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O governo federal constituiu um grupo de trabalho (GT) que terá 90 dias para elaborar a proposta de um novo marco regulatório que regularize a relação Estado/organizações não governamentais. A novidade foi anunciada pelo ministro Gilberto Carvalho (à esquerda, ao lado de Alda Marco Antonio), titular da Secretaria-Geral da Presidência da República, em palestra no Memorial da América Latina, durante o III Congresso Brasileiro de Fundações e Entidades de Interesse Social em São Paulo, nesta segunda, 21 de dezembro de 2011. A necessidade de normatizar essa delicada relação ganhou força depois dos recentes escândalos envolvendo agentes governamentais e entidades que recebem dinheiro público. Segundo o ministro Gilberto Carvalho, um encontro realizado em 11 de novembro passado – o “Seminário Internacional Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil” -, com a participação de representantes de cerca de 40 entidades brasileiras e palestrantes americanos e colombianos, deixou claro a necessidade de se ampliar a consulta à sociedade para democratizar o processo de escolha, financiamento e fiscalização de entidades privadas que prestam serviços públicos.
Antes do ministro titular da Secretaria-Geral da Presidência, o ciclo de palestras foi aberto pela concorrida fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que não se furtou a tocar no ponto mais quente do dia. “A visão de organização social é oposta da que está tão em moda aí de ONGs que obtêm dinheiro para a corrupção. Isso é o oposto do que seria o terceiro setor”, declarou FHC, depois de historiciar o conceito de Terceiro Setor e apresentar uma interessante visão do presente e futuro de entes da sociedade civil, como ONGs, bem como detectar novas formas de atuação social (serão destacadas mais abaixo).
A participação do ministro Gilberto Carvalho era aguardada por ser mais uma oportunidade para o governo federal deixar claro que os serviços públicos oferecidos pelas ONG são uma conquista da sociedade brasileira e vão continuar. O ministro não só fez isso, como reafirmou a aposta do governo na democracia participativa, como forma de complementar a democracia representativa. A fim de inibir os desvios e o uso indevido de recursos, além do novo marco regulatório, Carvalho destacou a parceria com o Ministério Público, o investimento na Polícia Federal e a criação da Controladoria-Geral da União (CGU), como mecanismos de controle do uso de cada centavo do dinheiro público, inclusive dos recursos destinados às ONGs.
Outra mudança preconizada pelo ministro Carvalho é a da lei da doação. Ele citou o exemplo absurdo do que aconteceu com o escritor e fazendeiro Raduan Nassar, que “doou uma fazenda equipada para a Universidade Federal de São Carlos e teve que, imediatamente, pagar 400 mil reais de imposto” (ele se referia à fazenda Lagoa do Sino, de 643 hectares, em Buri, SP). Na saída do auditório Simón Bolívar, depois da sua palestra, o ministro Gilberto Carvalho foi perguntado sobre a afirmação de FHC (acima), ao que respondeu que “seria injusto criminalizar todas as ONGs, mas entende a fala do ex-presidente pela incidência de irregularidades, mas essas incidências acreditamos que sejam exceções, e elas estão recebendo o devido combate”. E, nesses ponto, ele concorda com o ex-presidente Fernando Henrique de que as ONGs não substituirão o insubstituível – a democracia representativa – mas sim ampliarão seus efeitos.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (na foto, tendo ao lado Antonio Carlos Pannunzio e, ao fundo, Celso Lafer), como sempre, deu mais uma aula sobre o tema que lhe pediam analisar. Iniciou, porém, afirmando que esse era um assunto que sua mulher, Ruth Cardoso, entendia como ninguém. E que “pessoas que tiveram a formação como a minha, de sociólogo, têm dificuldade de perceber o micro. Só pensam no macro, em blocos, em classes em conflito, em governos que representam ou não certas classes.” E não enxergam o pequeno, que é, talvez, de onde vem a mudança.
FHC lembrou que esse termo, “Terceiro Setor”, foi cunhado pelo banqueiro e filantropo americano John Davison Rockefeller III (1906 – 1978), que falava de uma força social que não era o Estado nem as empresas, mas sim formada por doações e trabalho voluntário. Nos anos 80, ele participou de várias reuniões na Europa para discutir esse novo sujeito histórico que se pronunciava, que não estava ligado nem ao mercado nem ao governo e era formado por pessoas que se organizavam para obter recursos – públicos ou privados – para usá-lo no interesse público. O que ficava claro desde então era que, para mudar a sociedade, o Estado apenas não bastava. A partir dessas discussões, chegou-se a uma definição positiva: o terceiro setor era um espaço de participação aberto pelos próprios cidadãos, o espaço da liberdade e da diversidade.
