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Rumo ao cosmos
O ponto em que a Terra se parte em silêncio, revelando a beleza única de um país que une culturas e histórias de tempos milenares
Por Kauane Rezende
A história da América Latina no espaço é escrita em capítulos de pioneirismo e persistência. O primeiro deles foi gravado em 18 de setembro de 1980, quando o cubano Arnaldo Tamayo Méndez se tornou o primeiro homem negro, o primeiro cubano e o primeiro latino-americano a romper a barreira do céu a bordo da missão Soyuz 38, em parceria com a URSS. Mais de duas décadas depois, o Brasil entrou na órbita com Marcos Pontes, o astronauta nascido em Bauru, São Paulo, que em 29 de março de 2006 embarcou na Missão Centenário. Durante oito dias na Estação Espacial Internacional (EEI), em uma homenagem aos cem anos do voo do 14-Bis de Santos Dumont, Pontes realizou uma série de experimentos científicos, orbitando a Terra 155 vezes.
A exploração espacial, no entanto, deixou de ser uma exclusividade de agências governamentais e acabou avançando em ritmo acelerado com inovações que transformam nossa relação com o cosmos. Nesse novo cenário, 16 anos após Pontes, o engenheiro civil mineiro Victor Correa Hespanha se tornou, em 2022, o segundo brasileiro a atingir o espaço e o primeiro turista espacial do país, a bordo de um voo suborbital da Blue Origin, após vencer um sorteio promovido pela Crypto Space Agency.
Atualmente, o Brasil volta a integrar uma nova e promissora corrida espacial. A Blue Origin, companhia aeroespacial do empresário Jeff Bezos, está em processo de seleção para seu próximo passageiro, por meio de um desafio conduzido pela SERA (Space Exploration & Research Agency) através do aplicativo Telegram. A missão reserva seis assentos, sendo cinco destinados a representantes de países com pouca representação em missões espaciais – Nigéria, Índia, Indonésia, Brasil e Tailândia – e um sexto aberto a participantes de outras nações. É nesse seleto e competitivo grupo que dois cientistas brasileiros buscam uma vaga para levar o talento e a pesquisa nacional para a microgravidade.
De Laranjeiras à Nasa
Um dos nomes na disputa é o engenheiro de software Briant Moreira de Oliveira, mais conhecido como Elliot Briant. Embora tenha nascido nos Estados Unidos, foi em Laranjeiras, na Serra (ES), que Elliot cresceu e se naturalizou brasileiro, construindo uma trajetória que o levou a conquistar uma vaga na Nasa. Sua paixão pela tecnologia e a curiosidade o levaram a participar de uma competição para cientistas de dados, onde, quase por acaso, sua análise das informações obtidas pelo telescópio Kepler resultou na descoberta de 37 possíveis exoplanetas.
A jornada, segundo o próprio pesquisador, começou com um olhar para o alto. “Meu sonho de ir para o espaço nasceu ainda na infância, no Espírito Santo, quando eu olhava para o céu e me perguntava o que existia além das estrelas”, conta. Sem acesso a telescópios e laboratórios, foi a pura curiosidade que o impulsionou a seguir adiante, até perceber, ao conhecer programas da Nasa e missões como a Apollo, que, nas palavras dele, o espaço era “um destino possível através da ciência e da colaboração humana”.
Trabalhar na Nasa foi um divisor de águas na sua vida, pois acabou lhe dando a oportunidade de contribuir com projetos reais e ver a colaboração global entre engenheiros, cientistas e sonhadores. A maior lição, no entanto, foi humana. “O que mais me marcou foi perceber que, mesmo em um dos lugares mais avançados do planeta, as pessoas continuam movidas pela mesma coisa que eu sentia quando criança: a curiosidade. Lá eu aprendi que o espaço não é apenas sobre foguetes, é sobre pessoas, propósito e persistência.”

