Por Adriana Kanzepolsky*
Ao comemorar os cem anos de Clarice Lispector, a Revista Nossa América lembra de outras escritoras da América Latina, como Sóror Juana, Gertrudis Gómez de Avellaneda e Victoria Ocampo
Talvez seja adequado começar com as seguintes perguntas: do que se fala quando se fala de literatura feminina? Quais são os pressupostos implícitos nessa expressão?
A expressão literatura feminina obviamente remete a um conjunto de textos escritos por mulheres, textos de autoria feminina. Mas, simultaneamente, essa expressão pressupõe uma parte da literatura que reivindica e merece sair de um espaço de sombras, de invisibilidade a que esteve condenada na literatura hispano-americana, escrita em castelhano ao sul do rio Bravo. Além disso, ao fazer o recorte de uma literatura feminina dentro do amplo universo da literatura, como em qualquer recorte, está se enfocando um sistema de diálogos e de buscas comuns, seja na forma, seja na temática – ou em ambas.
Embora a categoria literatura feminina já tenha sido formulada há algumas décadas, neste momento, e especificamente nos últimos anos, ela se associa ao que ficou conhecido como politicamente correto e aos novos feminismos contemporâneos. Feminismos cuja expressão conquista alta dose de visibilidade nas redes sociais e nas mídias mais tradicionais, como a televisão, com a circulação de textos acadêmicos ou ensaísticos, a proliferação de informações e imagens de protestos e manifestações.
Já que no contexto hispano-americano “o primeiro escritor” importante é a mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz (século XVII), seria redutor falar de literatura escrita por mulheres como um corpus singular com características específicas. No entanto, considero que vale a pena destacar a diferença com a qual as escritoras hispano-americanas foram lidas durante a colônia, ou já durante a república, bem como o modo como as mulheres são lidas na segunda metade do século XX ou talvez um pouco mais tarde.
Refiro-me a uma leitura que, já de início, considera a figura de Sóror Juana “excepcional”, atribuindo-lhe “dons masculinos”. Esse tipo de leitura carrega e alimenta um olhar que, em muitas ocasiões, infantiliza as mulheres escritoras do século XIX e de boa parte do século XX. Mas há protocolos de leitura e avaliação que não leem as obras de escritoras como produtos “menores” nem as analisam com “condescendência” – embora esse campo também configure um espaço de conflitos e disputas de autoridade quanto à interpretação das obras, ora lidas como representações de uma “minoria”, ora lidas da perspectiva de gênero ou da perspectiva da crítica feminista. Esse olhar aflorou com outros contornos ao longo desses três séculos em que a posição das mulheres dentro da literatura e da sociedade se modificou radicalmente, antes de se afirmar no mundo contemporâneo como campo da crítica séria, não filiada ao mercado ou a modismos.
Talvez também caiba enfatizar que, apesar de querer juntar-se ao corpus geral da literatura hispano-americana e ambicionar o reconhecimento de seus pares masculinos, muitas escritoras criam relações intelectuais com outras artistas mulheres, em reconhecimento à qualidade intelectual traduzida, no passado e no presente, em grupos letrados exclusivamente femininos, na escrita de prólogos, cartas e, inclusive, artigos críticos. Penso, portanto, na importância de estarmos cientes das mudanças nos protocolos de leitura de textos escritos por mulheres, mudanças essas que ocorrem tanto entre leitores masculinos como femininos.
Comecemos pelo princípio. Sóror Juana Inés de la Cruz, freira mexicana da Ordem de São Jerônimo, nascida em 1648 e morta em 1695, é a figura mais importante das letras hispano-americanas no século XVII e ocupa lugar central na literatura do subcontinente, inclusive na contemporaneidade. Criolla e bastarda, com “total negação para o casamento”, segundo suas palavras, desde muito jovem esteve ligada à corte do vice-rei da Nova Espanha como dama de companhia da vice-rainha. Autodidata, acaba por tornar-se freira, já que considerava o convento como “o mais decente que poderia escolher em matéria de segurança que desejava para sua salvação” – ainda que as obrigações comunitárias desempenhadas pelos conventos na época pudessem dificultar sua relação silenciosa com os livros.
Desde muito jovem, Juana entrou em contato com a corte e com a igreja, dois dos poderes mais importantes na época, determinantes em sua trajetória de vida e, em boa medida, em sua produção literária. Muitos de seus textos se inscrevem no universo da corte – em poemas que celebram o poder do vice-reinado, comemoram aniversários, nascimentos, batismos etc., ou a chegada de novos vice-reis. Sua escrita está também ligada à igreja, na produção de vilancicos e de outros textos escritos a pedido do conselho eclesiástico.