Segundo FHC, por receber, muitas vezes, dinheiro público para fins públicos, a ONG estabelece uma relação muito delicada com o Estado. Este pode dar o dinheiro, mas não dizer o que fazer. A questão é como não ser
manipulada pelo Estado? Até por uma questão cultural, o funcionário público – o governante – encarregado de repassar os recursos às entidades não governamentais tem dificuldade em aceitar que a decisão final sobre o uso do dinheiro não é dele. Isso sem falar nas questões propriamente de corrupção, que são caso de fiscalização e punição.
O ex-presidente cita o caso da ONU que, ao discutir a maioria dos temas da agenda internacional, incorpora entidades que não são Estados. Mas na hora de votar, elas não têm legitimidade e ficam de fora. Quem vota são sempre os Estados. Coloca-se aí a questão da legitimidade: como se avalia a relevância de uma organização? Afinal, quem tem a legitimidade dada pelos votos são os governantes… Outro exemplo é o da Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, cujo Conselho de Administração é presidido pelo próprio Fernando Henrique Cardoso. Os recursos dessa Fundação vem do Estado, mas ela é gerida por um grupo de pessoas que não são funcionárias do Estado. Isso gera uma relação tensa entre as partes. A questão é: quem transfere legitimidade dos representantes do Estado (eleitos) para o privado?
Após essa problematização, FHC citou um exemplo bem sucedido de parceria público-privado: o combate à AIDS. O programa brasileiro de combate à Aids é referência mundial. Seu sucesso se deve basicamente a quatro decisões políticas: 1ª) o tratamento seria gratuito para todos, sejam ricos ou pobres, pois todos são iguais perante a lei; 2º) haveria uma corajosa campanha anti-estigmatização; 3º) haveria uma ampla e ousada campanha de divulgação dos métodos de prevenção; e, finalmente, mas não menos importante, 4º) haveria uma parceria com as instituições dos próprios audéticos e grupos de risco.
Mas o mundo atual é dinâmico e novas formas de colocar as pessoas em contato têm surgido. O sociólogo Fernando Henrique identifica organizações evanescentes de pessoas em torno de uma causa. Elas se formam na internet e depois podem se dissolver. As pessoas, hoje, não precisam mais de organizações estáveis para atuar socialmente. A vida está mais complexa. Na verdade, segundo FHC, sociedade atual escapa da divisão estrita entre Estado, Empresas e Terceiro Setor.
Além das mobilizações esporádicas ou temporárias, muitas delas surgidas a partir da internet (os exemplos são muitos, como o “ocupe Wall Street”, a “primavera árabe”, as “marchas contra a corrupção” no Brasil…) e sem organizações estáveis por detrás, há outras formas de participar da história contemporânea. FHC cita uma emblemática. Ele foi convidado por Nelson Mandela a fazer parte do grupo “The Elders” (formado ainda por Desmond Tutu, Mary Robinson, Jimmy Carter, Martti Ahtisaari, Ela Bhatt, Lakhdar Brahimi, Gro Brundtland, Graça Machel e Kofi Annan), cuja missão é contribuir com a sua experiência, conhecimento e contatos para a paz mundial e os direitos humanos. O grupo não é governamental, nem é propriamente uma ONG, mas tem conseguido certos avanços nos processos de paz em lugares tão díspares como Coréia do Norte, Israel, Zimbábue, Quênia e Sudão.
Sob a coordenação de Airton Grazzioli, Promotor de Justiça de Fundações da Capital, do Ministério Público do Estado de São Paulo, o congresso reuniu autoridades, como a prefeita em exercício de São Paulo, Alda Marco Antonio, o secretário de Cultura Andrea Matarazzo, o ex-ministro Celso Lafer, o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Cláudio Hummes (na foto acima, com FHC), Lama Rinponche (foto acima) entre outras autoridades. Todos foram recebidos pelo presidente do Memorial, Antonio Carlos Pannunzio.
Fotos Daniela Agostini e Cesar Rocha