogos entre arte e pensamento, tenha convidado Criolo e DJ DanDan no Dia dos Professores, para discutir sobre o hip-hop e a educação.
Na plateia, educadores e estudantes se reconheceram na fala de um homem que, neste 2025, completou 50 anos de vida e 35 anos de carreira, já atravessou o mapa da exclusão e voltou para contar, com voz calma e contundente, que o hip-hop pode ser escola. Ou melhor, que ele já é.
Durante o encontro, Criolo refletiu sobre o peso que recai sobre quem se dedica a ensinar. Para ele, o sistema cobra dos professores e também dos artistas uma capacidade de transformação social que o próprio sistema inviabiliza. É uma engrenagem que adoece quem tenta curá-la. A educação, diz o artista, só pode florescer se houver amor, um amor que resista ao esgotamento e que insista mesmo quando tudo parece desabar.
A figura do arte-educador surge, então, como uma forma de unir os mundos da sensibilidade e da urgência. Ele ensina e aprende, cria e cicatriza, traduz o invisível. Nas periferias e nos territórios originários, onde a educação ainda é um campo de disputa, a arte cumpre um papel de tradução e devolve a palavra às mãos de quem sempre a teve negada. É ali que o rap, o hip-hop e o graffiti funcionam como antídotos ao silenciamento.
A pedagogia que nasce da rua é feita de escuta, corpo e improviso, por isso, não há apostila, mas há ética, sempre com o coletivo acima do ego, a palavra como cura, a batida como reza. O hip-hop ensina o pertencimento, algo que para a estrutura escolar muitas vezes pode passar batido. E, por isso, seu diálogo com a educação formal é uma urgência. Quando a música entra na sala de aula, é um modo de existir que se senta ao lado do aluno e diz “eu te entendo”.
O artista e o educador, cada um à sua maneira, ocupam o mesmo front da construção de consciência e ambos seguem adiante, sustentando o que tantas vezes é visto como secundário, mas que dá sentido ao que somos. Mas é ali, nesse espaço mínimo entre o que sobra e o que resiste, que a criação brota.
Kleber Cavalcanti Gomes, o Criolo, conhece bem essa geografia. Filho de família nordestina, cresceu em um bairro operário de São Paulo e descobriu cedo o poder da palavra. A música o salvou, mas foi a escuta que o moldou. Para ele, o rap é a prova viva de que é possível transformar vulnerabilidade em consciência. Sua própria trajetória comprova a força de uma linguagem que atravessa muros e cria pontes. A música, em sua visão, é uma ferramenta de encontro entre mundos que não costumam se olhar.
Ao falar do Brasil, Criolo enxerga a grandeza e a dor. A beleza da criatividade e da alegria, mas também o flagelo das desigualdades e da crueldade social. Para ele, compreender o país é olhar esses contrastes sem negar nenhum. E, nesse processo, o hip-hop se torna uma forma de decifrar o território e de devolver humanidade ao que foi desumanizado.
Quando questionado sobre a escola do futuro, ele inverte a pergunta. Diz que a escola já possui o que há de mais essencial: as pessoas que acreditam na educação. Os professores, os cozinheiros, os que cuidam do jardim, os que preparam o calendário. A escola, em sua essência, já está pronta. O que falta, talvez, seja a sociedade reimaginar quem cuida dela e dar a esses profissionais o reconhecimento e o amparo que lhes foram tirados.
No evento, você falou sobre o peso que recai sobre os professores, uma cobrança por transformação social em um sistema que os adoece. Como você enxerga o papel do artista e do arte-educador nesse mesmo contexto? Existe um ponto de equilíbrio entre inspirar mudanças e resistir à sobrecarga?