Autora prolífica, Sóror Juana experimenta as diversas formas de escrita barroca de estilo gongorino, com o repertório de temas próprios da poesia da época, em um espectro que vai dos poemas filosóficos-morais aos amorosos, um corpus textual em que se destaca o extenso poema filosófico Primero sueño, o único que, segundo declara, escreve por gosto próprio.
Sua figura projeta-se para além do âmbito dos leitores especializados, como demonstra uma carta de sua autoria, conhecida como Respuesta a Sor Filotea, em que Sóror Juana responde a uma reconvenção escrita pelo Bispo de Puebla. Este, sob o pseudônimo de Sóror Filotea, havia publicado um texto da freira (“Carta atenagórica”) com um prólogo escrito por ele, questionando-a por se dedicar a tratar de assuntos profanos. Em sua Respuesta, ela reivindica o direito das mulheres ao conhecimento e à possibilidade de transmiti-lo. Mantendo a racionalidade, narra episódios de sua vida que demonstram seu precoce e incessante desejo de saber e o desafio que isso sempre implicou, devido à condição de mulher no México colonial; um apetite que, na ânsia de saciar, a leva a se disfarçar de homem e mentir sua idade, entre outros “truques dos fracos”.
Apesar de sua fama e de seu reconhecimento, que estão no ápice no momento da publicação da Respuesta, a condição de mulher e freira, dependente dos poderes da época, aos que havia se submetido e simultaneamente questionado, finalmente fará pender a balança contra Sóror Juana. Censurada pelo poder eclesiástico, pouco depois ela renunciará definitivamente às letras e morrerá de peste alguns anos mais tarde. Embora seja certo que Sóror Juana gozasse de imensa fama em seu século, sua figura e seu nome se eclipsam no decorrer do século XVIII, do mesmo modo que toda literatura barroca na qual seus textos se enquadram.
Apenas no século XIX se volta a falar sobre escritoras mulheres na América Hispânica, no período de surgimento das literaturas nacionais, das quais participam mulheres escritoras, ainda que em posição marginal ou com reconhecimento relutante – condição que só nas últimas décadas começa a se modificar claramente com o resgate e a publicação dessas obras e com os estudos acadêmicos realizados principalmente por críticas mulheres.
Ao final do período colonial e nos primeiros anos da República vêm à luz importantes textos ficcionais, sobretudo romances, escritos por mulheres, como Aves sin nido (1889) de Clorinda Matto de Turner, considerado um precursor do indigenismo, ou o canônico Sab (1841-1842) da cubana radicada na Espanha Gertrudis Gómez de Avellaneda, uma história romântica anti-abolicionista que também tem sido lida como denúncia da “servidão” da mulher, tema este que a escritora retoma em Dos mujeres, romance que denuncia o problema da indissolubilidade do casamento.
Essas obras, romances de costumes próprios do Romantismo, correspondem aos modelos dos romances fundadores nas novas sociedades americanas e sofrem da mesma precariedade e dos mesmos méritos que os textos de autoria masculina; mas, expressam singularidade nos momentos que, às vezes de forma tangencial, introduzem a problemática da condição feminina na época.
Mesmo que durante o século XIX a produção ficcional dessas escritoras seja limitada, elas são autoras de corpus amplos de relatos de viagens, cartas, diários íntimos, autobiografias e memórias. São trabalhos em que registram sua participação mais ativa na vida social e política do momento, traduzida tanto no aumento de viagens a passeio como também nos deslocamentos causados por exílios políticos. Os textos dão conta dos conflitos sociais e políticos do momento em que pousam um olhar carregado de preconceitos da classe letrada, predominantemente formada por homens e, ao mesmo tempo, inscrevem sua subjetividade, muitas vezes de caráter romântico.
Entre essas escritoras gostaria de mencionar Mariquita Sánchez de Thompson que, em 1860, escreveu Recuerdos del Buenos Ayres virreinal, deliciosas memórias daquela capital colonial, assim como um extenso conjunto de cartas a familiares, às amigas, a políticos e letrados fundamentais na Argentina daquelas décadas, escritas de seu exílio em Montevidéu, e um diário dedicado a Esteban Echeverría, escritor romântico e exilado famoso. Neste, ela se detém sobretudo na situação política do país durante o governo de Juan Manuel de Rosas. Uma curiosidade: como vários românticos argentinos, Mariquita passa parte de seu exílio no Rio de Janeiro, entre julho de 1846 e julho de 1847. Após o deslumbramento inicial diante dos preços baratos, do bom tratamento que recebe, do luxo da corte e da beleza das paisagens, ela escreve uma quantidade abundante de queixas decorrentes das diferenças culturais e da saudade da Argentina.
