COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro
A tarefa inacabada da América Latina
Há mais de um século, José Martí escreveu que as trincheiras de ideias valem mais que as trincheiras de pedra. Nessa frase repousa não apenas a força moral de um revolucionário, mas a intuição profética de um homem que compreendeu a América como um destino comum. Em Nuestra América, publicado em 1891 e considerado uma das pedras fundamentais do pensamento latino-americano, Martí não pregava uma utopia regionalista, mas a urgência de um pensamento próprio, de uma ética que unisse razão e ternura, ação e escuta, liberdade e responsabilidade. Sua obra inspirou a criação da revista Nossa América do Memorial da América Latina, continuidade natural dessa vocação integradora.
Martí é uma das figuras mais luminosas e complexas da história latino-americana, poeta, ensaísta, jornalista e diplomata. Intelectual humanista e precursor do modernismo literário, sua escrita une lirismo, filosofia e ação política, influenciando autores como Rubén Darío e Gabriela Mistral. Em seus textos, defendeu a dignidade humana como valor supremo, e a educação e a cultura como instrumentos de libertação. Pregava a educação moral e cívica como fundamento da liberdade, visão que ecoa profundamente na obra e no pensamento de Darcy Ribeiro, criador da Universidade de Brasília, para quem educar era o ato mais revolucionário que uma sociedade poderia empreender.
Em uma carta de 1881 publicada no jornal La Opinión Nacional de Caracas, Martí afirmou que “a paciência é a maior das virtudes políticas”. Em outro texto, de 1893, escreveu que “a paciência não é covardia, é a serenidade dos fortes”. Essas frases sintetizam o cerne de sua ética: “a força moral se revela na capacidade de esperar, resistir e agir com prudência”. Martí via na paciência a sabedoria dos que compreendem o tempo histórico, e não o resignado conformismo dos que se rendem.
O Memorial da América Latina, idealizado por Darcy Ribeiro e concretizado sob a inspiração política de André Franco Montoro, nasceu desse mesmo espírito martiano, o de um continente que se reconhece na pluralidade, mas que só progride pela convergência. Montoro via na integração o caminho inevitável do desenvolvimento, e Darcy a concebia como gesto civilizatório, a criação de uma comunidade de destino entre povos irmãos, não unidos por fronteiras, mas por histórias entrelaçadas. Ambos compreenderam que o verdadeiro milagre latino-americano seria transformar a diversidade em força, e não em fratura.
Ao reler Martí à luz de Darcy, percebe-se a continuidade de uma missão intelectual e política, fazer da América Latina uma voz coral. Martí alertava contra o mimetismo cultural e contra a importação de modelos alheios, Darcy reiterou essa advertência ao defender a construção de um projeto autônomo de nação e de continente. Ambos sabiam que o atraso não é falta de talento, mas falta de coesão. Ambos acreditavam que a universidade, o pensamento e a cultura têm papel essencial na costura desse tecido comum.
Essa concepção de educação como eixo civilizatório encontrou expressão prática e concreta no Brasil por meio dos Centros Integrados de Educação Pública, os CIEPs, idealizados por Darcy Ribeiro e implementados durante o governo de Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro, com o projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Os CIEPs foram concebidos como escolas de tempo integral que uniam educação, cultura, esporte e assistência social, transformando a escola em centro vital da comunidade. Com ginásios, bibliotecas, espaços de saúde e atividades culturais abertas aos fins de semana, esses aparelhos tornaram-se laboratórios de cidadania, de afeto e de pertencimento. Sua memória ainda ressoa na imprensa e na academia como modelo inspirador de políticas que colocam a educação comunitária no centro da vida pública.
Essa mesma convicção de que a cultura e a educação são as raízes da segurança social encontrou ressonância em outro ponto da América Latina: a cidade de Medellín, na Colômbia, que nas primeiras décadas do século XXI protagonizou uma profunda transformação urbana e social. O chamado urbanismo social de Medellín, implementado nos anos 2000, combinou bibliotecas-parque, centros culturais e esportivos, programas de música e espaços públicos de qualidade, especialmente em áreas que antes eram dominadas pela violência e pelo tráfico. Entre o pico de homicídios em 1991 e meados dos anos 2000, a cidade registrou forte queda nas taxas de assassinato, reflexo de políticas que uniram infraestrutura cultural, gestão comunitária e inclusão social. Projetos como a Red de Escuelas de Música de Medellín transformaram bairros vulneráveis em espaços de convivência e criação. A arte, a cultura e a educação tornaram-se instrumentos de pacificação e, sobretudo, de reconstrução simbólica.
Tanto os CIEPs brasileiros quanto o urbanismo social de Medellín revelam que o verdadeiro progresso nasce da paciência dos fortes, daqueles que acreditam em mudanças paulatinas, persistentes e enraizadas. Mostram que a transformação não é fruto da imposição, mas do cultivo paciente de vínculos entre a escola, a cultura e a comunidade. São experiências que demonstram que a cultura não é ornamento, é estrutura, e que a educação não é apenas instrução, é emancipação.
Hoje, quando a polarização ameaça transformar as ideias em armas e as universidades em trincheiras de exclusão, a lição de Martí ganha uma dimensão pedagógica. Nuestra América foi escrita para libertar as consciências, não para aprisioná-las. A universidade, como queria Darcy, deve ser o território da escuta, não o eco de discursos fechados. O Memorial da América Latina, herdeiro dessa linhagem, permanece como símbolo dessa hospitalidade intelectual, um espaço onde o pensamento pode divergir sem se fragmentar, e onde a diversidade é celebrada como fundamento da unidade.
A América Latina, como qualquer sociedade, comporta contradições e diferenças legítimas. Mas o que nos enfraquece não é a diferença, é a incapacidade de dialogar. Martí, Darcy e Montoro sabiam que o progresso não nasce do consenso forçado, mas da convivência respeitosa entre vozes distintas que aspiram ao bem comum. A integração é, antes de tudo, um ato de maturidade política, compreender que não há desenvolvimento possível onde há esterilidade de diálogo.
Revisitar Martí, portanto, é reencontrar a vocação mais alta do nosso continente, a de ser, apesar das feridas, um espaço de esperança. Nuestra América não é apenas um texto, é um chamado à responsabilidade histórica. E o Memorial da América Latina, com sua revista Nossa América, é a continuação viva desse chamado, uma trincheira de ideias pacífica e paciente, erguida pela força dos que ainda acreditam na unidade como o verdadeiro nome da liberdade. Assim como as linhas arquitetônicas de Oscar Niemeyer dialogam com a visão antropológica de Darcy Ribeiro e com o ideal integrador de Montoro, o Memorial é mais do que um conjunto de edifícios: é uma síntese poética e erudita da América sonhada por Martí, um monumento à paciência dos que transformam o tempo em cultura e a cultura em destino.

