FOTOGRAFIA

Do invisível à presença
Trabalho da fotógrafa Malú Campello rompe o esquecimento e resgata através da arte a força afrodescendente em Buenos Aires
Por Jackeline Macedo
Fotos: Topo da pirámide. Un registro afrodesciendente en Buenos Aires – Malu Campelo
Há pouco mais de quinze anos, quando migrou para Buenos Aires e onde vive até hoje, não demorou para a fotógrafa brasileira Malú Campello perceber como rostos, gestos e presenças negras permaneciam na invisibilidade histórica da capital argentina e do próprio país. Sendo ela também uma mulher negra, passou a notar como se dava o racismo estrutural por lá, muitas vezes, em sua opinião, mais relacionado a uma questão xenofóbica do que propriamente étnica.
“O portenho, por exemplo, tende a rejeitar pessoas de pele preta ou marrom quando as associa a países latino-americanos dos quais imagina que elas migraram para tomar seus empregos. Com brasileiros e colombianos, porém, percebo que há uma condescendência diferente, acreditam que estão aqui apenas para gastar dinheiro”, conta. “Também conversei com mulheres afro-argentinas que me contaram que muitos argentinos se recusam a acreditar que elas nasceram no país ou que seus pais são argentinos, sustentando a ideia equivocada de que não há negros por lá.”
Filha do cantor Tony Campello, sobrinha de Celly Campello e com uma carreira consolidada como fotógrafa de espetáculos teatrais e shows musicais, toda essa experiência a levou a se dedicar paralelamente a buscar outras mulheres negras que viviam em Buenos Aires para fotografá-las. O resultado foi o projeto Topo da pirámide. Un registro afrodescendiente en Buenos Aires, que ficou em cartaz no ano de 2019 em diferentes espaços culturais da capital portenha. “Iniciei um processo profundo para entender a minha negritude. Esse caminho passou por leituras, filmes, conversas com outras mulheres negras e, pouco a pouco, se transformou também numa investigação sociológica. Comecei a compreender o racismo estrutural e a importância de criarmos redes entre nós. Dessa necessidade e desse desejo de encontro nasceu a ideia de ensaio fotográfico.”
Fazendo da câmera um instrumento de memória e resistência, seu trabalho sobre a diáspora africana na Argentina ultrapassa o campo artístico e se torna um ato de escuta, cura e denúncia. “Que as histórias silenciadas possam encontrar voz, e que, através do olhar, possamos nos curar”, afirma Malú, com a convicção de quem entende a arte como forma de reparação. “Ser mulher negra na América Latina é habitar o paradoxo de carregar a dor da exclusão e, ao mesmo tempo, a potência da ancestralidade e da criação. Trabalhar a solidão da mulher negra é doloroso, porque é também atravessar a minha própria solidão todos os dias. É compreender a estrutura do racismo, suas limitações e crenças ainda tão presentes, e seguir lutando contra tudo isso. Diria que ser mulher negra hoje é viver uma luta constante e uma celebração em passos lentos.”

Mapear a presença negra
O encontro de Malú Campello com a fotografia aconteceu ainda na infância. “Desde muito pequena, acompanhava meu pai em seus shows. No começo eu me entediava um pouco de estar no meio de tanta gente, até que comecei a levar uma câmera que ganhei do meu irmão, só para brincar, me distrair. Eu devia ter uns onze anos. Foi assim que comecei a fotografar pessoas, palcos e bastidores, sem saber que ali nascia algo maior.”
O prazer de registrar os palcos permanece a impulsioná-la com força, mas seu desejo atual de finalizar a segunda parte do projeto que nasceu com Topo da pirámide. Un registro afrodescendiente en Buenos Aires não passa despercebido. Dessa vez, a artista prepara um livro com retratos e histórias de mulheres afrodescendentes que vivem na capital portenha, sejam elas de qualquer nacionalidade. Com essa publicação, quer lançar luz sobre o cotidiano de chefs de cozinha, arquitetas, médicas e outras figuras negras.
Quando for lançado, o livro poderá, de alguma forma, ser compreendido como um mapa da presença negra em um país que, como ela ressalta, insiste em se imaginar branco. “Lidar com o silêncio, tanto o institucional quanto o cotidiano. A memória negra na Argentina muitas vezes é tratada como uma ausência, e isso torna difícil o acesso a registros, documentos e até à própria fala das pessoas.”
Por isso mesmo, as séries fotográficas de Malú trabalham como arquivos afetivos. São imagens que buscam reconectar o presente com as ancestralidades que sustentam a identidade afrolatino-americana. Sua obra transita entre a documentação e o poético, entre o gesto e a análise. “Enquanto penso em diafragmas, luzes e composição, o que realmente guia meu trabalho é o olhar humano, o desejo de compreender o outro. Por isso, transitar entre a documentação e a criação artística acabou sendo algo natural. A técnica está a serviço da escuta, e a arte surge como uma forma de traduzir o que não cabe apenas no registro documental.”

Em sua pesquisa, ela também enxerga o florescimento de uma nova geração afrodescendente na Argentina. “Vejo uma geração que está reconstruindo o espelho. Muitos jovens afrodescendentes estão se reconhecendo, criando espaços de afirmação e ressignificando o que é ser negro ou afro na Argentina. É um processo cheio de força e também de contradições, porque buscar a ancestralidade é, ao mesmo tempo, um ato político e profundamente íntimo.”
Mais do que revelar ausências, o trabalho de Malú Campello propõe presença. Suas imagens são construídas a partir de vínculos afetivos e de um desejo de devolver às pessoas retratadas a consciência de sua própria força. Essa dimensão relacional é o que transforma sua fotografia em linguagem política e espiritual ao mesmo tempo. É desse território que nasce sua compreensão de que produzir arte, especialmente na América Latina, é muito mais do que criar. “Produzir arte neste continente é um ato de resistência. É tentar criar beleza e pensamento num território marcado por feridas coloniais que ainda sangram. É também um gesto de amor, afirmar que nossas histórias importam, que nossos corpos e memórias têm valor simbólico e político. Criar aqui é um exercício constante de reexistência”, conclui.


