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70 anos de Pedro Páramo

O romance de Juan Rulfo segue como uma das maiores referências da literatura latino-americana e mundial

Por Leonardo Nascimento

Há setenta anos, em 1955, o México conhecia Pedro Páramo, o romance que transformaria a literatura latino-americana. Escrita por Juan Rulfo, um homem nascido em meio à violência que assolou o país durante a Revolução Mexicana e a Guerra Cristera, o livro conduziu o leitor a Comala, um vilarejo assombrado por vozes e memórias. Em pouco mais de cem páginas, Rulfo reinventou a forma de narrar, dissolveu as fronteiras entre o real e o imaginário e deu voz ao México esquecido do campo. Sete décadas depois, Pedro Páramo continua a reafirmar o poder da literatura, capaz de transformar a ausência em permanência.

Nascido em 1917, no estado mexicano de Jalisco, Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno testemunhou grandes acontecimentos da época: os anos após a Revolução Mexicana (1910–1917), um dos conflitos sociais mais importantes da América Latina, que derrubou o regime autoritário de Porfirio Díaz e resultou na promulgação da Constituição Mexicana de 1917. O governo pós-revolucionário, no entanto, resultou em outro importante movimento: a Guerra Cristera (1926–1929), um levante popular como reação dos fiéis católicos às imposições do Estado à Igreja. Ambos os conflitos, munidos de violência, moldaram vidas, inclusive a de Rulfo.

Teve uma infância conturbada: aos seis anos, viu seu pai ser assassinado em um conflito fruto dos combates à época. Sua mãe, psicologicamente abalada, faleceu quatro anos depois. Aos dez anos, teve acesso à extensa biblioteca do padre Irineo Monroy, professor de sua escola e rígido censor eclesiástico. Monroy visitava casas e recolhia publicações que julgasse ilícitas ou imorais perante a Igreja, armazenando-as em sua biblioteca particular. Ao falecer, os livros foram realocados para a casa de Rulfo, que vivia com os avós desde a morte dos pais. Foi então que a literatura se tornou um hobby e um alívio para suas fraturas emocionais.

A Planície em Chamas (1953) marcou a estreia literária de Juan Rulfo. Por meio de catorze contos, reunidos em um único livro, retrata a brutalidade e violência do México rural. A coletânea de contos ganhou reconhecimento da Rockefeller Foundation, instituição estadunidense de fomento à arte e cultura mundial, que concedeu ao escritor apoio financeiro para dedicação integral à escrita. Dois anos depois de seu primeiro livro e poucos meses após o investimento da instituição, nascia Pedro Páramo (1955), romance que, apesar do fracasso comercial nos primeiros anos, se tornaria uma obra de prestígio mundial.

Rulfo, embora próximo da literatura, resolveu se entregar à fotografia de corpo e alma. Entre 1930 e 1960, viajou por todo o México com uma câmera em mãos e fotografou a arquitetura, as pessoas e as diversas paisagens do país. Ao todo, mais de 6 mil imagens compõem seu portfólio como fotógrafo, o que lhe rendeu elogios e exposições fotográficas. Dedicou ao Instituto Nacional Indígena do México os seus últimos vinte anos de vida, onde realizou importantes coleções de antropologia sem saber que, em 1986, aos 68 anos, um câncer de pulmão tiraria sua vida.

Em Pedro Páramo (1955), a economia de palavras contrasta harmoniosamente com a densidade simbólica da obra. Em cerca de 120 páginas, o livro nos leva diretamente à Comala, cidade fictícia que Juan Preciado viaja para encontrar o pai que nunca conheceu: Pedro Páramo. Ao chegar ao vilarejo, descobre que Comala é um lugar fantasmagórico, habitado por murmúrios, vozes e lembranças de mortos. Aos poucos, ele percebe que todos ali estão ligados ao poder despótico de seu pai, que controlava a região                        com violência e indiferença.

Disruptivo à época, o romance traz uma narrativa fragmentada e rompe com a clássica linearidade ao introduzir múltiplas vozes, mistura mortos e vivos, alterna entre sonhos e realidade. O texto colapsa o tempo, faz o passado e presente coexistirem e dialogarem. A obra condensa temas como a morte, a memória coletiva e o fracasso das promessas revolucionárias. Críticos entendem esse livro como um “romance de silêncios”, que pode carregar diversas interpretações: o silêncio estético, que fragmenta as vozes da obra, o silêncio histórico e social, que remete a um México de promessas não cumpridas, e ao silêncio do próprio autor, que nunca mais voltou a publicar outra obra de ficção.