Acredito que não existe ponto de equilíbrio. Nós já nascemos frutos dessa sobrecarga também. Desde o nosso feto nós recebemos todas essas energias de um ambiente extremamente hostil de sobrevivência. Então, acredito que não existe um ponto de equilíbrio. O que existe são movimentos de uma resistência completamente alimentada por um amor, como a educação, por um amor, a humanidade por pessoas que não desistem da sua espécie e enxergam através do seu permear de vivências a educação como único caminho para trazer amenidades, pois enquanto existir esse formato desse tabuleiro, enquanto não mudar esse tabuleiro, não adianta querer falar sobre as regras do jogo.
O hip-hop nasceu como um gesto de invenção diante da ausência de estrutura. Na sua visão, como esse espírito original pode dialogar com o ambiente escolar de hoje, muitas vezes padronizado, engessado e distante da linguagem dos jovens?
O hip-hop nos apresenta outras formas de como enxergar o nosso todo, e esse nosso todo é extremamente gigante se você pega apenas o recorte família. Como você se enxerga dentro da sua família, o que está acontecendo dentro daquela casa? Qual é o seu diálogo com os pais, com os seus irmãos, com os avós? Digo isso se você imaginar um formato de família que está no comercial de margarina, né? Se você pegar os outros, tantas formas de como se dão as famílias… são muitos órfãos também. Um órfão de pai, outro órfão de mãe, outro órfão de ambos. Essa relação começa a se dar de uma outra forma. Eu acredito que o espírito do hip-hop fortalece o que tem dentro de você. Se você tem um olhar genuinamente de alguém que se importa com o outro, essa identificação será imediata. E a escola por muitas vezes abre suas portas para essas ações, para esse novo jeito de como se comunicar, pois as gerações têm uma linguagem que é uma marca de seu tempo, de sua época, de sua geração. Ou ela se fecha e apenas reproduz aquela família do comercial de sorvete, aquela família onde o padrão diz quantos filhos tem que ter, qual a intenção desse casal, o que é ser uma pessoa próspera, né? E rejeitar tudo o que for diferente.
Mas e a escola?
Então, a escola é também uma ferramenta que está literalmente nas mãos da intenção de quem a dirige. E aí acabamos por depender muito do que essa sociedade acredita, do que esse bairro acredita, do que essa cidade acredita, do que esse estado acredita, o que esse grupo de pessoas representam. Porque são muitas as as possibilidades, e se começarmos a falar de escola particular, então, isso já vai para o outro campo, ainda mais fortalecido dentro de necessidades, outras que não, talvez, o bem comum, enfim, mas sim a cristalização de só um formato de como a vida deve ser levada e de quem merece ou não estar vivo. E aí nós chegamos a vias de fato, né? Onde as pessoas relativizam a importância de um ser pelo seu CEP. O hip-hop pode alugar de diversas formas, ele abre um caminho maravilhoso, um leque de opções, porque você pode falar especificamente sobre uma arte, arte da dança, artes plásticas, você pode falar sobre escrita, você pode falar sobre pesquisa, e o hip-hop está ali como um aparato de suporte para aquela matéria, para aquele mês, para aquele semestre, para aquela obrigação também sobre o que está sendo passado naquele semestre, sobre qual é o planejamento do professor. O hip-hop se adapta, com certeza, ao planejamento do professor em sala de aula. Pode ser na parte de educação física, pode ser em matemática, pode ser em física, química. O hip-hop vai para além de uma alegoria que a pessoa vê num videoclipe, ele tem uma profundidade muito interessante.

Você vem de uma trajetória que sempre conectou a rua à escola, a arte à escuta e agora celebra 50 anos de vida em turnê. Como o Criolo de hoje olha para o menino da periferia que descobria o mundo pela música, que entendia que palavras podiam rimar, e o que esse reencontro te ensina sobre tempo, aprendizado e maturidade?
