COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro
A utopia como raiz da América Latina
Há quem diga que a utopia é o avesso da realidade, mas na América Latina ela é o próprio tecido da sobrevivência. Desde os sonhos libertários de Simón Bolívar até o humanismo pedagógico de Paulo Freire, passando pelas cores insurgentes de Frida Kahlo, as palavras oceânicas de Neruda e o gesto sacrificial de Che Guevara, a utopia não foi aqui um devaneio, foi um método de resistência.
No continente onde a dor se fez memória e a esperança se fez idioma, a utopia tornou-se forma de vida. Darcy Ribeiro compreendeu isso quando dizia que o Brasil (e por extensão a América Latina) ainda estava por ser inventado. Essa invenção permanente, entre o real e o possível, é o que moveu nossos povos na construção de uma identidade que não se submete à lógica fria do mercado global, mas insiste em afirmar a dignidade humana como princípio civilizatório.
Hoje, diante do pragmatismo tecnocrático e do esvaziamento das utopias, é preciso reafirmar o papel simbólico e político da imaginação. A utopia latino-americana não é um horizonte inatingível, é um compromisso diário com o inacabado, uma ética do porvir. É o que faz da cultura o último bastião de resistência e do Memorial da América Latina um espaço vivo de memória e de futuro, onde o sonho não é fuga, mas método.
Darcy Ribeiro também nos alertava para um drama profundo: o homem sul-americano é, muitas vezes, um ser desenraizado. Perdeu as referências ancestrais dos povos que lhe deram forma, e ainda não consolidou plenamente suas raízes no solo novo que habita. É um homem em trânsito entre o passado e o porvir, entre o local e o universal, entre a memória fragmentada e o desejo de totalidade. Por isso Darcy temia que a identidade latino-americana se tornasse uma identidade pasteurizada, um espelho diluído do mundo industrial, incapaz de reconhecer sua própria pluralidade.
Mas se há uma força que impede essa pasteurização, ela está na própria alma alegre do povo latino-americano. Nossos povos são feitos de festa, de riso, de dança e de fé. São culturas que celebram a vida, que transformam o cotidiano em Carnaval e o trabalho em convivência. A mesa é um altar coletivo, onde a comida se torna ponte entre gerações, e a música é uma linguagem que fala mais do que as palavras. Na América Latina não há espaço para o medo do estrangeiro nem para a desconfiança do diferente. Aqui, o outro é acolhido, não apenas tolerado.
Enquanto isso, a Europa (apesar da existência formal de um mercado comum criado para fins econômicos e laborais) ainda carrega marcas profundas da Idade Média. É uma colcha de retalhos onde as diferenças são apenas suportadas, raramente celebradas. São resquícios de um tempo em que as estradas eram perigosas e a vida, confinada aos feudos, alimentava o medo do que vinha de fora. Ainda hoje, no interior da Itália e da França, é comum ouvir que o compatriota é apenas aquele que consegue escutar, da própria casa, o sino da igreja local. Aquele que não o ouve já é estrangeiro. Na Sicília, muitas casas foram erguidas de costas para o mar, porque do mar só vinham invasões, luto e desconfiança. São cicatrizes antigas, que revelam como a xenofobia se tornou parte da paisagem emocional europeia.
Enquanto o velho continente e boa parte do mundo se caracterizam por um pragmatismo frio e por uma intolerância travestida de civilidade, o latino-americano se distingue pela pluralidade e pela alegria do convívio. Aqui, o diverso é sinônimo de riqueza, e a diferença, de completude. A hospitalidade é nossa forma de sabedoria e o encontro, nossa maneira de existir. É essa exuberância cultural e afetiva que faz da utopia latino-americana uma força viva, concreta e insurgente.
A utopia, nesse sentido, é o remédio contra a anestesia da homogeneização cultural. Ela restitui ao homem latino-americano o direito de ser múltiplo, de habitar simultaneamente o tempo do mito e o tempo da história. O que Bolívar sonhou nas montanhas, o que Neruda escreveu diante do Pacífico e o que Freire ensinou nas salas de alfabetização, tudo isso converge para um mesmo princípio: a libertação como projeto de humanidade. É na imaginação do futuro que reencontramos nossas origens, e é pela cultura que nos tornamos novamente inteiros.
A antropologia nos ensina que os povos não sobrevivem apenas pelo que produzem, mas pelo que sonham. A América Latina sobrevive porque insiste em sonhar, mesmo quando tudo parece desabar. A utopia aqui não é ingenuidade, é coragem. É o gesto de seguir criando, educando e amando apesar da adversidade. É o território simbólico onde os fragmentos se reencontram e o homem mestiço reconhece, enfim, que suas raízes não são perdidas, mas múltiplas.
É por isso que, no Memorial da América Latina, celebrar a utopia é celebrar a própria condição humana. É afirmar que o futuro não se fabrica apenas com tecnologia, mas com memória e imaginação. A utopia é a chama que impede a América de ser apenas um mercado e a devolve à sua vocação original: ser um continente de humanidade.

