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A Galeria Marta Traba inaugura a mostra “Arte Lusófona Contemporânea”, que reúne artistas das nações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que, assim, dialogam com a produção artística hispano-americana. Participam Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. A exposição tem abertura no dia 27 de maio, a partir das 19h, com bate-papo com artistas e curadores.
É claro que o Brasil, o maior e mais populoso dos países falantes de português, não podereia ficar de fora e tem importante participação. Entre os criadores escolhidos para nos representar, está o baiano Ayrson Heráclito (foto ao lado). Ele traz uma instalação que, por seus pressupostos conceituais, vai fundo na origem do Brasil: por meio do uso surpreendente de um elemento orgânico – o azeite de dendê – ele plasticamente investiga e comenta as origens étnica e culturais do Brasil. Ayrson traz ao Memorial vídeo e duas fotografias que, de maneira estilizada, registram performances de modelos nas quais o elemento central é “o azeite de dendê, para se pensar o ethos cultural do baiano”. Essa montagem é fruto de uma “pesquisa de mais de 10 anos, que representa o povo e diversos momentos da nossa cultura num diálogo com a contemporaneidade”.
Antes desse trabalho com o azeite de dendê, tão peculiar de sua terra natal, Ayrson trabalhou com açúcar e com a carne de charque. O vídeo “Barrueco” (4’38”, 2004), em parceria com o videomaker Danillo Barata, fala um pouco de seu universo de trabalho, pensando não só na origem como no deslocamento atlântico. “O azeite de dendê tem essa fluidez atlântica, ele ‘emblematiza’ a nossa síntese cultural, que não é de uma África, mas sim de um fenômeno resultante dessa mestiçagem, desde os porões dos navios negreiros e a origens no Atlântico, útero gestor, afro-brasileiro do oceano cultural da diáspora moderna. A Bahia cheira dendê”, diz ele algo barrocamente.
Esse material é de extrema importância não só na culinária, mas também nas comidas sacrificiais oferecidas para as divindades de origem africana do candomblé. Essa polissemia possibilitou ao artista uma abordagem original das questões que o preocupam, que repensa a nossa História e os fenômenos que se constituem brasileiros.
As fotografias (Odé com Ofá, 160x110cm 2009; e Yaô no epô 160×110 cm 2009) que Ayrson expõe na Galeria Marta Traba, junto ao vídeo “Barrueco”, foram tomadas no contexto das performances que ele promoveu em torno da matéria dendê. Os vídeos e imagens que cria sempre partem de ações práticas. Em estúdio, faz a manipulação/reinvenção/resignificação, gerando instalações ou objetos. “O dendê é símbolo da gastronomia, ele tem uma etnografia vastíssima, que estudo há muito tempo e cultivo na religião do candomblé, em que sou iniciado, e aí, o dendê, vem justamente para tornar vivo esse corpo. Utilizo o dendê como um fluido, faço referência aos três fluidos vitais do homem, que é o sêmen, o sangue e a saliva (foto neste parágrafo). Os três fluxos, o sangue, que alimenta, a saliva, a própria comunicação, possibilita comunicar e trocar culturas, e a vitalidade e a fertilidade, possibilitam a transformação e a procriação….”
Sua arte com dendê foi exposta pela primeira vez na 3ª Bienal do Mercosul. Ele ficou fascinado com a ideia de transportar mil litros de azeite de dendê para Porto Alegre, um lugar culturalmente muito distinto da sua Bahia. “Esse deslocamento foi fantástico. Eu fui extremamente bem recebido pelos grupos afro-brasileiros de Porto Alegre, que até então, na minha educação formal, não tinham muita visibilidade”.
A instalação de 3 toneladas ficava em um pavilhão no Centro Cultural Santander. Foi preciso o engenho de um calculista para calcular a resistência necessária do vidro sob pressão. “A obra ‘emblematiza’ essa ideia de como no Brasil há esse fenômeno da diversidade que não apazigua nossos conflitos sociais”.
Outro material orgânico usado por Ayrson é a carne. Esse projeto acabou tornando-se, posteriormente, um projeto social. Com todo o refugo desse trabalho, quilos e quilos de carne, começou a investir numa campanha contra a fome, em 2000, e tentou apresentar esse projeto pra algumas indústrias alimentícias. Ayrson conta que foi muito curioso porque, brincando, manipulou essa coisa da escultura social. Propôs e foi aceito para participar de um dos eventos de moda de maior visibilidade no nordeste, que é o Barra Fashion, promovido pelo shopping Barra, de Salvador.
