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Houve um tempo em que as pessoas cristãs rezavam rezas diferentes a cada fase do dia. Para evitar confusão surgiu o “livro de horas” no final da Idade Média. Eram publicações individuais, usadas em um momento íntimo. Os livros eram feitos individualmente, de forma artesanal, pois ainda não havia sido inventada a prensa móvel. Naturalmente, os poderosos daquela época mandavam fazer “livros de hora” ricamente ilustrados, com iluminuras bordadas a ouro e filigranas populares na época (sécs. XIV e XV).
Uma publicação que se tornou famosa por sua beleza e complexidade é o “Livro de Horas de Dom Fernando”, rei de Portugal, crivado de iluminuras atribuídas ao pintor italiano Spinello. Trata-se de um dos tesouros do acervo da Fundação Biblioteca Nacional. O artista plástico e professor Evandro Carlos Jardim, o professor Luiz Armando Bagolim e o fotógrafo João Busa ministrarão palestra para falar não só do livro em si, como dos bastidores técnicos, estéticos e conceituais da produção de fac-símile dessa obra.
Escritos geralmente em latim, os livros de horas recebiam tal nome por obedecerem à sequência das horas canônicas estabelecida pela Liturgia das Horas nos breviários dos clérigos. O tema central é o culto à Virgem Maria, a expressão mais popular de fé e de piedade na Idade Média, e o grande atrativo, do ponto de vista artístico, dos livros de horas são as ilustrações: as miniaturas (desenhos, letras ornadas, vinhetas, cenas) e as iluminuras (desenhos com abundância de cores e aplicação de ouro e prata para realçar os detalhes).
A edição do fac-símile “Livro de Horas de Dom Fernando” (possivelmente do ano de 1378), com tiragem reduzida de apenas 250 exemplares, é uma parceria da Fundação Biblioteca Nacional e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Além das orações em latim com caracteres góticos, que compõem o volume, na caixa acompanha “A imagem e a semelhança: o Livro de horas de Dom Fernando”, publicação com ensaios de Vera Lúcia Miranda Faillace a respeito dos livros de horas e uma reflexão de Luiz Armando Bagolin sobre o trabalho do pintor e do fotógrafo na utilização de cores e luz, que se aproxima da qualidade do original Bagolin ainda constrói um memorial em torno da produção do livro, anotando detalhes do estudo de cores e das discussões a respeito da aplicação de ouro ou tinta metálica na impressão.
O códice encomendado por dom Fernando, rei de Portugal, desperta enorme interesse nos pesquisadores por sua beleza, elevada qualidade artística e história. Os motivos de este ser o destaque da coleção de livros de horas da Biblioteca Nacional tornam-se evidentes ao se folhear esta edição. “Imagens e cercaduras magníficas, miniaturas, bordaduras, iluminuras, sutilezas de cores se desdobrando em semitons, o realce do lápis-lazúli e o ouro aposto sem parcimônia sobre o pergaminho, reproduzidos com excelência na edição fac-similar” destacam-se no manuscrito iluminado, conforme Hubert Alquéres, ex-diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
Livros de preces destinados aos leigos, os livros de horas remontam à Europa medieval – surgiram a partir do século XII e tiveram seu apogeu entre 1350 e 1480, no período chamado de Baixa Idade Média. Mantiveram sua popularidade até o século XVI mesmo com o aparecimento e desenvolvimento da imprensa, que copiou boa parte dos padrões e imagens destas pequenas obras de arte. Eles retratam o surgimento de uma nova espiritualidade mais intimista e individualizada, que teve seu ápice no século XIII, com a reforma franciscana. Isso se evidencia na forma desse livro não litúrgico, para devoção privada e livre de controle ou revisão pelas autoridades eclesiásticas.
“Fora a parte devocional, os livros de horas exerceram, na Idade Média e no Renascimento, um papel de suma importância social, servindo para o ensino da leitura nas residências abastadas e da nobreza”, conta Vera Lúcia Miranda Faillace em seu texto “Os livros de horas da Biblioteca Nacional”. Ela ainda explica que eles eram reveladores de riqueza, figuravam nos testamentos e inventários como peças de alto valor e serviam como presente do noivo para sua prometida e para os monarcas em ocasiões solenes, como sua coroação.
Se por um lado a beleza dos ornamentos do original surpreende os conhecedores do “Livro de horas de Dom Fernando”, por outro ela representou o maior desafio na edição do fac-símile. Em “O verbo e a luz”, Luiz Armando Bagolin discorre a respeito da luz e das cores na obra de arte e dos pigmentos utilizados nas iluminuras. “Instrumentalizada, a luz que ambos, fotógrafo e pintor, costumeiramente manipulam está imersa nas coisas, determinando-as como formas, figuras, e suas qualidades, simetria, claro-escuro, brilho, transparência etc., que são determinações de determinação maior, qual seja, a expressividade”, diz.
Também registra, neste texto e em seu Pós-escrito, os processos realizados pelo fotógrafo João Musa para conseguir reproduzir com fidelidade a riqueza de tons do original – a separação do desenho de uma cena em layers pelo computador, para o tratamento individual de cada uma delas. “De imediato nos pareceu que havia problemas quanto à reprodução de alguns vermelhos, verdes e azuis”, escreve a respeito da primeira versão as imagens fotografadas. “Musa nos explicou a dificuldade que teve em fotografar o livro, principalmente porque, em se tratando de pergaminho, muito absorvente quanto à luz, havia em sua superfície uma série de microrrelevos que desapareciam ou eram atenuados com a colocação de uma lâmina de vidro”.
Serviço
Palestra “Dom Fernando e o Livro de Horas”
16 de junho, quinta, 19h
Biblioteca Latino-Americana Victor Civita