IDENTIDADE

Afinal de contas, o portunhol é uma língua?
Mistura de vozes e territórios, o portunhol se afirma como expressão cultural, atravessa fronteiras e conquista espaço na literatura
Por Isabella Vilela Cunha
Quem nunca se arriscou a falar um portunhol ao encontrar falantes de espanhol? Essa cena é mais comum do que se imagina, seja em viagens internacionais, seja em cidades que fazem fronteira com países vizinhos. Vale lembrar que o Brasil é o único país da América do Sul a ter o português como idioma oficial, mas compartilha limites territoriais com sete nações hispanofalantes. Nessas regiões de contato, português e espanhol se misturam no cotidiano, não como improviso, mas como uma prática enraizada, que levanta uma questão intrigante: afinal, o portunhol pode ser considerado uma língua?
Do ponto de vista normativo, a resposta tende a ser negativa, já que uma língua exige regras, padronização e instituições que a regulamentem. No entanto, há correntes acadêmicas e culturais que defendem a leitura de que o portunhol, mais do que um “erro” ou improviso, é uma manifestação legítima de identidade. Ele surge como resultado das trocas sociais, culturais e afetivas entre povos que dividem fronteiras e refletem a dinâmica natural desses territórios.
Essa mistura não é fenômeno recente. Pesquisadores apontam que o portunhol funciona há décadas como recurso eficaz de comunicação em cidades fronteiriças. O estigma de ser “não oficial” o manteve à margem, mas a globalização, a circulação de pessoas e as redes digitais deram novo fôlego a esse híbrido linguístico, que hoje também ganha espaço na literatura e na reflexão acadêmica. Não por acaso, há um movimento para que seja reconhecido como Patrimônio Imaterial pela Unesco.
Nesse cenário, o escritor e tradutor Douglas Diegues ocupa papel central. Filho de mãe paraguaia e pai brasileiro, ele cresceu em Ponta Porã, na fronteira entre Brasil e Paraguai, onde aprendeu a falar misturando português, espanhol e guarani. Dessa experiência nasceu o conceito de “Portunhol Selvagem”, um movimento literário que propõe uma linguagem libertária, atravessada por diferentes línguas, sem regras fixas. A ideia não é padronizar, mas justamente explorar o caráter lúdico, plural e político da fala das fronteiras.
O termo “selvagem” se refere a uma rebeldia criativa diante da tentativa histórica de homogeneização cultural imposta pelos Estados nacionais. Ao incluir o guarani, presente em comunidades da tríplice fronteira, Diegues evidencia que essa linguagem não nasce de um projeto acadêmico, mas do viver cotidiano de povos em trânsito constante.
Acadêmicos como Jorgelina Tallei, docente de espanhol na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), lembram que o portunhol não possui uma forma “correta” de ser falado. Ele se transforma conforme circula, criando portunhóis diferentes ao longo da extensa faixa de fronteira brasileira. Nessa perspectiva, o portunhol é, antes de tudo, a língua das relações, um código de compreensão mútua, forjado na convivência.
Ao longo da história, os contatos linguísticos sempre geraram novas formas de expressão. O spanglish, nos Estados Unidos, é um exemplo semelhante. O portunhol segue a mesma lógica: não nasceu para obedecer a regras, mas para aproximar pessoas e sua existência já não pode ser ignorada, seja na fala cotidiana, seja nas páginas literárias.
Portanto, responder se o portunhol é ou não uma língua depende menos de critérios normativos e mais da forma como o enxergamos. Oficialmente, não há gramática, dicionários ou academias que o reconheçam. Mas, na prática, ele existe em comunidades fronteiriças, em textos literários, em identidades culturais. Entre ser uma língua formalizada e permanecer um movimento de liberdade, o portunhol abre espaço para que cada falante e cada pesquisador completem a resposta. Afinal, mais do que uma questão de regras, trata-se de uma questão de vida.