
Ao longo de décadas de atuação na proteção ao patrimônio cultural brasileiro, seja no campo jurídico, na gestão pública ou, ainda, na produção acadêmica, tenho aprendido que preservar é, antes de tudo, ouvir. Ouvir o que a pedra silenciada ainda deseja dizer, ouvir os ritos invisíveis que moldaram nossa sensibilidade coletiva, ouvir as vozes abafadas pela violência do tempo e da história.
Inauguro, com este texto, minha participação na nova curadoria editorial do site da Fundação Memorial da América Latina, que contará com contribuições minhas a cada três semanas, dentro do eixo temático “memória e identidade latino-americana”. Nesse contexto, minha colaboração se voltará especialmente à reflexão sobre os povos originários, suas cosmologias e territórios, mas também sobre personagens, símbolos, movimentos artísticos e culturais que moldaram a alma do nosso continente, com ênfase nas expressões que dialogam com a ancestralidade e com os fundamentos civilizatórios da América Latina.
Durante minha trajetória, que inclui a presidência do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e, atualmente, da Fundação Memorial da América Latina, sempre compreendi o patrimônio como expressão dinâmica: não só pedra e cal, mas também canto e gesto; não só arquitetura, mas também espiritualidade. Essa compreensão levou-me a defender, tanto na formulação de políticas públicas quanto em minha pesquisa de pós-doutorado, uma visão ampliada de patrimônio cultural, que abarca com igual relevância o imaterial, o ancestral e o simbólico.
É dentro dessa perspectiva que destaco a importância das culturas indígenas no cenário latino-americano contemporâneo. Em especial, o povo guarani (presente do Brasil à Bolívia, do Paraguai à Argentina) constitui não apenas uma presença histórica, mas um projeto civilizatório ainda vivo, com língua própria, cosmologia estruturada e territórios de memória que desafiam os mapas coloniais.
Durante a atual gestão à frente do Memorial, temos estreitado o diálogo com o Ministério da Cultura do Paraguai, país que, em muitos aspectos, encontra-se em estágio mais avançado na consolidação do léxico, da gramática e da institucionalização da língua guarani como fundamento de sua identidade nacional. É com entusiasmo que compartilho que estamos caminhando a passos largos para a criação de uma cátedra da língua guarani, sediada no Memorial da América Latina. Trata-se de um projeto que une diplomacia cultural, reconhecimento da diversidade linguística e compromisso institucional com os saberes originários.
A fundação de uma cátedra não é apenas um gesto acadêmico. É um ato de reparação. É afirmar que a memória indígena não deve ser confinada ao passado, mas reconhecida como elemento ativo da contemporaneidade, como fonte legítima de saber, ciência, arte e ética. Ao lado disso, é também um convite à escuta: compreender a cosmovisão guarani, onde natureza, palavra e espírito não se separam, pode ser, para nós, um antídoto contra a fragmentação moderna.
Recentemente, tivemos a honra de receber no Auditório Simón Bolívar o espetáculo “Pérolas do Pantanal”, o qual contou com a apresentação da Orquestra Indígena, da aldeia urbana Darcy Ribeiro. O concerto entrelaçou o erudito ao popular, o ancestral ao contemporâneo, os sons do Brasil profundo aos palcos institucionais, reafirmando o Memorial como espaço de celebração da diversidade cultural latino-americana. A apresentação foi aplaudida de maneira intensa pelo público, que reagiu com entusiasmo e emoção, fazendo com que vários BIS fossem executados. Foi uma felicidade muito grande testemunhar a receptividade e o sucesso dessa iniciativa, que demonstra, mais uma vez, como a arte indígena contemporânea é plenamente capaz de dialogar com grandes plateias e ocupar com dignidade os espaços de alta cultura.
O Memorial da América Latina, concebido por Darcy Ribeiro e projetado por Oscar Niemeyer, não nasceu para ser um mausoléu da história, mas um organismo vivo da memória. Um lugar onde o passado pulsa no presente, e onde a cultura não se curva à mercantilização da pressa, mas floresce como encontro, diálogo e permanência.
Começamos, assim, uma nova travessia editorial. E começamos pela raiz. Porque não há identidade latino-americana verdadeira que ignore seus povos originários. Nem futuro viável que não inclua suas vozes.
Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social
Doutor em proteção ao Patrimônio Cultural
Advogado especializado em direitos autorais
Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)