Eu sou a prova viva da força do rap. E acredito que eu seja também uma prova viva de que na rua você tem desafios que são inéditos e imensuráveis. E enquanto você tem esse diálogo fechado de mundos que não se colidem, de pessoas que não se encontram, de realidades que não se encontram, a gente está fadado a um fracasso total. Compreender o Brasil e suas tantas nuances de beleza, de alegria, de criatividade, de prosperidade e felicidade é tão sublime. Mas tão importante quanto entender as suas nuances de desigualdade, os seus urros. Os seus gritos de um flagelo advindo de violência, de escárnio, de crueldade. O Brasil é tudo isso. Então eu sou uma prova viva de que a linguagem do rap pode criar pontes indestrutíveis para quem tiver com coração aberto para isso. Porque sem o coração aberto nós estamos aqui alimentando uma inocência de mãos dadas para o abismo.
Nas comunidades periféricas e também nos territórios originários, a educação ainda é um campo de disputa simbólica, ou seja, um espaço onde se confrontam saberes coloniais e modos próprios de existir e ensinar. Como você enxerga o papel da arte, principalmente do rap e do hip-hop, com sua oralidade e memória coletiva, na reconstrução dessas epistemologias e na devolução da palavra como ferramenta de cura, pertencimento e futuro?
A evolução da palavra. Eu teria que nascer e morrer um milhão de vezes. A evolução da palavra, a evolução do gesto. Isso é tão maravilhoso e tem seu tempo próprio. Nós mal chegamos nessa Terra e já destruímos tudo. Acredito que a arte é um caminho para a gente olhar esses passos da humanidade. E se a gente conseguir chegar ao caminho de só não repetir os ciclos do que foi ruim, a gente já avançou muito. E a comunicação para informação de um modo mais verdadeiramente direto e pode fazer com que a gente ganhe tempo. Essa mesma palavra que cria calabouços sociais, ela também pode criar libertação.
No bate-papo do InteligênciaPontoCom, você falou sobre estrutura, sobre a necessidade de escolas com corpo, com alma, com amparo. Se pudesse reimaginar a escola do futuro, o que ela teria de mais essencial?
A escola já tem o que é mais essencial, que são seus professores e professoras. É quem faz a comida, é quem pensa o calendário, é quem cuida do jardim. A escola já tem a sua essência. São os seres humanos que acreditam na educação. Eu não preciso reimaginar a escola, eu preciso que alguém reimagine outros nomes de quem cuida da educação no Brasil, porque ela está completamente abandonada.
O hip-hop sempre foi uma pedagogia da rua, um modo de ensinar fora da cartilha. Como você imagina que as novas gerações de MCs, grafiteiros, b-boys e DJs podem continuar esse legado sem perder o sentido comunitário que o originou?
Eu não sei te responder essa pergunta. Isso é uma coisa de foro íntimo. Agora, se você parar de alimentar o sonho, se você parar de alimentar que o caminho da prosperidade é a partir do coletivo, se você minguar a ideia de que a escola é o caminho, o estudo é o escudo, é a libertação. Se você tirar das pessoas o que ela tem de mais valioso, que é se perceber forte, se perceber vivo e capaz de construir amor para si e para o outro. Não é só no hip-hop que a gente vai se dissolver na sociedade, no todo. Mas esse trabalho já está sendo feito. Essa gente vê que nós estamos no apocalipse. Uma terra devastada sem água e sem sol. E brincando de olhar para uma pintura numa parede esquecida e essa pintura tem a foto da Amazônia, a gente acredita que ainda pode mergulhar naquela folhagem. O sentido tá no coração de cada um, e cada um que nasce num ponto diferente do planeta. Tem em sua família, e depois em sua sociedade estendida, sua escola, seu bairro, seus amigos, suas crenças, seus dogmas, seus paradigmas e essa reconstrução do todo que pode mudar o rumo de tudo. É como se você estivesse sozinho, numa canoa querendo vencer o tsunami. Não temos espaço para o romantismo agora. E depois, no segundo fascículo, não dá mais para romantizar. E assim seguimos.

