EDUCAÇÃO
Créditos: Adobestock
Cidades MIL e o futuro da vida urbana
O conceito propõe um novo paradigma, em que cultura, educação e tecnologia se unem para formar cidadãos críticos e participativos
Por Rebeca Hermes
O conceito de Cidades MIL, ou Media and Information Literacy Cities, nasceu de uma provocação da Unesco: e se as cidades pudessem ser pensadas como espaços de aprendizagem contínua, onde educação, cultura e tecnologia se articulam para formar cidadãos críticos e participativos? A proposta parte da ideia de que uma metrópole é composta por múltiplas realidades, sejam elas sociais, digitais e simbólicas, e que, portanto, precisa reconhecer sua própria diversidade como potência educativa e democrática. Em vez de cidades centradas apenas na infraestrutura, o modelo propõe urbes focadas nas pessoas, na ética informacional e na inclusão.
O conceito foi desenvolvido no âmbito da iniciativa global de Alfabetização Midiática e Informacional (AMI) da Unesco e ganhou desdobramentos específicos na América Latina, onde pesquisadores vêm adaptando a proposta às condições locais, considerando desigualdades históricas, fragmentação urbana e os desafios de convivência em sociedades marcadas pela pluralidade.
Segundo Alexandre Le Voci Sayad, consultor dessa agência da ONU e especialista em educação midiática, o tema ganhou corpo em 2018, durante a Semana Global de Alfabetização Midiática e Informacional, na Lituânia e Letônia, mas não teve adesão imediata. Foi apenas em 2023 que a Unesco, diante do avanço de governos autoritários e da urgência de fortalecer a educação em nível municipal, resgatou a proposta e a colocou novamente no centro do debate.
Quem também se debruça sobre o tema é o professor Felipe Chibás Ortiz, professor do Programa de Integração Latino-americana (Prolam) da Universidade de São Paulo (USP), coordenador executivo do Centro Internacional de Inovação e Desenvolvimento de Cidades MIL (CIIDCMIL-USP), e colíder do Grupo de Inovação de Unesco Mil Alliance. Para ele, o conceito é uma evolução natural das ideias de alfabetização midiática informacional e das noções de cidades inteligentes, educativas e resilientes. “Essa nova realidade que estamos vivenciando mexe com tudo, inclusive com os modelos e paradigmas urbanos anteriores”, explica. A proposta das Cidades MIL, segundo ele, é tecnológica, mas também é social, ética, criastiva e cultural. “Estamos falando de cidades que educam, comunicam, acolhem e aprendem junto com seus habitantes.”
Um ponto fundamental defendido pelos dois pesquisadores é o reconhecimento de que as cidades contemporâneas existem simultaneamente em dimensões físicas e digitais. “A realidade é híbrida”, afirma Ortiz, que é um dos organizadores do livro Cidades MIL: Desafios e soluções para o desenvolvimento sustentável na era da Inovação e da Inteligência Artificial. “Hoje, se você sai de casa e esquece o celular, volta para buscá-lo. Não dá mais para viver fora dessa conexão permanente.” Sayad complementa: “O território digital precisa ser ocupado com a mesma intencionalidade educativa que o espaço físico.” Essa visão se baseia em sua trajetória como cofundador da Cidade Escola Aprendiz, na Vila Madalena, um projeto que inspirou a própria Unesco e virou caso de estudo em Harvard, no qual a educação ultrapassa os muros escolares e transforma os bairros em ambientes de aprendizagem.
Em termos práticos, as Cidades MIL propõem uma alfabetização midiática e informacional distribuída, capaz de envolver escolas, universidades, meios de comunicação, espaços públicos, empresas e cidadãos em um mesmo compromisso: formar uma sociedade crítica, criativa e colaborativa. A tecnologia, nesse contexto, não é um fim, mas uma ferramenta para a construção de comunidades conscientes, capazes de lidar com os desafios da desinformação, do discurso de ódio e da exclusão social.
Territórios de aprendizagem
O conceito de Cidades MIL propõe que cada espaço urbano, físico ou digital, seja reconhecido como um território de aprendizagem. A cidade, nesse modelo, deixa de ser apenas um conjunto de ruas, edifícios e instituições e passa a funcionar como uma grande rede educativa, onde conhecimento, cidadania e cultura se entrelaçam no cotidiano.