Cabe mencionar também a Marquesa de Merlin, cubana radicada na Espanha e posteriormente na França, autora de Mis primeros doce años, autobiografia de infância, gênero incomum na América Hispânica durante o século XIX, e de Viaje a La Habana, uma série de cartas em que combina a primeira fascinação do retorno ao país natal com um quadro dos costumes da sociedade cubana da época. Trata-se de uma sociedade em cujo centro está a escravidão, diante da qual a escritora repete as contradições da elite branca da época: a necessidade de acabar com o tráfico, mas sem a abolição da escravatura. Consciente do horror dessa prática, inicia uma das cartas com o seguinte comentário: “não há povo em La Habana: não há mais que amos e escravos” – a naturalização da servidão traduz-se em inúmeros comentários que pontuam suas cartas.
No século XX, à medida que avançam as décadas, o número de escritoras mulheres cresce de maneira substancial em conjunto com a consolidação das literaturas nacionais no continente. Por isso, não é fácil traçar um panorama minimamente representativo e equilibrado do século como um todo. Mas é possível mencionar que as escritoras mulheres transitam por todos os gêneros e estão presentes nas literaturas nacionais de todos os países hispano-americanos. Entre as poetas, há nomes como Alfonsina Storni (Argentina), Fina García Marruz (Cuba), Gabriela Mistral (Chile), entre outras, que ingressam na literatura na primeira metade do século. Nesse período também se destacam as romancistas Teresa de la Parra, venezuelana, María Luisa Bombal, chilena, e as argentinas Nora Lange, romancista e autobiógrafa, e Silvina Ocampo, contista e poeta.
No século passado escritoras e intelectuais mulheres não se circunscreveram à prática da escrita; também participaram ativamente de conselhos editoriais de revistas literárias, atividade em que se torna iniludível o nome de Victoria Ocampo, que idealiza, funda, dirige e financia a revista Sur, publicada na Argentina entre 1931 e 1992. Ao longo das décadas de 1930 e 1940, a revista Sur foi um farol para os escritores do continente e para outros periódicos literários do restante da América Hispânica. A revista, importante agente modernizador da literatura argentina, foi um espaço fundamental para a publicação de autores como Borges, Bioy Casares, Ernesto Bianco, entre outros argentinos, e para divulgação, na mesma medida, de escritores franceses e norte-americanos contemporâneos. Vale notar que Vitória Ocampo acolheu vários intelectuais e escritores franceses durante a Segunda Guerra Mundial. Em sua Autobiografia, publicada logo depois de sua morte, em 1979, relata claramente tanto seus privilégios por ter nascido na oligarquia latifundiária, como os obstáculos e resistências, sobretudo familiares, que sua condição de mulher obrigou-a a enfrentar para ingressar no mundo da cultura.
Ao refletir sobre a produção e publicação de textos escritos por mulheres durante o período de meados do século passado até o momento atual, torna-se ainda mais difícil, senão impossível, dar uma ideia aproximada de nomes, estilos, temas e gêneros predominantes. Entre as escritoras já canonizadas, pode-se mencionar a poeta Alejandra Pizarnik, a romancista Elena Poniatowska, ou a dramaturga Griselda Gambaro; vale citar também aquelas não tão conhecidas do público mais amplo, mas bastante estudadas na academia, como Margo Glantz, Sylvia Molloy, Tamara Kamenszain, Tununa Mercado, María Negroni ou María Moreno, sem esquecer de autoras menos conhecidas, como Virginia Cosin, María Martoccia ou Romina Paula, entre outras. Mas sabemos que qualquer enumeração ou seleção é subjetiva e nela sempre intervêm o universo que conhecemos e o gosto pessoal – o que se torna ainda mais exacerbado e potencializado quando tratamos da contemporaneidade estrita. Portanto, várias das escritoras contemporâneas citadas são as que mais leio e a cujos textos volto com frequência.
Assim como apontei no caso das romancistas do século XIX, as autoras hispano-americanas contemporâneas participam de buscas similares às dos escritores homens e dialogam fortemente com eles. No entanto, algumas delas escrevem não só ficção, produzem ensaios em que refletem sobre o corpo, o erotismo e as práticas femininas, em um espectro que vai desde a roupa, as práticas e trabalhos tradicionalmente femininos, mas também sobre a produção de outras mulheres. Esses temas são tratados com irreverência e humor por Margo Glantz, por exemplo, e com delicada atenção ao mínimo e ao detalhe por Tununa Mercado. Há ainda a escritora argentina Sylvia Molloy, traduzida no Brasil, que em alguns de seus textos (En breve cárcel y Desarticulaciones) enfoca a relação amorosa entre mulheres.
*Graduada em Letras pela Universidad Nacional de Rosario (1986) e doutora em Letras (Literatura Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São Paulo (2001), com pós-doutorado em Teoria Literária, pela Universidade de Campinas (2004). Atualmente é professora doutora da Universidade de São Paulo na área de Literaturas Estrangeiras Modernas.