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As coisas não têm paz. Toda última sexta-feira do mês no Memorial uma Conexão Latina confirma o verso de Arnaldo Antunes. Em outubro, será a vez de Luiz Melodia e o quarteto uruguaio Tungue Lê. É dia de trazer namorado, marido, amiga. O show conecta diferentes linhas musicais, que brigam, brincam, conversam no palco. Expandem o universo musical. De um lado, o som brasileiro quase sempre filho ou neto da batidinha precisa da Bossa Nova, mas também afeito a ritmos regionais e à fluência e influência internacionais. Do outro, o timbre metálico da voz e da música de nuestros hermanos, que nasceram para bailar. Ou a melodiosa milonga e o tango austral, presupoesto.
As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo. Nessa sexta, 26 de setembro de 2008, tinham a forma e a densidade do cantor, compositor, escritor e dançarino Arnaldo Antunes, conectado ao bem humorado peruano Chocolate Riveros e Los cajones, com direito a trupe de dançarinas e tudo o mais.
Chocolate apresentou a música afro-peruana. Som percussivo de uma maneira inusitada, com instrumentos à primeira vista estranhos, mas que funcionam bem. Simples caixas de madeiras, los cajones, são ao mesmo tempo banco e instrumentos musicais. Os percussionistas literalmente sentam em seus instrumentos para tocá-los. Havia também las cajitas (caixinhas), de som mais agudo, que parecem panelas retangulares com tampa. Chocolate também tocava uma queixada de burro, a quijada. São instrumentos ancestrais de um modo de vida primevo.
Se os peruanos apontavam para a tradição, eles tiveram ao seu lado um homem contemporâneo. Arnaldo Antunes faz parte do lado bom de São Paulo, sobre o qual pouco se fala. Saiba: todo mundo teve infância. Antunes é um menino da zona oeste que estudou letras na USP. Suas músicas e poemas aparentam ser simples, mas escondem uma complexidade e sofisticação que vem do diálogo com a tradição filósofica. Casa verso de Antunes é uma sentença, um jogo com uma proposição filosófica. “Que não é o que não pode ser… que não é…”, por exemplo, remete a Parmênides, na Magna Grécia, há 2500 anos, que declarou: “O ser é, o não ser não é”. Ésta é a origem do pensamento idealista ocidental.
No site oficial de Antunes há um texto escrito por ele para o prefácio do livro “Não”, lançado por Augusto de Campos, pela editora Perspectiva, em 2003. Antunes cita o filósofo Ludwig Wittgenstein e sua célebre frase, que encerra o "Tratactus Logico-Philosophicus": “O que não se pode falar, deve-se calar”. Antunes continua: “no extremo mais extremo dessa (im)possibilidade, para onde a filosofia ou a fala de todo dia apenas apontam, sem alcançar, emerge a linguagem-coisa de Augusto de Campos. Entre falar e calar, seus poemas parecem dizer o indizível, por não tentar dizê-lo, mas realizá-lo através da linguagem.” Nâo parece que Arnaldo estava comentando sua própria obra?
O gestual, a coreografia de Antunes também é muito mais do que aparenta. Não é a dança desingonçada de um cara sem jeito. O artista colombiano Santiago Plata, que expõe neste momento na Galeria Marta Traba, comentou no final do show: “o movimento dele com o corpo remete e evoca a dança de nossos ancestrais”. Santiago percorreu mais de 35 mil quilómetros de bicicleta, em busca de vestígios dos homens das cavernas. Encontrou sítios arqueológicos com gravuras rupestres intactas em várias partes da América do Sul. Sabe do que está falando.
Mesmo quando Antunes se torna mais lírico – tenho certeza de que daria certo eu e você, você e eu por perto – o pulso ainda pulsa. As pessoas que lotaram o auditório Simon Bolívar sentiram a pulsação da massa sonora vigorosa do grupo de Antunes, que não parece com nada, só com ela mesma. Pois se você quiser, me viro como for, para que seja bom como já é.