O trabalho acabou tomando uma proporção imensa, saiu no programa Fantástico, da Rede Globo, porém, com um esvaziamento de sentido, o que considera próprio da mídia, diminuindo a questão política do trabalho. Na verdade, o desfile era pra vender a coleção e projeto todo – que envolvia a criação de camisetas e brindes para a campanha contra a fome associada a algumas instituições em Salvador . “Então a ideia era fazer uma exposição, era trazer essa coisa da fome e da miséria, e a carne tinha a ver com esse corpo cultural, sobre o qual o meu trabalho se debruça. Entender esse sangue cultural.”
Acompanhe uma rápida entrevista com Ayrson Herácltio:
Há quanto tempo você trabalha com arte?
Eu sou da geração 80, comecei a trabalhar em 86, com vídeos (VHS), já buscando um formato experimental, mas a partir da década de 90 é que esses materiais orgânicos começaram a aparecer na minha obra para eu pensar no meu lugar no mundo, no próprio mundo, no meu território e ao mesmo tempo no global. Comecei, por meio de um processo de sistematização acadêmica, que foi produto do meu mestrado pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano, com uma dissertação acerca desses materiais.
E quais outros matérias orgânicos você utiliza?
Para se pensar na gênese, utilizei diversos tipos de açúcar (1ª foto). Foi um trabalho em que eu me debruçava sobre o nosso passado colonial, a decadência promovida pelo período colonial, quando duas ordens adversas, a ordem monárquica do antigo estado se confronta com os valores da burguesia da máquina mercante.
E por que usar carne de verdade em sua obra?
Posteriormente, já debruçado nesse processo pra pensar a cultura, me veio a carne de charque. Foi um trabalho em que eu me debrucei mais sobre os maus-tratos, das nossas feridas em relação à escravidão. Trabalhei com relatos de torturas contra negros de um donatário, um tirano chamado Garcia D’ávila Pereira de Aragão. Ele foi julgado e condenado à Inquisição. Os autos da Inquisição ficaram séculos no anonimato na Torre do Tombo em Portugal. Um antropólogo baiano na década de 80 descobriu e publicou esses altos que até hoje são os relatos mais bizarros que descrevem com mais detalhes todo o requinte dos maus- tratos sofridos pelos escravos.
A ideia de trabalhar com a carne surgiu justamente para “emblematizar”, esse corpo resistente, que vem dessa dinâmica do escravo, do nordestino, da carne seca, uma carne que no nordeste brasileiro você come parcimoniosamente porque não é perecível, é uma carne resistente. Pensando nisso, comecei a fazer uma série de intervenções onde eu usava carne, foi um trabalho polifônico, também, teve vários desdobramentos que envolviam rituais, performances, instalações, esculturas, vídeos. Criei uma segunda roupa feita com essa carne.”
Ayrson reconhece que não é uma novidade na história da arte a criação de obras a partir da carne, mas que, naquele momento, foi uma estratégia muito importante.
Com essa carne, que agora estava externa, resistente, eu pude realizar uma série de ações, com fogo e ferro, tivemos um churrasco humano. Então, reproduzi de certa forma imagens do que era feito realmente com os negros. À compilação dessa série de trabalhos chamei ‘Teatrologia da Escravidão’. A carne tinha essa dimensão.”.
E depois da Galeria Marta Traba, o que vem pela frente?
“Paralelo à Marta Traba, tem uma galeria muito interessante, que a gente descobriu fora do Brasil, e agora tem dentro do Brasil também, que é a Soso (http://www.soso-artecontemporaneaafricana.com). Ela trabalha com artistas africanos e com artistas da diáspora. Foi reconhecido que meu trabalho representava de certa forma, na contemporaneidade, essa diáspora africana. Também tenho um projeto para apresentar em Berlim, em setembro. É uma performance que apresentei no MIP (Mostra Internacional de Performance), em Belo Horizonte, esse ano. Terá uma grande mostra de performance em Berlim e eles querem um trabalho muito complexo, uma performance de duas horas. É um trabalho que fala sobre comidas sacrificiais, em que crio uma espécie de iconografia dos 12 principais deuses africanos que reverberam com mais constância no Brasil e na Bahia. Associo os doze orixás às comidas oferecidas a eles e às “cabeças” (ritual de iniciação no Candomblé) de determinadas performances (três fotos acima).
Serviço:
Arte Lusófona Contemporânea
Abertura: 26 de maio às 19 com bate-papo com artistas e curadores
Período: 27 de maio a 10 de julho
Galeria Marta Traba
Fundação Memorial da América Latina
Terça a domingo, das 9h às 18h
ENTRADA FRANCA