Foto: Eytan Stibbe/Livro Visões do Cosmos
Elliot agora se prepara para o novo desafio de levar um experimento a bordo do foguete New Shepard. Sua pesquisa visa estudar os efeitos da microgravidade no corpo humano, investigando como músculos, ossos e conexões neuromusculares reagem à ausência de peso.
Para ele, a América Latina tem um papel fundamental na nova corrida espacial, oferecendo uma “visão mais humana, coletiva e sustentável da exploração espacial”. O Brasil, em particular, detém uma imensa riqueza científica e cultural que pode ser ainda mais valorizada e receber maior apoio. No entanto, o que ainda falta para que mais jovens atinjam o seu potencial é acreditar e oferecer caminhos. “Muitos jovens desistem não por falta de talento, mas por falta de oportunidade e incentivo”, ele argumenta, destacando a necessidade de abrir portas, criar pontes entre a ciência e as escolas, entre os laboratórios e as comunidades. “Quero deixar o legado de que o espaço também é nosso. Que um jovem da periferia, do interior, ou de qualquer canto da América Latina pode sonhar grande e chegar longe.”
A ciência como ponte e a representatividade feminina
A professora Thaiza Montine, natural de Goiânia, compartilha dessa mesma visão de que a ciência é o caminho para transformar sonhos em realidade. Ela cresceu imersa no universo da ficção científica, trilhando seu caminho na ciência a partir das feiras escolares e da graduação em Química pela Universidade Estadual de Goiás. Apesar de por muito tempo ter enxergado o desejo de ser cientista e astronauta como uma paixão de infância inalcançável, essa oportunidade de seleção pela SERA a fez despertar. “Ao longo da minha formação como professora e pesquisadora, percebi que a ciência é a ponte entre a fantasia e a realidade, e o espaço é o nosso próximo grande laboratório”, define.
Se for selecionada, Thaiza fará história como a primeira mulher brasileira a viajar para o espaço. Seu experimento proposto foca nos efeitos da gravidade em materiais compósitos. O objetivo é estudar a capacidade de autocura desses materiais e como eles podem ser usados para melhorar a proteção contra a radiação cósmica, aumentando a segurança e sustentabilidade das futuras missões espaciais.
A missão de Thaiza carrega um peso ainda maior, o da representatividade. Para ela, ser uma cientista em destaque é “ser a voz, o rosto e o cérebro de milhares de meninas que ainda não se veem nos laboratórios. É romper a barreira do invisível”. Ela se vê como a prova viva de que a curiosidade aliada à educação tem o poder de quebrar o teto de vidro e sua eventual viagem ao espaço será, portanto, pela representatividade feminina, reconhecendo e valorizando seu papel na produção do conhecimento científico.
Em sua trajetória, Thaiza busca inspiração em mulheres que abriram caminhos, citando a professora Nyuara Araújo da Silva Mesquita e, principalmente, Sonia Guimarães, a primeira mulher negra a obter um doutorado em Física no Brasil e a primeira a lecionar no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em 1993. “Lembra daquele ditado: ‘Somos brasileiros e não desistimos nunca!’? Pois bem, que nunca desistamos de alcançar nossos objetivos!”. A chave, ela conclui, é transformar a paixão em ação. “Se a sua área de interesse ainda não possui tanta representatividade, já parou para pensar que pode ser você a pessoa que irá engajá-la? Portanto, digo e repito: acreditem em seus sonhos, mas, acima de tudo, corram atrás da realização deles”, conclui.
O Memorial da América Latina lançou em outubro de 2025 o livro Visões do Cosmos, com organização do Dr. Pedro Mastrobuono, presidente da fundação. A publicação reúne relatos e fotos de 106 astronautas, cosmonautas e taikonautas, integrantes da Association of Space Explorers (ASE). Além de Mastrobuono, que assina um dos textos introdutórios, o senador e ex-astronauta Marcos Pontes e a engenheira e ex-astronauta Julie Payet, presidente da ASE, também colaboram com artigos. O livro pode ser consultado na Biblioteca Latino-Americana Victor Civita.

