COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro
A grandeza de Léa Garcia diante da fragilidade da memória nacional
Poucos nomes no Brasil atravessam com tanta força as fronteiras da arte, da representatividade e da memória quanto o de Léa Garcia. Nascida em 1933, no Rio de Janeiro, e falecida em 2023, aos 90 anos, ela poderia hoje, com 95 ou 96 anos, estar ainda entre nós, ativa, lúcida e reconhecida como patrimônio vivo da nossa cultura. Mas o que se percebe é que, mesmo diante de uma trajetória que rompeu barreiras históricas, a preservação da memória de Léa, e por extensão de tantos outros mestres e artistas negros, permanece frágil e marcada pelo esquecimento institucional.
Léa Garcia começou sua carreira no Teatro Experimental do Negro, ao lado de Abdias Nascimento, e logo brilhou em Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes. No cinema, tornou-se referência internacional com Orfeu Negro (1957), obra vencedora do Oscar e da Palma de Ouro, pela qual recebeu indicação como melhor atriz em Cannes. Na televisão, foi inesquecível como Rosa em A escrava Isaura, além de dezenas de outros papeis que atravessaram gerações. Ao longo da carreira, conquistou prêmios no Festival de Gramado e o respeito de públicos dentro e fora do Brasil.

Crédito: Acervo pessoal da artista
Do ponto de vista antropológico, a trajetória de Léa é uma etnografia da resistência. Mulher negra em um país estruturado pelo racismo, ela abriu caminhos em um território dominado por papeis estereotipados e pouco generosos às atrizes negras. Seu corpo em cena, sua voz e sua presença significaram mais do que atuações: foram afirmações políticas, marcas simbólicas de uma identidade coletiva que encontra na arte um espaço de reconhecimento.
Do ponto de vista da museologia, Léa Garcia é um patrimônio imaterial. Sua vida poderia ser pensada como um acervo vivo, capaz de articular teatro, cinema e televisão em torno de uma mesma narrativa: a luta pela visibilidade da mulher negra. Mas esse acervo se dispersa, muitas vezes relegado a lembranças pessoais, reportagens ou prêmios isolados. A pergunta que se impõe é: onde estão as instituições que deveriam salvaguardar e musealizar uma trajetória como essa? Onde está o museu que resguarda seus figurinos, seus roteiros, suas entrevistas e sua memória oral como parte da história do Brasil?
Essa reflexão nos leva a um ponto crucial: o Brasil não é carente de heróis, nem de personalidades talentosas que quebraram paradigmas. Nossa história está repleta de figuras como Léa Garcia, que transformaram contextos adversos em conquistas coletivas. O que nos falta não são exemplos inspiradores, mas sim mecanismos sólidos de preservação da memória. O patrimônio imaterial, que deveria ser sustentado por políticas públicas e por instituições fortes, revela-se frágil, sujeito ao esquecimento e à perda. Cada vida como a de Léa Garcia deveria ser tratada como uma obra-prima da memória nacional, não apenas como lembrança episódica em datas de falecimento. A ausência de um processo sistemático de preservação não diminui a grandeza dessas figuras, mas empobrece o país, que perde a chance de transmitir às próximas gerações a riqueza de sua própria história.
A trajetória de Léa nos obriga a discutir temas urgentes: museus e cinemas de memória negra, que ainda são raros; o legado pedagógico de sua obra, que poderia ser usado como instrumento de ensino nas escolas; e a enorme lacuna da presença negra nos currículos de artes e ciências sociais. O Brasil também falha em criar prêmios retrospectivos que celebrem artistas negros em vida, preferindo uma homenagem póstuma e fragmentada. O resultado é uma museologia seletiva, que exibe a contribuição da matriz africana e dos povos originários em papéis coadjuvantes, sem jamais confrontar de frente a versão colonizada da história do Brasil, aquela que ainda insiste em se narrar a partir de padrões estéticos e intelectuais europeus. A museologia crítica nos mostra que a contribuição negra e indígena não deve ser adorno, mas núcleo central da narrativa histórica. Ao invisibilizar essa centralidade, reforçamos a desigualdade simbólica que ecoa na sociedade.
Essa leitura pode ser aprofundada por diferentes autores. Abdias Nascimento nos lembra do Teatro Experimental do Negro, berço da afirmação identitária e política que moldou Léa. Homi Bhabha fala do “entre-lugar”, e Léa viveu justamente essa intersecção: reconhecida internacionalmente em Cannes e no Oscar, mas invisibilizada estruturalmente no Brasil. Paul Gilroy, com seu conceito de Atlântico Negro, permite lê-la como figura que circula entre o Brasil, a diáspora e o mundo, traduzindo em sua arte essa condição transnacional. E também as cosmologias afro-brasileiras, como o Povo de Jeoroi, lembram que toda trajetória negra carrega dimensões espirituais, ancestrais e coletivas, que ultrapassam o indivíduo e se transformam em herança simbólica.
A museologia contemporânea já nos ensina que preservar não é apenas guardar objetos, mas registrar trajetórias, dar espaço a narrativas de grupos marginalizados e reconhecer no presente o que deve ser legado ao futuro. Se Léa Garcia tivesse nascido em outro país, possivelmente já teria um museu, um centro cultural ou um arquivo dedicado à sua obra. No Brasil, seguimos dependentes da memória frágil, dispersa, de iniciativas isoladas. Por isso, falar de Léa Garcia hoje é também falar de nós mesmos. É um convite para que repensemos nossas prioridades culturais, para que não deixemos que a grandeza de nossas personalidades se perca. Porque preservar Léa é preservar o Brasil.
Já passou da hora de nos darmos conta de que as escolhas sobre o que é lembrado ou esquecido passam pelo comando das pastas governamentais, pois são aqueles que dirigem os mecanismos estatais de preservação do patrimônio que decidem, queira-se ou não, o que será memória e o que será silêncio. Enquanto a gestão cultural se limitar a viver apenas o presente, confundindo cultura com entretenimento e recusando olhar pelo retrovisor, a identidade do nosso povo seguirá se desfazendo diante dos nossos olhos.