Rulfo foi frustrado pelo fracasso comercial de Pedro Páramo no início. Poucos compraram o romance e o número de exemplares doados ultrapassava o de vendas. O público à época não estava preparado para um romance com uma proposta contrária ao que era comum. A literatura mexicana pós-revolução fomentava a construção de identidade nacional, sempre em busca de simbolizar coragem, sacrifício e luta pelo coletivo por meio de seus personagens. Esse estilo de escrita, incentivado pelo governo, legitimava o projeto político do Partido Revolucionário Institucional (PRI), consolidado partido único pós-revolução, em prol da construção de uma narrativa oficial de progresso e união. O romance, no entanto, toma um caminho contrário ao das Novelas da Revolução, como eram denominadas as obras que exaltavam a Revolução Mexicana. Como Gregorio López y Fuentes (1897–1966), com El Indio (1935), que retratava a integração dos povos indígenas ao novo estado ou Mauricio Magdaleno (1906–1986) com El resplandor (1937), que apresentava o campesinato como herdeiro moral da revolução.

Na década de 1960, com o surgimento do boom latino-americano, ou seja, a literatura da América Latina deixando de ser considerada exótica e sendo reconhecida e traduzida mundialmente, Pedro Páramo logo começou a ser redescoberto e reverenciado. Escritores como Gabriel García Márquez (1927–2014), Carlos Fuentes (1928–2012) e Jorge Luis Borges (1899–1986) declararam admiração pela obra. Pesquisadores contam que García Márquez, autor de Cem Anos de Solidão (1967), leu o romance de Rulfo em uma noite e acordou transformado. 

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Carlos Fuentes, autor de A Morte de Artêmio Cruz (1962), reconhecia Rulfo como o fundador da literatura moderna mexicana. Para os admiradores da literatura, é possível perceber na obra de Fuentes o mesmo estilo de narrativa fragmentada e polifônica, em que o protagonista fala a partir da morte. Para ele, Juan Rulfo foi o precursor de um olhar ao México que ia além da nação e chegava à ferida que o país carregava. Mario Vargas Llosa (1936–2025), escritor peruano e dono de A Casa Verde (1966) e Conversa na Catedral (1969) também herdou a sobreposição de narradores e a não-linearidade de Pedro Páramo. Llosa admirava como o minimalismo expressivo de Rulfo lhe concedia uma imensa densidade simbólica com poucas palavras.

Há, porém, um paradoxo que cerca a obra e vida de Juan Rulfo. Curiosamente, à medida que sua fama como escritor aumentava mundialmente, sua produção diminuía. Rulfo decidiu, sem razões exatas confirmadas, que Pedro Páramo, seu segundo livro, seria também sua última obra de ficção. Diversos estudiosos buscaram um porquê para o silêncio de Rulfo, como a depressão e melancolia provavelmente resultadas de uma infância violenta, o perfeccionismo que lhe fazia pensar que nada mais estava à altura de Pedro Páramo e até mesmo um esgotamento de ideias, mas nenhuma resposta definitiva.

Para Pablo Fernando Gasparini, letrólogo, docente da Universidade de São Paulo e professor de Letras pela Universidade Nacional de Rosario, há um preconceito mercadológico e neoliberal que cerca o ofício da escrita. “Se você é um escritor, então sempre tem que escrever, porque você é um escritor. Há um essencialismo romântico nisso”, exemplifica. “Se você é um escritor, tem que escrever um romance por ano ou um a cada dois anos. Tudo isso é pré-construído. É uma série de preconceitos que temos sobre a tarefa da escrita”, completa Pablo.

A literatura de Rulfo, que floresceu de um campo de guerra, exalta a criatividade latino-americana e atravessa fronteiras, influenciando escritores e colocando a América Latina como grande potência literária. Quando questionado sobre a atualidade da obra do autor mexicano, Pablo afirma que ainda é muito viva. “Rulfo é um monumento, é vivo, muito mexicano, porque realmente continua cativando a história e, nesse sentido, é um clássico”. 

Há sete décadas, as palavras de Juan Rulfo seguem vivas em bibliotecas, povoam salas de aula e arrebatam os corações daqueles que buscam experienciar uma realidade tão mística quanto a do autor. Por meio dos fantasmas de Comala, o autor segue lembrando que a literatura pode dizer aquilo que é indescritível e que há vozes que só sobrevivem quando alguém decide escutá-las.