O guia da Unesco sobre o tema detalha como diferentes setores podem incorporar essa perspectiva em suas políticas e rotinas: sistemas de transporte que exibem conteúdos educativos; hospitais que promovem campanhas de alfabetização em saúde; centros comerciais transformados em espaços de convivência e conhecimento. Tudo o que compõe a vida urbana pode se tornar instrumento pedagógico e espaço de transformação social.
Exemplos concretos dessa abordagem já começam a aparecer pela América Latina. Na Argentina, o município de Comodoro Rivadavia tem articulado diferentes secretarias, como as de cultura, educação e inovação, para criar políticas integradas de cidadania digital. No Brasil, a cidade de Santos, no litoral paulista, desenvolveu o Parque Tecnológico, espaço público voltado para oficinas, debates e experiências formativas, consolidando-se como referência regional. Outra cidade brasileira com destaque nesse sentido é São Gonçalo do Amarante (RN).
Em São Paulo, o programa Imprensa Jovem, há quinze anos em atividade, capacita estudantes da rede pública em produção midiática e jornalismo comunitário. O projeto é exemplo de prática alinhada aos princípios das Cidades MIL: dar voz a novos protagonistas e democratizar o acesso à informação.
Mais do que investir em tecnologia, essa visão defende que o digital deve estar a serviço dos valores humanos. Como destaca Felipe Chibás Ortiz, “não é o número de cliques que define o sucesso de uma sociedade, mas a qualidade das interações e o quanto elas ampliam o senso de pertencimento e responsabilidade coletiva”. O professor relata exemplos preocupantes, como plataformas que permitem criar deepfakes pornográficos ou que disseminam conteúdo violento entre adolescentes. “Tem que ter limites éticos, comportamentais e limites jurídicos”, defende, argumentando que a liberdade de expressão no mundo digital deve ter as mesmas responsabilidades do mundo físico.
Nesse sentido, o projeto aponta para uma virada ética: a cidade do futuro não será aquela mais digitalizada, mas a mais consciente de si. Cidades MIL são aquelas que compreendem sua própria multiplicidade e fazem da educação, da cultura e da memória o eixo de sua transformação social.
Ambos os pesquisadores reconhecem, no entanto, que a implementação desse modelo enfrenta desafios estruturais. “Muitas vezes a secretaria de saúde não fala com a de educação”, observa Sayad, apontando a fragmentação administrativa como um obstáculo significativo. Chibás Ortiz complementa ao mencionar a dificuldade de coordenar o que chama de “os cinco agentes da inovação”: educadores e pesquisadores, políticos, empresários, artistas e pessoas comuns.
O guia da Unesco reforça essa preocupação e reconhece que “em uma era de ameaças globais como pandemias, desastres naturais e conflitos armados, a governança da cidade deve ser flexível e adaptável”, permitindo a implementação gradual ou parcial das iniciativas.
Visão de futuro
Ao imaginar a cidade Mil ideal para 2030, Felipe Chibás Ortiz projeta um horizonte possível e sensato: “Uma cidade que, de acordo com os recursos tecnológicos, humanos e financeiros que tiver, os aplique em função do cidadão”. A proposta não é acumular inovações, mas usá-las com propósito social, transformando cada avanço em ferramenta de inclusão.
Alexandre Sayad reforça essa ideia ao afirmar que o conceito deve resultar em cidades “voltadas para o ser humano e para o bem-estar”, onde a tecnologia serve à vida e não o contrário. É uma visão que prioriza “o acesso à cultura, à educação, ao trânsito, à mobilidade, à sustentabilidade ambiental e aos direitos humanos básicos”.
Mais do que um novo modelo de gestão, o conceito de Cidades MIL propõe uma mudança profunda na forma de conceber o espaço urbano latino-americano. Como demonstram as diretrizes da Unesco e o trabalho dos pesquisadores brasileiros e de outros países, trata-se de reconhecer e potencializar a multiplicidade já existente, criando cidades simultaneamente físicas e digitais, tecnológicas e humanas, locais e globais.
A consolidação desse paradigma dependerá da capacidade de articular diferentes setores, superar fragmentações administrativas e, sobretudo, recolocar o cidadão no centro de todas as decisões. Afinal, as Cidades MIL já estão entre nós, como nas práticas cotidianas de milhões de latino-americanos que, mesmo sem saber, reinventam a vida urbana todos os dias. O desafio agora é reconhecê-las, legitimá-las e amplificá-las, construindo futuros verdadeiramente inclusivos e participativos.

